EU TE AMO MUITO HUGUITO

CHARGE DE REP ( PÁGINA 12/ ARGENTINA)

Um dia, para provocá-lo, perguntei-lhe:

–Che, Huguito, você dava aulas de Literatura Espanhola?

–Não, cara, eu estava na prisão.

E ele riu com a cara de Alberto Sordi, gastador e ganhador.

Esse foi um diálogo típico com Hugo Soriani, Huguito para mim, que acabou de falecer.

Milhões de anos atrás, no Pleistoceno, o jornal começou a publicar livros de grandes escritores. Não me lembro se foi ideia dele, mas lembro perfeitamente da descrição que ele fazia de cada obra e do entusiasmo que sentia ao saber que centenas de milhares de livros eram vendidos com o Página, espalhados por todo o país.

A pergunta capciosa sobre suas aulas de Literatura serviu para definir na minha cabeça quem era Hugo. Quero dizer: como pode haver tantos Hugos em um?

Seus escritórios nos diferentes locais onde o jornal estava estabelecido eram sempre os mesmos. Legal, porque Huguito era um metodologista obsessivo. Cheio de livros, CDs, fotos, objetos engraçados e, nos últimos anos, uma boa cafeteira.

Ricardo Badía, um antigo colega nosso no jornal e também colega de colégio de Hugo, não vai me deixar mentir. No escritório daquele gerente ou diretor, dependendo da hora, ele de repente se levantava e pulava como se estivesse em campo, cantando baixinho: “Nós somos do Vieytes/ a nata da safra/ plantamos frutas e enterramos a batata-doce.” Ele riu porque a música mostrava um dos Hugos, e então explicou por que sabia tanto sobre a Era de Ouro Espanhola, Flaubert e Maupassant.

“A única coisa que nos deixaram levar para a prisão, quando começaram a nos permitir receber livros, foram os clássicos”, disse ele.

Depois dos livros vieram os CDs:

–Você viu? Eu lhe disse que com Pugliese iríamos vender 73474, e encomendei 73480 para imprimir. Eu sou um chefe! Só me restavam seis e não perdemos um centavo em custos.

Os CDs do Hugo eram como livros. Não sei se o jornal dava algum dinheiro, mas certamente era uma ferramenta incrível para a cultura popular. Se não, pergunte a León Gieco, que alcançou o país inteiro novamente com suas antigas canções e continuou compondo novas. A propósito: que relacionamento León e Hugo têm… Sempre amigos. Deve ser por isso que León cantou no 50º aniversário de Hugo, uma grande festa para San Telmo. Antes já tinha cantado Miguel Cantilo, que para nós, veteranos, era obviamente um dos cantores de Pedro e Pablo.

Sordi Soriani procurava satisfazer-se de todas as maneiras. Não sei se ele já tinha esse caráter antes de se tornar um dos presos políticos que mais tempo passou na prisão na história da Argentina, mas todos os seus prazeres incluíam Laura, Joaquín, Paula e Jorge, seus amigos, o jornalismo, a música e o abraço de suas mães e avós, que o tratavam como um filho. Outras paixões também entraram em jogo. Para o River, para a reportagem e para a política.

Na política ele não era nostálgico. Ele tinha a dose necessária de realismo, o que não excluía uma dose igual de força de vontade, mas não era um lunático ultrapassado. De qualquer forma, ele podia sentir nostalgia ao reencontrar seus antigos companheiros de luta, ou seus prisioneiros, como os chamava, mas, principalmente nos últimos anos, não confundia a construção do poder com melancolia.

As conversas privadas eram tão enciclopédicas quanto íntimas. Nós, homens, somos meio estúpidos por isso. As mulheres, creio eu, nos vencem pelo roubo. Porém, com Hugo, as coisas foram diferentes. Deve ter sido porque no fundo aquele bandido em tempo integral tinha um coração. Certamente também porque um conspirador bem treinado como ele nunca trocava informações sobre outras pessoas ou expunha problemas alheios quando percebia que o outro também não faria o mesmo. E então esse exercício, praticado durante anos, criou uma confiança que nenhuma faísca ocasional poderia quebrar.

Ele se interessava por fofocas políticas. Ele pedia cada detalhe, até o impublicável, para estar sempre atualizado. Eu queria conhecer os personagens, independentemente de conhecê-los pessoalmente ou não. Ele era um sem-teto e, coitado, porque não é certo roubar tantos anos de liberdade de um ser humano, suspeito que, paradoxalmente, parte dessa falta de moradia veio da prisão.

Os outros rapidamente perceberam esse lado penetrante e contagiante. Viajei muito para a Espanha, mas sempre pensei que seu lugar no mundo, além de Buenos Aires, tinha que ser Nápoles. Uma vez contei para Cristina (minha mãe), que sempre se lembra do Hugo brincando como um bronzeado na nossa festa de casamento.

Ele poderia manter um diálogo como o que está tendo com um comissário de San Telmo, que ele nunca conheceu antes. Acontece que um explosivo havia sido colocado na porta do jornal, quando este estava localizado na Rua Belgrano, 600. O policial se aproximou e o atendeu.

–Fique calmo. –Hugo ouviu–. Quem trabalha aqui?

–Bem, tem Tiffenberg, Bruschtein, Granovsky…

“Hã, chefe, que alvo para o fundamentalismo”, disse o comissário.

E durante muitos anos, antes do forte abraço, a saudação de Hugo era esta:

–O que você está fazendo, alvo do fundamentalismo?

Deve ser por causa de tantas histórias vividas e contadas que Hugo amava crônicas. Eu adorava escrevê-los e adorava lê-los. Eu os detectei instantaneamente em qualquer meio. Ele ficava orgulhoso quando elas apareciam na Página e xingava quando não havia nenhuma.

Devo a ele e a Pancho Meritello uma das coberturas mais interessantes da minha vida.

–Ei, Martin, Fidel morreu. –ele me disse em 25 de novembro de 2016–. Escrevi.

E eu escrevi.

Então ele me ligou no celular.

–Você vai para Havana.

–Olha, o wifi está começando aí, né?

–Você vai conseguir.

Como tudo aconteceu tão rápido, a passagem e o dinheiro para as despesas saíram do nosso próprio bolso. Mas a embaixada cubana não forneceu cobertura jornalística atualizada, como era necessário. Eu disse ao Hugo que iria de qualquer maneira e que se me prendessem no aeroporto, já que ele tinha muita experiência na área, ele faria o favor de me tirar dali.

–Sem chance. Vou deixar você aí.

Foi uma semana atravessando a ilha, de Havana a Oriente, para ver como um povoado inteiro chorava, sem rum nem som, por se terem proibido de beber álcool e de ouvir música, diante do cortejo do líder que sabiamente deixara apenas duas instruções: não ser lembrado por monumentos nem pelo seu nome posto em ruas ou povoados, e ser enterrado em Santiago, do outro lado de Cuba.

Graças à ideia de Huguito, o Página/12 foi o único jornal do mundo que fez uma cobertura diária do transporte com o caixão de Fidel parando em cada cidade e em cada praça.

Quando ele apresentou as crônicas de seu pai e da prisão reunidas no livro As Cartas do Capitão , cercado no palco por Taty Almeida, Norita Veiras, Miguel Rep, Eduardo Aliverti e, claro, León, levei minha velha comigo. Era maio de 2023. Ela, agora com 97 anos, sentou-se na primeira fila e observou cada detalhe com sua atenção habitual.

–E a mamãe? O que você achou? –Perguntei a ela mais tarde, falando diretamente com ela porque ela é um pouco surda.

“Muito bom, embora eu não tenha entendido tudo”, ela respondeu, zombando de si mesma. Mas o que mais gostei foi o que aconteceu antes.

–O que antes?

–Quando estávamos todos ali esperando antes de entrar na sala. Que bom vê-los se abraçando. Eles se amam muito, não é mesmo?

Não consegui responder devido à minha emoção.

E sim, eu te amo muito, Huguito.

MARTIN GRANOVSKY ” PÁGINA 12″ ( ARGENTINA)

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