
A jornalista Tereza Cruvinel relembra os fatos dramáticos da noite de 14 de março e o do dia 15, quando Sarney tomou pose na Presidência da República
“15 de março de 1985. Naquela manhã encoberta de Brasília, as espatódeas vermelhas enfeitavam os gramados verdes.” Essa lembrança não é minha, é do ex-presidente José Sarney, numa crônica de 2005, quando se completaram os 20 anos de sua posse na Presidência – a posse do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura. Não era para ser ele. Era para ser Tancredo Neves, que na véspera sofreu a cirurgia que o levaria à morte.
Pouco importa a minha lembrança do dia nublado, em que devo ter olhado mais para as quaresmeiras que também florescem nesta época. Eu era apenas uma jovem repórter, mas já havia sofrido as dores da ditadura, e por isso era com um misto de aflição e esperança que eu me deslocava para o Congresso, onde Sarney iria jurar a Constituição (a velha, pois só tínhamos a dos militares) e tomar posse. Dali o tropel de autoridades e jornalistas levou-me ao Palácio do Planalto, onde ele empossou os ministros de Tancredo com um discurso breve e sóbrio, como convinha à hora:
“Eu estou com os olhos de ontem. E ainda prisioneiro de uma emoção que não se esgota. O Deus da minha fé, que me guardou a vida, quis que eu presidisse esta solenidade. Ele não me teria trazido de tão longe, se não me desse, também, na sua bondade, as virtudes da paciência, do equilíbrio, da coragem, do idealismo, da firmeza e da visão maior das nossas responsabilidades perante esta Nação e sua História”.
Eu gosto dos inícios de discursos, que revelam muito do orador e do que será dito. Gosto particularmente deste, entre os de centenas de discursos políticos que já ouvi por força do ofício.
Estávamos todos com os olhos de ontem. No início da noite do dia 14 soou o alarme nas redações: Tancredo havia saído de uma missa de ação de graças, na Igreja Dom Bosco, colocando a mão na barriga como se sentisse dor, e agora estava sendo atendido no Hospital de Base. Fui mandada para a casa de Sarney, o candidato a vice, e devia colar-me nele. Eu já o encontrei saindo no carro oficial para o hospital. Fui atrás, e lá chegando tentei acompanhar o passo dele, que ofegava, mas fui barrada quando ele entrou numa numa sala onde estava praticamente toda a Nova República, os luminares do PMDB e da Frente Liberal, a dissidência do PDS que ofereceu o vice e os votos para a vitória de Tancredo no Colégio Eleitoral.
A notícia era a de que Tancredo iria ser operado imediatamente, pois sua situação era grave. Aqueles homens poderosos pareciam todos tontos. Num quarto reservado do hospital apinhado, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Câmara, Sarney e o general Leônidas, já indicado ministro do Exército por Tancredo, discutiam o que fazer.
– Você vai tomar posse amanhã – disse Ulysses.– Não, Ulysses, eu não vou. Tome você – respondeu Sarney.
– Eu li a Constituição e é você, Sarney.
Encerrando o jogo de empurra, o general propôs que fossem conversar com o ministro Leitão de Abreu, chefe do gabinete civil do presidente Figueiredo, jurista respeitado, ex-ministro do STF. Sarney preferiu esperar em casa o resultado da pajelança. Era quase uma hora da manhã quando Ulysses, o senador Fernando Henrique, e o presidente do Senado, José Fragelli, chegaram com Leônidas, no carro dele, à Granja do Ipê, nos arredores de Brasília, onde Leitão morava. Ele havia saído da cama mas os esperava de terno e gravata.
O Globo mandou-me para lá, para juntar-me a Jorge Bastos Moreno, que havia sido o primeiro a chegar. Na cobertura política, naquele tempo, não havia páreo para Moreno. Eu era ali uma espécie de auxiliar dele. Dois dias depois fomos os dois mandados para São Paulo para cobrir a evolução do estado de Tancredo, que fora transferido para lá. Durante 38 dias eu, ele e depois Luís Erlanger nos revezamos na porta do Incor. Tancredo acabou morrendo no meu plantão, como eu temia.
Muitos jornalistas aguardavam do lado de fora da casa e todos sabíamos que aquela era uma noite crucial para o futuro do Brasil: os militares poderiam dar um golpe, impedir a posse de Sarney (ou de Ulysses) e prorrogar o mandato de Figueiredo.
Ali houve o que a História registra: prevaleceu o entendimento consensual de que Sarney é que deveria tomar posse na manhã seguinte, nos termos da Constituição. Havia quem achasse que devia ser Ulysses, pois Sarney ainda não era vice de fato, pois não havia tomado posse como tal.
Esta era a interpretação do general Walter Pires, ministro do Exército de Figueiredo. Quando ele soube que Tancredo estava sendo operado, foi para o QG conversar com seus pares sobre o que fazer. Ligou para Leitão defendendo a prorrogação do mandato de Figueiredo. Leitão disse que era tarde: por engano, a exoneração dos ministros fora publicada com antecedência. Eles não eram mais ministros. Diz a lenda que com uma mentira Leitão fez general golpista desistir.
Algum tempo depois o próprio Figueiredo telefonou para Leitão de Abreu dizendo que não transmitiria a faixa a Sarney, a quem não perdoava o fato de ele ter se bandeado com os dissidentes para a oposição. Leitão inventou uma desculpa “jurídica” para dizer isso aos da Nova República: presidente só passa faixa para outro presidente, não para vice.
Os ministros do STF se reuniram de madrugada no apartamento do ministro Moreira Alves. Moravam todos no mesmo bloco da SQS 313. Dois entenderam que a posse devia ser de Ulysses. Os demais entenderam que devia ser de Sarney.
De madrugada, Ulysses ainda precisou ir ao Congresso e falar duro com um grupo de peemedebistas que defendiam com ardor a posse dele. Antes, havia passado pela casa de Sarney e lhe informado da decisão: ele é que tomaria posse. Outro que comunicou a decisão a Sarney foi o general Leônidas, que se despediu dizendo um “boa noite, presidente”.
Por tudo o que houve naquela noite, não apenas Sarney chegou ao Palácio, no dia seguinte, “com os olhos de ontem”. Ele e todos os que vararam a noite tentando evitar que o leite da transição à brasileira fosse derramado por mais um golpe.
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Acho que neste 15 de março os Três Poderes deveriam ter feito um evento, agora não para esconjurar um golpe de Estado fracassado, mas para celebrar os 40 anos da democracia brasileira. Depois daquela manhã das espatódeas, o país enfrentou desafios, colheu vitórias e também retrocessos que ameaçaram a democracia, mas foram insuficientes para afundá-la.
Eu chamo de colapso democrático o período de 2016 a 2022, por razões que todos sabem. Temer chegou a cargo coordenando um impeachment golpista contra Dilma. Bolsonaro foi eleito em 2018 porque o candidato favorito, que certamente teria sido eleito, Lula, foi condenado e preso por um juiz parcial, no âmbito de um processo marcado por vícios e ilegalidades.
Nestes 40 anos, o Brasil teve sete presidentes, sendo que dois deles foram reeleitos e cumpriram integralmente seus mandatos: Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Fernando Collor de Mello, o primeiro eleito pelo voto direto, sofreu impeachment no segundo ano de mandato, acusado de corrupção e crimes conexos. O vice Itamar Franco concluiu seu mandato, governando por dois anos. Dilma Rousseff sofreu um impeachment de natureza golpista, forjado pela maioria do Congresso para dar posse a seu vice, Michel Temer, e implementar outro programa de governo.
Encerramos o período do colapso em 2022 com a eleição do presidente Lula, o único dos sete a conquistar um terceiro mandato. Talvez venha o quarto.
Um dos marcos mais importantes da marcha de 40 anos foi a promulgação da Constituição de 1988, elaborada por uma Assembleia Constituinte livremente eleita, convocada por Sarney. Este era um dos compromissos da Aliança Democrática firmada entre o PMDB e os dissidentes do partido do regime. Essa nova Carta garantiu direitos fundamentais, instituiu o Estado Democrático de Direito e estabeleceu as bases para a estabilidade institucional do país.
Outro grande desafio enfrentado foi a hiperinflação, que atingiu patamares alarmantes no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Após algumas experiências que não deram certo, o Plano Real, implementado em 1994 durante o governo Itamar Franco e consolidado na gestão de Fernando Henrique Cardoso, livrou o país da hiperinflação e instituiu a nova moeda, trazendo a estabilidade que propiciou o crescimento econômico do Brasil.
Nos dois primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva, o país avançou socialmente, reduzindo a pobreza e garantindo a inclusão social. Programas como o Bolsa Família e outras políticas públicas ajudaram a reduzir desigualdades e a melhorar a vida de milhões de brasileiros.
Neste percurso de 40 anos, as instituições democráticas, o voto popular e as eleições periódicas foram sempre reforçadas como pilares da democracia.
Um outro grande desafio foi vencido na sucessão de Jair Bolsonaro, que não aceitou a vitória eleitoral de Lula. A coalizão entre alguns militares, expoentes civis da extrema direita e apoiadores de Bolsonaro planejou um conjunto de ações, incluindo assassinatos, para evitar a posse do vencedor, o que culminou com os ataques às sedes do Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Durante quase dois anos a Polícia Federal investigou a conspiração golpista e reuniu provas que levaram à denúncia da PGR contra Bolsonaro e outros 33 envolvidos.
O Brasil democrático espera que todos os golpistas sejam submetidos a um julgamento correto e justo, que tenham garantidos todos os direitos, inclusive o de defesa, mas que os culpados paguem pelos crimes cometidos. Quando dizemos “ditadura nunca mais”, estamos dizendo que faremos tudo o que for preciso para preservar a nossa maior construção coletiva. Ela nos custou sangue e lágrimas, muitas vidas, muitos anos vividos no exilio, muito anos de encarceramento, sessões de tortura, a violação de nossa privacidade pelos órgãos de segurança, a cassação de mandatos concedidos pelo povo, a negação de nossa liberdade pela censura, o nosso direito de votar e a muitos o direito de ser votado, entre outros males.
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Os jovens de hoje sabem pouco sobre a ditadura e sobre a transição. Talvez nós, que tudo vivemos, tenhamos parte da culpa. Não produzimos livros, filmes e peças de teatro em quantidade e qualidade suficientes para educá-los contra a tentação autoritária. Aí está o filme “Ainda estou aqui” despertando tantos jovens para o que foi aquele tempo em que pessoas eram sequestradas pelas autoridades e desapareciam para sempre.
Os que foram aliciados pela extrema-direita e pediram a intervenção militar na porta dos quartéis, os que já desfilaram com cartazes pedindo a volta do AI-5, os que já excomungaram a democracia como um regime que nada resolve, estes todos não sabem do que falam. E talvez parte da culpa seja nossa, por não termos investidos suficientemente na educação política para a democracia, por termos sido negligentes na defesa do direito à memória, à justiça e à verdade.
Sarney, após deixar a Presidência, fez sua parte, reunindo um rico acervo que passou a ser gerido por uma fundação privada que levava seu nome, e foi muito criticado por isso. Mais tarde o governo do estado do Maranhão estatizou-a, convertendo-a na Fundação da Memória Republicana Brasileira (FMRB), uma instituição cultural pública sediada no Convento das Mercês. Ela guarda o Memorial José Sarney, que conserva um milhão de documentos que testemunham o dia a dia do então presidente, 50 mil fotografias e 800 vídeos que retratam o período pós-ditadura, além de 5 mil itens iconográficos – como medalhas, condecorações, diplomas, telas e esculturas – oferecidas por chefes de estado de todo o mundo a José Sarney, em deferência a seu papel na consolidação da democracia brasileira.
Naquele discurso agoniado de 15 de março de 1985, Sarney pediu que seu Deus lhe concedesse “as virtudes da paciência, do equilíbrio, da coragem, do idealismo, da firmeza e da visão maior das nossas responsabilidades perante esta Nação e sua História”. Algumas destas virtudes devem tê-lo ajudado a conduzir a transição, com o cuidado de quem carrega uma vela em noite ventosa. Erros e falhas certamente aconteceram em seu governo, herdeiro de tantos problemas deixados pela ditadura. O inegável é que ele nos livrou dos retrocessos, guiou-nos à Constituinte e às eleições diretas, aquelas que haviam levado milhões de brasileiros às ruas, na campanha do ano anterior. A maioria parlamentar servil à ditadura negou os votos necessários à emenda Dante de Oliveira, mas nós somos brasileiros e não desistimos nunca: Fizemos a transição como foi possível.
Tudo teria sido diferente se tivéssemos feito uma transição como a da Argentina, condenando e prendendo os generais e torturadores, muitos dizem hoje. Teria, mas não tivemos aqui uma correlação de forças que nos permitisse tomar outro caminho.
TEREZA CRUVINEL ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)