A IMPRENSA BRASILEIRA DURANTE A DITADURA

Reportagem da série “A imprensa e o poder”, publicada no Jornal da Tarde em dezembro de 1979

CHARGE DE FORTUNA ” REVISTA PIF-PAF”

A cumplicidade. E suas várias armadilhas

O balão de ensaio não é apenas o processo pouco convencional de sondar a opinião pública. Ele é utilizado ampla e indiscriminadamente, na suposição de que a notícia acabe gerando o fato. 

Recorre-se a ele, eventualmente, até para se resolver problemas familiares. 

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Certa vez, por exemplo, na imensa guerra de informações que precedeu a disputa pela Presidência da República, na sucessão Geisel, foi noticiado que o chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, tinha sido sondado para governador do Estado do Rio, e mostrara-se disposto a aceitar. 

Seguiram-se desmentidos. E o balão de ensaio foi atribuído, na época, a Humberto Barreto e seu assessor Oswaldo Quinsan, em disputa com Golbery pelas preferências de Geisel. 

Conta o jornalista que primeiro deu a notícia: 

-A informação me foi passada por parentes de Golbery, sem que ele soubesse de nada. Sua esposa, preocupada com o seu desgaste físico no Planalto, queria que ele fosse para o Rio. Assim como pressionava nesse sentido o seu amigo Newton Cipriano Leitão, o Caveirinha, intermediário de agências de publicidade junto ao governo. O próprio Humberto, quando soube da informação, ficou excitadíssimo, e queria saber a todo custo se já tinha sido confirmada.

A conivência

Em nenhum desses casos e os exemplos são infindáveis apontou-se o mentiroso à opinião pública. Um pouco por conivência, um pouco por receio de perder a fonte. 

E essa conivência acaba sendo estimulada pelos próprios critérios de valorização da notícia oficial – presentes em grandes segmentos da imprensa. 

– Quando a publicação exige apenas a notícia que não ameaça, que interessa à fonte fornecer, fica eliminado o conflito natural entre o jornalista e a fonte – explica um repórter brasiliense de uma revista semanal. E hoje está tão disseminada a valorização desse tipo de notícia, que só se tem acesso a elas tornando-se cúmplice da fonte. Além disso, a nossa valorização profissional depende do número de fontes de que dispomos. 

Esse conivência pode ter inúmeras causas. Às vezes, reside no envolvimento emocional com fonte, postura favorecida pela própria vida da cidade, uma comunidade de políticos e tecnocratas que aceita o jornalista como integrante do meio. 

Uma outra armadilha muito comum é a tentação de “investir” na fonte, tornar-se seu partidário, pois, à medida que a fonte assume uma importância maior, torna-se também mais importante como notícia. 

São formas de cumplicidade que eventualmente podem resvalar para o campo dos interesses menores. Para abrir brechas nos inúmeros empregos públicos disponíveis, por exemplo. 

As “máfias”

Nesse momento, entra-se num campo delicado. Fala-se, a seguir, das ocasiões em que os diversos tentáculos do Poder se suavizam, e buscam a cooptação do jornalista por métodos menos truculentos. 

Para isso, a máquina burocrática brasiliense criou uma série infindável de empregos e privilégios funcionais, que estão permanentemente à disposição dos jornalistas. 

Os parlamentares, por exemplo, oferecem passagens de avião de suas cotas particulares. Em Brasília, contam-se histórias de jornalistas que conseguiram praticamente dar uma volta ao mundo, às custas de passagens ofertadas. 

A oferta de viagens internacionais é feita praticamente por todos os ministérios. A maioria, evidentemente, para a cobertura de viagens ministeriais trata-se de notícia, e caberia às empresas recusá-la ou não. Outras vezes, porém, são meras prodigalidades que visam premiar aqueles jornalistas mais fiéis. 

Eventualmente, costumam se colocar à disposição de jornalistas apartamentos funcionais privativos dos funcionários de determinada repartição. A Câmara, em certa época, chegou a possuir 8 apartamentos funcionais ocupados por jornalistas. Ao tempo de Médici, havia pelo menos um setorista morando em apartamento funcional da Presidência. 

Do mesmo modo, ao tempo de Humberto Barreto, como presidente da Caixa Econômica Federal, os jornalistas tinham acesso a financiamento farto para aquisição de casa própria. Enquanto presidente do Banco do Brasil, Karlos Rischbieter distribuía Cheques-Ouro. E, quando Magalhães Pinto tentou lançar-se à Presidência da República, o Banco Nacional facilitou a distribuição de cartão Nacional a muitos jornalistas. 

Some-se a infindável quantidade de cargos à disposição de jornalistas em coordenadorias de comunicação. 

E mesmo os acertos que são eventualmente feitos entre ministros e algumas publicações para a colocação de jornalistas de seu lobby em determinados postos, com o ministério responsabilizando-se por parte de seu salário. 

Essas formas de sedução do Poder acabam plantadas em uma categoria que até agora não conseguiu sistematizar seu próprio código de ética. 

Nos últimos tempos, por exemplo, foram noticiados os métodos do que se denominou de “a máfia do Ceará”. “Máfia”, no caso, refere-se mais ao fato de serem fechadas e possuírem regras de lealdade rígida (não em relação ao leitor, mas aos componentes do grupo). 

A máfia cearense começou a fincar seus alicerces no serviço público quando Flávio Marcílio se tornou, pela primeira vez, presidente da Câmara, em 1973. Na época, ele trouxe os primeiros, jornalistas cearenses, que se empregaram nas sucursais e jornais locais, e foram abrindo caminho para os demais, que se distribuíram por empregos públicos principalmente na Câmara e no Incra. 

Recentemente, ao assumir novamente a presidência da Câmara após uma disputa em que foi acusado por seu adversário, Herbert Levy, de ter montado um verdadeiro lobby na imprensa -Marcílio reinstaurou o empreguismo na casa. Sem maiores formalidades, nomeou 22 jornalistas para o cargo de assessores de comunicação, recebendo salários de Cr$ 35 mil. Dez eram conterrâneos e doze estavam diretamente envolvidos na cobertura da Câmara pelo menos dois dos quais em cargo de chefia, como coordenadores de equipe. E um jornalista que faz a cobertura do Congresso simultâneamente para dois grandes diários foi premiado com um cargo de confiança no gabinete da mesa diretora, com salário de Cr$ 50 mil. Evidentemente, em nenhum desses casos exigiu-se que os jornalistas abrissem mão de seus empregos na imprensa. 

Repare-se no seguinte exemplo, colhido ao acaso: um jornalista político de uma grande publicação, com um salário estimado em Cr$ 50 mil, um emprego no Legislativo, em cargo de confiança, que lhe rende Cr$ 35 mil, outro emprego, em cargo de confiança, para a muIher, por mais Cr$ 35 mil; um emprego numa agência de publicidade, de Cr$ 25 mil; e a suspeita generalizada de que recebe do governador de seu próprio Estado.

A reação 

Recentemente, houve uma reação contra esse empreguismo, que produziu alguns frutos importantes. Pela primeira vez, os jornalistas de Brasília passaram a contestar publicamente essa forma de cooptação, e encaminharam a Flávio Marcílio um abaixo-assinado com mais de duzentas assinaturas, protestando contra a nomeação sem concurso, de seus 22 rapazes. 

Ao mesmo tempo, algumas sucursais decidiram não mais permitir que um setorista continue trabalhando em uma área onde ele possua empregos desse tipo. 

Mas ainda é uma reação tímida e muito distante da elaboração de um código de ética que ao menos inibisse tanto a ação dos jornalistas que vendem seus enfoques, como das publicações que vendem sua linha editorial. 

O Poder ao contato com a imagem portanto, é isso. Ele envolve, seduz, recorre à chantagem emocional, suborna, engana, ameaça cessar o fluxo de informações. E, finalmente, passa à pressão direta. 

É nesse ponto que se manifesta a atuação das Divisões de Segurança e Informação, o braço burocratizado do SNI presente em cada ministério. 

As DSI foram estruturadas praticamente no governo Castello Branco. Cada Ministério possuía uma Seção de Segurança Nacional, vinculada ao Serviço Federal de Informação e Contrainformação (SFICI), o embrião do SNI. 

Sua função é a de identificar os inimigos do regime, tanto entre funcionários como os jornalistas que tentam seu credenciamento junto aos ministérios. Ela está tecnicamente vinculada ao SNI e administrativamente a Ministério. 

Certa vez o Ministro Jarbas Passarinho comentou, em tom de blague, que no seu ministério havia mais coronéis que nos regimentos de Brasília. 

O DSI tende a funcionar como todo organismo burocrático. Criado para administrar determinado problema, sua importância funcional será tanto maior quanto maior for o problema.

Essa dinâmica, comum a todo organismo burocrático, faz os DSI agirem com um excesso de zelo insuspeitado.

– Às vezes, eles vetam um jornalista, a gente vai saber por que e eles contam que descobriram que ele participava de movimento estudantil nos tempos de faculdade, conta um coordenador de comunicação social.

Acrescente-se o fato de que o sistema de informações não alcançou ainda a desejada eficácia. E, às vezes, incorre em certos erros vulgares de avaliação das informações.

Há alguns anos, um repórter do Jornal do Brasil, credenciado no Palácio no governo Médici, pediu licença de um ano, foi para a Espanha. Quando voltou, pediu novas credenciais e o Palácio negou. O SNI, que tinha concordado no primeiro credenciamento, retirou a sua luz verde. O repórter recorreu às suas fontes para apurar as razões do veto e soube que o SNI tinha encontrado muitas fotos suas ao lado de Brizola e, por isso, o incluíra no rol dos suspeitos. As fotos eram da época em que Brizola era o governador do Rio Grande do Sul e jornalista setorista do Correio do Povo no Palácio Piratini.

O descredenciamento é um fator de pressão muito grande. Sem ele, os setoristas terão problemas nos ministérios, não poderão participar das viagens ministeriais e serão sempre vistos sob suspeição.

Jornalismo dedutivo

Essa série de limitações à ação do jornalista provoca inevitáveis reflexos na notícia veiculada.

Ao sofrer a intermediação da fonte, por exemplo, a notícia é depurada dos conflitos, envolvimentos, disputas e influências que caracterizam. todo o processo de tomada de decisão. O que chega à imprensa é um fato pretensamente objetivo, politicamente neutro, que contribui para divulgar a imagem asséptica de Brasília.

– Às vezes, em algumas reunião do CDE, a notícia que nos chegava através das fontes era de que o presidente Geisel recomendou isto, recomendou aquilo – conta um setorista da área econômica. Mais tarde, ficávamos sabendo que o presidente havia dado uma violenta bronca em determinado ministro, esmurrado a mesa, xingado.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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