
CHARGE DE JUNIÃO
Ao se completarem dois meses da nova administração americana, o histrionismo de Donald Trump e a perplexidade dos europeus criam uma impressão duplamente falsa com relação à Guerra da Ucrânia. Por um lado, o presidente americano se comporta como se os EUA fossem o “país ganhador”, exigindo uma “reparação de guerra” do país derrotado, a Ucrânia, que foi seu grande aliado até anteontem. Por outro, os europeus, em estado de pânico, atribuem à traição de Trump e à sua decisão de acabar com a guerra, a responsabilidade por sua divisão e derrota eminente. Como se fosse possível fazer, desfazer e refazer a história real através apenas da manipulação de “narrativas” que são inventadas e repetidas incansavelmente pelas potências que se acostumaram a controlar o “imaginário coletivo” do sistema mundial.
Na verdade, o que estamos assistindo é o reconhecimento norte-americano de um fato consumado: a vitória da Rússia no campo de batalha contra as tropas da Ucrânia, e contra os armamentos da OTAN, mesmo que durem ainda a resistência e os ataques pontuais dos ucranianos. Neste momento, os EUA estão exigindo que seus vassalos se rendam, na forma inicial de um “cessar-fogo”, mas na verdade se trata de uma vitória russa sobre os próprios EUA, que forneceram a maior parte do equipamento bélico, base logística, apoio de inteligência, e financiamento, que permitiram aos ucranianos resistirem durante três anos, promovendo uma escalada militar que chegou às portas de uma guerra atômica, no final do governo de Joe Biden.
Neste momento, a situação ainda está muito confusa, mas mesmo assim já é possível reconstruir os caminhos e principais passos que levaram a essa guerra. Uma história que começou em 1941, com a assinatura da Carta do Atlântico, pelo presidente americano, Franklin Delano Roosevelt, e pelo primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, em Newfoundland, nas cercanias do Canadá. Carta Atlântica que se transformou na “pedra fundamental” da “aliança estratégica” entre EUA e Grã-Bretanha (GB), que foi vitoriosa na Segunda Guerra Mundial, e que foi em seguida sacramentada pelo bombardeio atômico norte-americano das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Uma aliança inquebrantável que durou 80 anos e que esteve na origem do projeto globalista de construção de um mundo unificado e tutelado pelos anglo-saxões, seguindo as regras e valores da “civilização ocidental”.
Esse projeto anglo-saxônico mudou de rumo, entretanto, depois do discurso de Winston Churchill, em Fulton, Missouri, EUA, em março de 1946, quando o ex-primeiro-ministro britânico propôs aos seus aliados norte-americanos a construção de uma barreira de contenção militar – que ele chamou de “cortina de ferro” – separando o “mundo ocidental” da zona de influência comunista da União Soviética. Uma política inglesa, de demonização e confronto permanente com a Rússia, que foi formulada pela primeira vez logo após o Congresso de Viena, em 1815, um século antes da Revolução Soviética. A grande novidade desta proposta, portanto, foi o convencimento e mobilização do governo norte-americano de Harry Truman a favor dessa estratégia que deu início à Guerra Fria, em 1947, seguida pela formação de um bloco dos países do Atlântico Norte, consagrado pela criação da OTAN, em 1949, e pela inauguração da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, em 1951, embrião da União Europeia, que viria a ser formalizada em 1993.
Quarenta anos depois, no momento da queda do Muro de Berlim, em 1989, e da dissolução da União Soviética, em 1993, as duas grandes potências anglo-saxãs voltaram ao seu projeto de 1941. Foi quando se falou em “fim da história” e da vitória definitiva da democracia e do capitalismo liberal e anglo-saxônico, sobretudo depois da arrasadora vitória militar dos EUA na Guerra do Golfo, de 1991/2, quando os americanos expuseram ao mundo sua nova tecnologia de guerra teledirigida, equivalente às bombas de Hiroshima e Nagasaki, do ponto de vista do impacto sobre o sistema mundial.
A partir de então, os EUA se desfizeram do seu compromisso com as Nações Unidas, e com as regras de funcionamento do seu Conselho de Segurança, e transformaram a OTAN – progressivamente – no seu braço armado de intervenção nos Balcãs, no Oriente Médio, na Ásia Central e Europa do Leste” (1). Primeiro foi a Bósnia, em 1995, e depois a Iugoslávia, em 1999, que foi bombardeada pela OTAN sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU. E o mesmo voltou a acontecer em 2003, quando EUA e GB invadiram e destruíram o Iraque, apesar do veto da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança das Nações Unidas, e da oposição de Alemanha, França e de vários outros aliados tradicionais dos anglo-saxões. Começaram ali as “guerras sem fim” dos EUA, da GB e da OTAN no Grande Oriente Médio, e se estenderam até sua e “retirada” do Afeganistão, em 30 de agosto de 2021.
E o mesmo aconteceu na Europa, onde a OTAN se expandiu de forma contínua, multiplicando suas bases militares na direção da Europa do Leste da fronteira ocidental da Rússia. Apesar da promessa do secretário de Estado norte-americano James Baker ao primeiro-ministro russo Mikhail Gorbachev, feita em 1991, logo após o fim da Guerra Fria, de que a OTAN não avançaria na direção da Europa do Leste, em 1994, o presidente Bill Clinton autorizou sua primeira expansão, e em 1999 a Otan começou sua “marcha para o Leste”, com a incorporação de Hungria, Polônia e República Tcheca. E em 2004, a OTAN incorporou Estônia, Lituânia, Letônia, Bulgária, Eslovênia e Eslováquia, enquanto experimentava suas novas formas de intervenção através das chamadas “revoluções coloridas” contra governos desfavoráveis aos interesses americanos – como foi o caso da “revolução das rosas”, na Geórgia, em 2003; da “revolução laranja” na Ucrânia em 2004; da “revolução das tulipas” no Quirguistão, em 2005.
Por fim, em abril de 2008, na cidade de Bucareste, a OTAN anunciou seu xeque-mate, com a incorporação da Geórgia, e sobretudo da Ucrânia, que Zbigniew Brzezinski (o grande geopolítico do Partido Democrata norte-americano), considerava ser uma peça central da disputa dos EUA com a Rússia, pelo controle da Europa do Leste e de todo o continente eurasiano. Tão importante que Brzezinski chegou a propor que a Ucrânia fosse conquistada pelos EUA e pela OTAN, até no máximo 2015 (2) – o que acabou acontecendo depois do golpe de Estado de 2014, que derrubou o governo eleito de Viktor Yanukovych, considerado hostil pelos EUA e pela OTAN.
A Rússia protestou inutilmente contra esses sucessivos avanços da OTAN sobre sua fronteira ocidental. E, em 2007, na Conferência de Segurança de Munique, o presidente russo, Vladimir Putin, advertiu pessoalmente as potências ocidentais de que a Rússia não toleraria os avanços da OTAN na Geórgia e na Ucrânia. Sua advertência foi ignorada uma vez mais e, no ano seguinte, a Rússia foi obrigada a fazer uma primeira intervenção militar direta na República Autônoma da Ossétia do Sul, para impedir sua incorporação à OTAN. E mais à frente, em 2015, a Rússia voltou a intervir diretamente contra o golpe de Estado apoiado pelos EUA e pela OTAN, ocupando e incorporando a Crimeia ao território russo.
Por fim, em 15 de dezembro de 2021, a Rússia entregou um memorando às autoridades americanas e da OTAN, e aos governantes da União Europeia, propondo a interrupção da expansão da OTAN, o afastamento de suas tropas das fronteiras russas e a desmilitarização da Ucrânia. Não houve resposta a esse memorando e o silêncio das “potências ocidentais” foi o estopim que deflagrou a invasão russa do território da Ucrânia, iniciando de fato uma “proxy-war” entre Rússia e EUA (3).
Três anos depois do início da guerra, já não cabe dúvida de que a Rússia venceu no campo de batalha, mas também no campo da competição tecnológico-militar com relação aos equipamentos fornecidos aos ucranianos pelos EUA e pelos países da OTAN. Além disso, a Rússia também venceu a guerra econômica contra as sanções que lhe foram impostas pelas potências ocidentais, e sua economia vem crescendo sistematicamente à frente dos demais países europeus.
Não há dúvida de que a vitória russa se acelerou e consolidou nos dois últimos meses: i) com a saída dos EUA da guerra e a ruptura do seu “casamento estratégico” com a GB; ii) com a divisão interna da OTAN e a ameaça de saída dos EUA; iii) com a fragilização da União Europeia, depois do seu afastamento dos EUA; iv) e finalmente, com o desmonte do “bloco ocidental” e de sua hegemonia mundial exercida nos últimos 200 anos.
Como consequência, o mais provável é que as negociações post-bellum entre Rússia e EUA se transformem no primeiro passo de uma nova “ordem mundial multipolar” e “pós-europeia”, a mais importante de todas as reivindicações e vitórias russas.
ARTIGO PUBLICADO NO BOLETIM DO OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI
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(1) Victoria Nuland, a diplomata americana que ficou famosa por sua participação direta pessoal a favor do golpe de Estado na Ucrânia, em 2014, e que foi também Representante Permanente dos EUA na OTAN, de 2005 a 2008, declarou numa entrevista ao jornal Financial Times, em 2006, que “os EUA querem ter uma força com projeção global, para operar em todo o mundo, da África ao Oriente Médio e bem mais além, o Japão, como a Austrália tem vocação, igual que as nações da OTAN, para fazer parte desta força” (in Chauprade, A., Chronicque du Choc des Civilizations, Chronique Editions, Paris, 2013, p. 69).
(2) Brzzezinski, Z, The Grand Chessboard. American Primacy and its Geostrategica Imperatives, Basic Books, New York, 1997
(3) O novo secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, reconheceu recentemente que a Guerra da Ucrânia foi na verdade uma “guerra por procuração” entre Rússia e EUA., in UOL Noticias, noticias.uol.com.br -6 de março de 2025
JOSÉ LUIZ FIORI ” OBSERVATÓRIO INTERNACIONAL DO SÉCULO XXI” / “JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)