
Lançado há 50 anos, ‘Profissão: Repórter’ é um filme sobre a questão muito presente do humanismo que perdemos.
Mesmo evitando sobrecarregar as efemérides de significados simbólicos que se limitem a alimentar a nossa nostalgia ou apaziguar as nossas angústias, há qualquer coisa de perturbante neste simples facto: o filme Profissão: Repórter, de Michelangelo Antonioni (1912-2007), chegou às salas de cinema há 50 anos. Porquê perturbante? Porque se trata de um título fulcral na obra de um cineasta que nos legou um património de narrativas em que as relações homem/mulher são, por assim dizer, sujeitas à discussão da sua própria possibilidade — ou impossibilidade.
Escusado será dizer que Antonioni é um pós-romântico. O seu fascínio, gélido mas intenso, leva-o a conjugar atores e atrizes capazes de encarnar essa sensação de viverem relações de proximidade (não necessariamente amorosas) em cenários que, sobretudo durante a década de 1960, remetiam o espetador para as fissuras daquilo que, de forma mais ou menos equívoca, entrou na história como “sociedade de consumo”.
A célebre trilogia a preto e branco dominada pela presença de Monica Vitti — A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962) — existe como uma coleção de retratos em que as evidências sociais de masculino e feminino se vão dissolvendo numa avalanche de silêncios que o “consumo”, precisamente, não consegue superar. Penso, sobretudo, em Monica Vitti na companhia de Alain Delon em O Eclipse: as suas deambulações pelos espaços de um novo urbanismo concebido para vender uma noção transparente de felicidade são, de facto, retratos de duas solidões à procura de uma via de comunicação em que cada um possa sentir que existe — para si e para o outro.
Profissão: Repórter surgiu, assim, em 1975 como o prolongamento de três experiências para lá das paisagens italianas. Creio que a primeira dessas experiências, Blow-up (1966), vivida em cenários londrinos, continua a ser o filme mais conhecido de Antonioni; a segunda, Zabriskie Point (1970), projeta-nos numa América despojada da mitologia clássica do seu território; enfim, a terceira, Chung Kuo (1972), é um espantoso documentário sobre a China.

Jack Nicholson e Maria Schneider: memórias de 1975.D.R.
Jack Nicholson, protagonista de Profissão: Repórter, pode ser descrito como o amargo herdeiro de todos esses ziguezagues cinematográficos e existenciais. Ele é, afinal, um jornalista confrontado com a decomposição de um mundo que já não existe através de dados concretos e partilháveis, entregue que está ao jogo das máscaras e ao poder dos simulacros (o livro seminal de Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, surgiria em 1981). O misto de angústia e medo em que vive leva-o mesmo a assumir a identidade de um homem que morreu — é nesse vazio existencial e corporal que conhece uma personagem feminina (a que Antonioni não atribui um nome) interpretada por Maria Schneider.
Sem romantismo redentor, mas também sem expectativas utópicas, Nicholson e Schneider, assombrosos e assombrados, interpretam um “conjunto” que não chega a ser um par, muito menos um casal. A cumplicidade que entre eles se desenha confunde-se com uma vulnerabilidade sem destino — talvez se possa mesmo descrever a estrutura narrativa de Profissão: Repórter como a hipótese de uma aventura que não chega a materializar o seu mapa existencial. Quem conheça o filme, lembrar-se-á que a sua prodigiosa cena final nasce, justamente, da crueldade de um espaço que perdeu todas as suas coordenadas.
As convulsões dramáticas de Profissão: Repórter ecoam, ponto por ponto, no nosso tempo de 2025 (o filme está disponível na plataforma Filmin). Genuinamente premonitório, o trabalho de Antonioni pressente, não apenas a decomposição do humanismo clássico, mas também a necessidade de pensar para lá dos clichés correntes da comunicação — como se revíssemos a saga de Adão e Eva, mas já não há paraíso.
JOÃO LOPES ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)