
É possível que estejamos a atravessar aquele “auge da suprema prova” de que Pessoa fala num dos poemas de Mensagem (1934). Num esforço de penetração, talvez possamos associar tal prova àquela descida aos infernos que, como tema literário, animou obras tão ricas e plenas de consequências para o nosso conhecimento psíquico enquanto cultura – uma das mais antigas! – ocidental. Da Odisseia de Homero à Divina Comédia de Dante; da Eneida de Virgílio, ao nosso Os Lusíadas, a concepção da existência, pessoal ou colectiva, obedece à lógica Uma cultura que, actualmente, se desconhece, mercê das desleituras, do paupérrimo estado a que a Educação chegou. Uma cultura esquecida: cultura, a nossa, tanto mais ocidental quanto portuguesa, tanto mais portuguesa quanto europeia.
É possível que estejamos nesse presente de que fala Karl Jaspers e que surge aos nossos olhos como um estar-entre um “já-não” e um “ainda-não”. Hanna Arendt, lendo o seu mestre, Jaspers, diz-nos que o que agora começa é não a história e o seu fim, mas a história do fim da humanidade. É relevantíssimo que tudo quanto sentimos e pensamos, tudo quanto são os eixos axiológicos (os valores) pelos quais estudámos e fomos criados estejam, neste tempo de diluição das instituições quer nas Américas, quer na Europa e, em especial, no nosso país, estejam paulatina, mas decididamente a ser substituídos por uma nova engrenagem de supostos “novos valores”. Não há, no fundo, novos valores nenhuns. O que há, na Europa e no mundo, no nosso país “à esquina do planeta”, como escreveu António Nobre (1867-1900), é a mesma ordem de sempre: a luta das oligarquias e de uma burguesia financeira-burocrática que, por via dos partidos, pejados de carreiristas acéfalos e de acéfalos carreiristas, mais não quer do que explorar quem trabalha e manter intactos os privilégios de classe.
Descer aos infernos, se é um tema literário, é, no limite, uma experiência concreta. Só as gerações mais novas, educadas no facilitismo infantilizador, poderão julgar que as categorias da ficção nada têm que ver com as categorias do real. Digo isto porque – podendo não parecer – iremos a votos em Maio e irão votar no próximo primeiro-ministro, no próximo elenco governamental (ainda que dito assim não esteja a ser absolutamente fiel à lógica do nosso sistema eleitoral), muitíssimos jovens que, educados, doutrinados, manipulados, alienados à frente dos ecrãs – seguindo as venturas e desventuras dos influencers -, não terão, talvez, consciência clara do que significa “ir a votos”.
Esta será uma eleição de parlamentares sem um pingo de consideração pelos eleitores. As categorias da ficção (agimos num tempo e num espaço, somos as personagens principais da nossa acção e os narradores absolutos dela) são as categorias da realidade e o que nos é dado ver? Maus, péssimos protagonistas da vida política. Gente que em nome do poder desconhece o espaço colectivo, isto é, nós, portugueses, que agimos num dado lugar, com dada história, com memórias e valores. Péssimos narradores, estes nossos políticos, porque iletrados, isto é, sem uma gota de consciência de que governar um país, ser-se ministro ou primeiro-ministro significa: servir, ser o Primeiro-a-servir. Na narrativa que é a História de um país chamado Portugal, não ignoramos que muitos foram os episódios dignos de sátira, de repúdio por parte de antigos “actores políticos”. Porém, raras vezes a indigência, o português abrutalhado dos nossos parlamentares foi tão fiel quanto à mentalidade oportunista que justifica todos os meios para que os políticos e o empresariado que os suporta alcancem os seus fins. Descemos aos infernos da nossa vida colectiva: país com dois milhões de pobres.
Pois bem, a classe política que nos rege e que nos ofereceu (excepção feita ao comportamento de Paulo Raimundo, que falou para as pessoas e das pessoas) por estes dias, na dita “casa da democracia”, um dos mais deploráveis espectáculos de infantilidade e de voraz vaidade e luta de egos, esta classe política tem-nos conduzido ao inferno. Portugal atravessa hoje (um hoje que remonta a Sócrates, mas que podemos fazer remontar ainda mais aos abandonos de Guterres e de Durão, ao governo desgovernado de Santana e aos oito anos desperdiçados pelo PS) um desses momentos pródigos em estupidez, em sórdido maquiavelismo político que, se Eça fosse vivo, ou Jorge de Sena, ou O’Neill, ou António Sérgio, ou mesmo Mário Soares ou Álvaro Cunhal, ou mesmo Lucas Pires ou Freitas do Amaral, mereceria, sem dúvida, a imagem justa: Portugal descendo aos infernos.
Em 2025, cinquenta e um anos depois de Abril, é caso para perguntar se a Educação em que foram formados os nossos políticos, universitários, em tempo de cavaquismo, guterrismo e socratismo não tem nada que ver com o estado de indigência moral e mental a que se chegou. É por isso que talvez estejamos nesse presente entre o não-já e o ainda-não.
ANTÓNIO CARLOS CORTEZ ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)
Professor, poeta e crítico literário