A FAMÍLIA PAIVA VENCEU SEUS ALGOZES

Apesar da morte, alguns personagens podem ressuscitar, podem tornar-se incômodos

Os processos históricos são complexos e costumam surpreender aqueles que fazem análises apressadas, contaminadas pelas emoções do momento.

Por isso, confrontos importantes, quando vistos sem o distanciamento necessário, podem apresentar vencedores aparentes que depois de algum tempo, descobre-se, foram na verdade perdedores.

Os covardes que comandavam a ditadura empresarial-militar que subjugou o Brasil de 1964 a 1985 experimentaram por várias vezes o gosto de vitória que depois se transformou em derrota.

Foi assim, por exemplo, quando figuras perseguidas nos anos de chumbo, como Brizola, Miguel Arraes, José Dirceu, Dilma Rousseff e outros conquistaram postos de poder político no Brasil assim que a democracia foi retomada.

Em processos baseados na violência, como são as ditaduras, há, porém, revezes que parecem mesmo irreversíveis. Quando os gorilas do regime brasileiro mataram oponentes, em ações clandestinas ou não, imaginaram que aqueles estariam definitivamente riscados da lista dos que os impediam de alcançar seus objetivos.

Não sem razão.

Nada mais parecido com o fim definitivo que a morte.

Mas várias vezes vimos que a força das ideias (como no caso de Marighella) ou a força das circunstâncias históricas (como no caso do estudante Edson Luiz) podem ressuscitar alguns personagens e torná-los bastante incômodos.

A ressurreição que assistimos agora, no entanto, é algo inédito.

Quando levaram de casa o ex-deputado Rubens Paiva, em janeiro de1971, os brucutus do regime imaginaram que aquele “problema” estava resolvido para sempre.

Poderiam estar certos, já que o ex-deputado não era um líder de massas e não morreu à vista de seus companheiros, como foi o caso de Edson Luiz — algo que impulsionou a comoção geral.

O crime contra Rubens Paiva não foi esquecido por causa da obstinação e coragem da viúva, Eunice Paiva, que durante anos lutou pelo reconhecimento oficial da morte do marido e para que o governo ditatorial fosse responsabilizado. O primeiro objetivo foi alcançado quando ela ainda estava viva. O segundo, só no ano passado, seis anos após a morte de Eunice.

Essa determinação inspirou os filhos.

Vera Paiva trabalha desde 2014 na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, da qual Eunice fez parte, em 1996. Em entrevista à Folha de São Paulo, Vera deu uma amostra do poder de análise da mãe: “Ela sempre disse que a violência contra nossa família era uma violência contra o Brasil, porque era o início do momento em que a tática de desaparecimento político começava a ficar clara”.

Marcelo Rubens Paiva atuou em outra frente. Escritor sensível e talentoso, descreveu o sofrimento da família em um livro excepcional. A visão humana e nada panfletária do filho que vê o pai sumir para sempre e a mãe assumir sozinha a defesa do clã contra a ditadura arrebatou os leitores.

A obra, por sua vez, inspirou o diretor Walter Salles, amigo da família, a fazer o filme “Ainda estou aqui”, que emocionou milhões de espectadores e ganhou neste domingo (2) o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Não se trata de aval gringo para a película, que o público brasileiro já havia transformado em sucesso. Trata-se de mostrar ao mundo a crueldade da ditadura que fez tantos sofrerem no país e que espalhou sementes de maldade que desabrocham até hoje.

O efeito colateral dessa trajetória firme da família em busca da recuperação da memória sobre o caso é que a história de Rubens Paiva pode fazer com que 18 outros processos semelhantes, afetados indevidamente pela Lei de Anistia, possam ser reabertos.

Além disso, serve de alerta ao mundo inteiro, nesse momento em que neofascistas chegam ao poder pelo voto.

Não há receita única para combatê-los, mas a luta da família Paiva provou na prática que é um dos roteiros possíveis. Nesse caminho, as instituições muitas vezes pareceram frágeis, mas eles não deixaram de acreditar nelas. O ódio (que por vezes é um recurso legítimo contra os tiranos) foi deixado de lado em favor da racionalidade. Mesmo nos momentos mais difíceis, desistir nunca foi uma opção.

É exatamente o que o mundo atravessa agora: um momento muito difícil.

Que Eunice Paiva e sua família nos inspirem também a transformar nossas aparentes derrotas em vitórias definitivas, como ela fez com os algozes da ditadura.

CHICO ALVES ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)

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