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CHARGE DE LAERTE ( BRASIL)
Eleitoralmente o fascismo nunca foi tão forte. Nos EUA, no Brasil, na Índia, países muito populosos, obteve votações acima de 45%, superando o máximo de 37% dos nazistas na Alemanha de 1932
1.
Já tinham requentado a controvérsia sobre o caráter fascista (ou neofascista) da candidatura e do regime que Donald Trump pretendia implantar, quando seu titereiro Elon Musk fez aquela saudação nazista – completa – durante a posse do novo presidente americano. Sem surpresa (mas deveria haver surpresa), a mídia e os bem-pensantes trataram o episódio como continuação da controvérsia, não sua conclusão definitiva.
No fundo, menos mal: de nada serviria ter a consciência generalizada de que estamos diante de mais um avanço institucional do fascismo (um avanço enorme, considerando o peso dos Estados Unidos) sem que aproveitássemos a oportunidade de investigar melhor o que está implicado na configuração atual dos movimentos fascistizantes que vêm tomando espaço e poder em várias partes do mundo.
De fato, na forma, o gesto de Elon Musk reproduz com exatidão o movimento dos nazistas em suas saudações, com batida no peito e tudo: a saudação não só ao líder, mas à sua vitória (Sieg). Porém, em um paradoxo profundamente significativo, o que há de mais fascista na atitude do bilionário mimado não é a própria saudação, mas a intenção com que foi realizada. Nessa loucura, mais do que método, há cálculo. Melhor dizendo: o ato de reproduzir o gesto nazista é que dá o flagrante do espírito fascista do governo que se inaugura em Washington.
O que isso significa? Vejamos. Todas as reações que efetivamente encontramos podiam ser esperadas e, sem dúvidas, foram antecipadas por Elon Musk. Já mencionei os lúcidos e equilibrados que, ao estilo New York Times, lançaram dúvidas sobre a natureza do que todos vimos: “terá sido aquele gesto agressivo e idêntico à saudação nazista, realmente, uma saudação nazista? É controverso…”
Também houve os apologetas que, reconhecendo com toda clareza do que se tratava, tentaram sem sinceridade estabelecer uma distinção entre o gesto dos seguidores de Hitler e uma (algo folclórica) “saudação romana” – que foi bem o que os nazistas tomaram como sua fonte de inspiração. Há mais dois grupos: os neonazis que identificaram de imediato o sinal e se sentiram representados; e toda a gama de anti-fascistas, das esquerdas às pessoas que meramente ainda dão algum valor à mínima decência, que ficaram horrorizados, sensação acrescida de uma percepção desagradável de impotência.
É difícil não perceber que esse jogo de é/não-é/será-que-é está ancorado numa produção muito precisa e bem executada de cacofonia: durante aquele discurso de Elon Musk na posse de Donald Trump, não havia contexto nenhum para qualquer gesto, com o sentido que fosse, que envolvesse bater a mão no peito e erguer o braço. Além disso, nem mesmo um reacionário atual, por mais “provocador” que fosse, correria o risco de cumprimentar seu público com uma saudação nazista, não só por causa do sentido que a imagem carrega, mas também porque o gesto remete a uma simbologia de massas reunidas que já não é a nossa.
A única razão para realizar o tal gesto naquele momento preciso era justamente explorar a carga semiótica da remissão ao nazismo, jogando com a recepção pusilânime e a dubiedade mascarada da intenção de seu autor. No atual ambiente orientado para cliques, em que a expressão raramente busca a comunicação, mas quase sempre o impacto, a cacofonia é um triunfo, não um deslize.
Elon Musk provocou, certamente com plena consciência, uma onda de controvérsias, reconhecimentos e críticas que, sem chegar a alguma resolução concreta, a um efetivo repúdio generalizado, capaz de conduzir à demissão do poderosíssimo ministro magnata – afinal, Donald Trump teria pleno poder de remover aquele que oficialmente é seu subordinado, se repudiasse uma referência nazista sua em público –, só poderia chegar a um único resultado: disseminar ainda mais cacofonia (o que isto quer dizer?) e reforçar a sensação de absurdo (onde fomos parar?) e impotência (ninguém vai fazer nada?).
2.
Acontece que promover a cacofonia é um dos traços distintivos do fascismo de todos os tempos. É provavelmente o primeiro grande sinal, talvez até o mais inequívoco, de que algum fenômeno social é em última instância fascista ou conduz direto para ele. Quem entra na política e cresce nela usando a tática da cacofonia, da confusão, da quebra comunicativa, é definitivamente, inapelavelmente, um fascista.
Na Itália, na Alemanha e também nos países onde não tomaram o poder, líderes fascistas sempre manusearam com muito afinco os fios da expressão, propondo absurdos para depois recuar ou avançar de acordo com a resposta (feedback) que obtivessem. Fora do governo ou dentro dele, o fascismo pode aumentar ou reduzir sua dose de anticlericalismo, racismo, xenofobia, machismo, anticomunismo etc., de acordo com a repercussão que essas mensagens provocam no público. Não podemos esquecer o quanto o fascismo está ligado ao espetáculo.
Inclusive, essa característica é um dos elementos que tornam tão difícil defini-lo. Não é por acaso que o historiador português João Bernardo escolheu o termo “labirinto” para o título de sua obra titânica sobre o assunto: em seus termos, estudar o fascismo a fundo é se enredar em caminhos sem saída, sem volta e sem sentido: “como alguém que, fechado numa casa, procura a saída para a rua, o jardim, o sol, mas que a cada porta que abre só entra em novas salas e quartos, com outras portas, que dão para outros quartos e salas. É um pesadelo, evidentemente”. Em tempos de redes sociais, é claro que essa estratégia da vertigem ganha enormemente em poder. Mas não é só porque a mensagem chega a mais gente e mais rápido: é também porque as reações podem ser avaliadas e a mensagem modulada quase no mesmo instante. Por isso, continuamos caindo em armadilhas como o “desta vez foram longe demais” ou “agora vão perder apoio”, que tantas vezes dissemos e ouvimos desde 2018 no Brasil.
Já se decretou muitas vezes, por exemplo, que o fascismo não tem um programa, só o impulso, só a ação. Mas houve fascismos “com programa”, a começar pelo Mein Kampf e, por enquanto, a terminar com o 2025 Project. Já se afirmou também que o fascismo é totalitário – aliás, o termo surgiu para se referir criticamente às primeiras medidas de Mussolini e foi rapidamente adotado pelo ditador em um célebre discurso de 1925. Mas o regime italiano teve um compartilhamento de poder, bastante concreto, com a Igreja e a monarquia, a todo momento buscou “normalizar-se”.
Seria o fascismo italiano deficiente em fascismo? Por outro lado, alguns regimes muito autoritários são apenas em parte classificáveis como fascistas, porque a rigor são ditaduras clássicas, mas ao mesmo tempo mobilizam um enorme imaginário e várias técnicas políticas rigorosamente fascistas: Franco na Espanha, Salazar em Portugal, Pinochet no Chile.
No célebre livro de Robert Paxton Anatomia do fascismo (2004), por exemplo, essa dificuldade é explorada a fundo, levando a alguns embaraços interessantes, sobretudo no caso de Franco: o recurso à Falange, grupo rigorosamente fascista, basta para fazer do regime como um todo fascista? Afinal, o ditador se apoiou nas instituições tradicionais da igreja e do exército para governar e escanteou as lideranças falangistas. Com isso, Robert Paxton exclui Franco do rol dos fascistas; mas se o apoio de instituições conservadoras tradicionais é suficiente para fazer de Franco um ditador não fascista, o que dizer do próprio Mussolini? Além disso, o discurso chauvinista, o amor à violência e o culto ao líder que permearam o regime desde o desembarque em 1936 até a morte do ditador em 1975 são menos fascistas do que os casos da Itália e da Alemanha? E por aí vai.
Perante as dificuldades de conceitualização impostas pelo fascismo como regime, governo ou movimento político coordenado e historicamente determinado, muitas vezes os autores passam ao exame do fascismo como fenômeno social. É o que acontece com o próprio Robert Paxton, mas também é o que encontramos na famosa conferência de Umberto Eco sobre o “fascismo eterno”, onde é apresentada a ideia das 14 características que configuram o “Urfascismo”, aquele fascismo “das origens” ou “das profundezas” – mas que nem sempre estão presentes em algum movimento ou regime em particular. Daí o argumento de Eco sobre a “semelhança de família”, ao estilo de Wittgenstein: grupos que têm partes diferentes das categorias listadas pertencem ao mesmo conjunto de fascismos, assim como parentes que herdaram traços não coincidentes de seus ancestrais.
Mas esse também é um movimento confortável demais, inclusive porque não é fiel ao nome que Eco escolheu: o prefixo “Ur” pressupõe algo que provoque uma emergência, uma consequência; deve existir, na ideia de um “Ur”-fascismo, um movimento constitutivo que está ausente da lista. Ao contrário, Eco se limita a elencar traços que foram identificados com o fascismo (sobretudo o que ele testemunhou como criança italiana), mas que podem ser encontrados em qualquer conservadorismo.
Sem entrar nos meandros da emergência de um fascismo palpável no campo social, a lista parece arbitrária e um pouco redundante, já que vários itens se recobrem em parte. Por exemplo: o fascismo é nacionalista e cultua a violência; mas como um indivíduo nacionalista desenvolve o fascínio pela agressão que mais reconhecemos como fascista? A lista de Eco não nos ajuda a responder – e nem tem essa ambição, é claro.
3.
Outro personagem que tem sido recuperado em nossos tempos de fascismo ressurgente é Félix Guattari, com ou sem a companhia de Gilles Deleuze. Guattari tem a enorme vantagem de pensar em termos de desejo e micropolítica, o que fortalece aquela perspectiva genética da qual sentimos falta em Eco. Há alguns textos que desenvolvem essa perspectiva de maneira que permanece muito rica ainda hoje, como o “Micropolítica e Segmentaridade”, com Deleuze, nos Mil Platôs, a conferência “Todo Mundo Quer Ser Fascista”, (1973), ou o artigo “Micropolítica do Fascismo”, publicado em A Revolução Molecular (1981).
Félix Guattari aponta um caminho fecundo para o caso atual porque é o autor que examina mais a fundo o fascismo como tendência, não como forma ou episódio histórico. Ele chega a esse tema pela via da crítica à psicanálise clássica, vendo nas manifestações de atitudes fascistas uma produção do desejo que, em vez de expandir relações e conexões, cria barreiras e castrações. Com uma linguagem que não é a de Félix Guattari, podemos dizer que o desejo fascista produz, mas é entrópico; pode soar paradoxal, mas é assim mesmo que o fascismo absorve e esgota as energias do campo social, essencialmente múltiplo e metaestável. É desejo de policiar, de controlar, de segmentar, de setorizar. Em potência, há fascismo tendencial no dia-a-dia, o que leva Foucault a nomear seu prefácio do Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, “Introdução à vida não fascista”.
Se voltarmos a Eco e aos demais autores que trataram do tema, parece haver, antes de mais nada, uma fenomenologia do fascismo, talvez involuntária, em muitas obras de história e ciência política. Isto é, suas tentativas de definição ou descrição apontam para fenômenos emergentes, que surgem na via para o fascismo e em sua instalação. Essas emergências envolvem sempre algo da ordem do tendencial: o fascismo conduz ao chauvinismo, inspira a rejeitar a modernidade, incentiva a agredir intelectuais e artistas etc. Ou, na via inversa: quando viceja o pendor ao chauvinismo, à antimodernidade, à agressão de artistas e intelectuais… então tende-se ao fascismo.
Esse caráter tendencial sugere algo que, colocado em termos diretos e simples, parece um pouco banal: o fascismo se alimenta de elementos disponíveis no campo social. Ou seja, de tendências, justamente. Guattari, escrevendo com Deleuze, expressa essa ideia com uma fórmula enigmática e instigante: no fascismo, dizem, “uma máquina de guerra encontra-se instalada em cada buraco, em cada nicho”. Ou seja, o fascismo promove uma centralização e uma purificação, mas seu alimento principal é a diversidade dos impulsos singulares de cisão, segmentação, dominação e exclusão: “fascismo rural e fascismo de cidade ou de bairro, fascismo jovem e fascismo ex-combatente, fascismo de esquerda e de direita, de casal, de família, de escola ou de repartição”, enumeram.
Se tomarmos, por exemplo, as classificações do fascismo como caracterizado pelo nacionalismo e a xenofobia, o tradicionalismo e o patriarcado, não é difícil notar aí as manifestações de uma mesma tendência. Vamos começar lembrando que o termo “nação”, usado hoje basicamente para falar do Estado-nação ou de etnias, na origem se referia a qualquer grupo coeso em torno de um mesmo princípio. Pode, efetivamente, ser étnico, linguístico e nacional – de modo que povos sem território definido são nações –, mas também já foi religioso, ideológico etc. Como lembra Habermas, durante muitos séculos os doutos e estudantes de uma mesma disciplina universitária eram chamados de “nação”.
Então todas essas formas visíveis do fascismo remetem a uma desejo de unidade e coesão que pode dizer respeito à “pátria”, à “família”, ao “povo”, ou a todos esses – no fundo, tanto faz. No reverso da moeda está a necessidade de enfraquecer o outro ou o diferente, que seja em termos raciais, linguísticos, de comportamento sexual e identidade de gênero etc. Tudo aquilo que é desviante, e devemos levar a sério o movimento implícito na noção de desvio, que envolve bifurcações, criações de novos caminhos, a introdução de relações entre pólos que são intrinsecamente diferentes, uma realidade de maior complexidade.
Na primeira metade do século passado, esse tipo de tendência era conhecido como “comunitária”, em obras como as de Tönnies, Bergson ou Simondon. Talvez não seja a melhor palavra para se usar hoje, mas o que devemos reter é essa ideia de um fechamento em si, de uma procura da unidade que exclui tanto quanto possível a alteridade. Mais uma vez, nenhuma dessas manifestações é, sozinha, capaz de determinar o caráter fascista de alguém, de um grupo, nem mesmo de um movimento. A própria tendência “purificadora” pode ser encontrada em inúmeros grupos e movimentos, sem que o chamemos de fascista – embora seja sempre redutora e esclerótica. Mas é possível dizer que este é o primeiro passo fascistizante, uma espécie de núcleo duro sem o qual o fascismo seria impossível.
4.
Antes de prosseguir, é preciso fazer uma observação importante a respeito dessas categorias todas que manifestam a tendência unificadora, comunitária, purificadora que sustenta o fascismo. É importante compreender que essas categorias não são bem determinadas, nem preenchidas por um sentido que tenha de fato uma comunicação com o real (sempre confuso, sujo, híbrido). Aquilo que o fascista ama é sempre abstrato. Assim, se o fascista diz “pátria”, ele pensa em emblemas como a bandeira, o brasão ou o hino; não é o espaço comum de vida de um povo que compartilha certas relações econômicas, linguísticas, culturais.
O mesmo vale para a noção fascista de “povo”, que nada tem a ver com a população ela mesma, com suas experiências, manifestações, sofrimentos. Não se pode confundir de jeito nenhum o nacionalismo fascista, abstrato e entrópico, com o nacionalismo anti-imperialista de um Brizola, por exemplo: é a diferença entre “amar a pátria” e almejar a uma prosperidade compartilhada.
Já começamos a vislumbrar de onde vem a força da cacofonia no fascismo, em direta conexão com seu aspecto proteiforme e abstrato. Devemos dizer com todas as letras: a perspectiva do fascismo é sempre um horizonte impossível, simplesmente porque a tal unidade perfeita, a tal pureza, não existe, é óbvio. Mas propor algo que não existe e não pode ser alcançado é perfeitamente viável, contanto que se consiga trabalhar com signos maleáveis, a ponto de cada grupo da sociedade, até mesmo cada indivíduo, poder projetar neles o que for de seu desejo, de sua fantasia.
A comunicação fascista é dúbia e absurda porque não é feita para entregar sentido, mas para recebê-lo. Ao contrário do que parece, o fascismo não propaga; antes, ele absorve. Não quero repetir aqui tudo que Letícia Cesarino escreveu em O Mundo do Avesso, mas o modo de organização dos algoritmos das redes sociais parece talhado para favorecer essa comunicação que toma o ruído como matéria-prima para fabricar os sinais e abraça o absurdo.
Tomemos, por exemplo, uma declaração que tem sido bastante comum: quando alguém é criticado por repetir alguma proposição racista, misógina, xenófoba ou o que seja, logo responde: “mas então agora tudo é fascismo?” De certa forma, a reação tem seu sentido, embora não exatamente o que concebe quem a pronuncia. Afinal, racismo é racismo, misoginia é misoginia e xenofobia é xenofobia, cada uma dessas atitudes condenável por si própria. O acréscimo da categoria de “fascismo” não seria uma redundância ou um excesso?
Acontece que quando entendemos o fascismo como tendência, não como categoria classificatória, entendemos algo que costuma ser contraditório: para que haja fascismo, e mesmo muito fascismo, não é preciso que ninguém seja fascista. A bem dizer, é possível imaginar uma sociedade entregue por completo ao fascismo mas composta apenas por perfeitos democratas. Basta que as tendências castradoras prevaleçam sobre as conectivas.
É graças a essa maleabilidade que o fascismo consegue constituir um movimento suficientemente coeso por um período suficientemente longo: é porque ele capta essas tendências entrópicas, nas diferentes formas que pode ter, já disponíveis no campo social, e as conecta. O fascismo mais bem-sucedido é aquele que consegue vincular as visões de mundo mais disparatadas, inclusive contraditórias. Fanáticos religiosos de braços dados com milicianos, ultraliberais abraçados a microempresários das periferias e assim por diante. Enquanto cada um desses grupos puder imaginar que a mensagem do líder, na verdade, reflete à perfeição a sua concepção, e não a das demais células, o movimento floresce.
Encontramos novamente a latência do fascismo. Nenhuma surpresa aí. A aspiração ao imaculado, à perfeita identidade, é uma tendência comum, aliás bastante natural, no campo social. Existem expectativas de comportamento, por exemplo, de determinado grupo, que por vezes são levadas a sério demais: “todo x age de tal maneira”; “x que se preze faz tal coisa”; “quem não faz isso e aquilo não é realmente x”… e assim por diante. Esse tipo de pensamento é limitador, mas não é fascista por si só. Falta ainda um impulso para a passagem ao ato. Depurada de toda sua confusão, o que resta para encontrarmos a “mensagem fascista” é a injunção a tornar as frases acima uma realidade concreta: “todo x agirá de tal maneira”; “x sempre fará tal coisa”; “não haverá x que não cumpra sua obrigação de fazer isso e aquilo”…
Por esse prisma, é essa necessidade de passar à ação que tem servido para associar a emergência de movimentos fascistas organizados e suficientemente fortes, como possibilidade social e política concreta, aos momentos de crise, em particular a iminência de uma vitória das esquerdas. As classes médias sentem seus pequenos privilégios ameaçados e as dominantes vêem um risco concreto para suas propriedades. Incapazes de responder diretamente à fúria das massas, recorrem aos fascistas, que articulam como ninguém a violência com um discurso alternativo à esquerda – em geral, nacionalista e/ou religioso.
Foi assim, sem dúvida, em 1919, com a volta das trincheiras e o desmonte da economia de guerra, conforme contado por Clara Mattei em A Ordem do Capital. Talvez mais ainda no início da década de 1930, quando o ensaio de uma recuperação industrial na Alemanha foi sufocado no berço pela Grande Depressão. Deixemos para mais tarde o caso da década de 2010, que muitas vezes tem sido tratada como exceção, porque não teria havido uma iminência de triunfo da esquerda, pelo menos não revolucionária.
Por enquanto, vale acrescentar que, fora das crises, o fascista propriamente dito, ou seja, aquele que leva a ferro e fogo as proposições do parágrafo anterior, é considerado ridículo – e com muita razão, nem preciso dizer. Mas a ameaça a padrões de vida, principalmente aos pequenos privilégios, é o ovo da serpente, que começa com a procura de bodes expiatórios, passa pela cumplicidade dos poderosos que sentem seu poder ameaçado, a covardia de quem poderia se opor, mas acha que o ridículo nunca poderá aceder a uma posição de respeito, e culmina na emergência muitas vezes orgânica de líderes que aliam radicalismo e carisma.
5.
Resta ainda a questão da crise que fomenta o fascismo atual, “fascismo tardio” (Alberto Toscano) ou “neofascismo”. Uma dificuldade que permanece mesmo com Guattari é justamente a inscrição histórica do fascismo. Como diz Paxton (entre outros), não há fascismo antes do século XX, porque ele é um fenômeno da era industrial, das classes médias urbanas e dos meios de comunicação de massa.
É por isso que nem mesmo no século XIX se está autorizado a falar em fascismo: a ausência de grandes manifestações convocadas pelo rádio exclui, por exemplo, o Napoleão III de 1848-1851, com sua articulação de conservadores e lúmpen, seu recurso a grupos de rufiões paramilitares e outros traços que, quando ocorreram a partir de 1920, de cara identificamos aos fascistas. Também exclui movimentos igualmente fanáticos, geralmente de inspiração religiosa, que existiram em séculos anteriores e de vez em quando tomaram o poder, causando grande violência – digamos, alguém como Savonarola.
A mesma questão pode ser lançada para o presente: se não podemos falar em fascismo antes de 1918, será que estamos diante do mesmo fenômeno hoje, no tempo da comunicação digital atomizada, da indústria que elevou o just-in-time à escala global, do precariado urbano? Ou estamos diante de algo inteiramente novo (merecendo outro nome) ou só parcialmente (justificando o uso de “neofascismo” – mas aí chamaríamos Napoleão III e os Savonarolas da história de “protofascistas”?)
Historicamente, Paxton está circunscrevendo o fascismo àqueles movimentos que se seguiram à 1a Guerra, reagindo à crise econômica do retorno à ordem liberal, à desmobilização, à derrota (no caso da Alemanha) e à frustração com o butim (no caso da Itália). O fascismo se parece, assim, com uma elaboração monstruosa da experiência (muda, diria Walter Benjamin) das trincheiras e da guerra mecanizada. A consequência é que os dezembristas, a Ku-Klux-Klan, a Action Française e outros semelhantes são relegados à condição de precursores.
Para não deixar em branco esse ponto importante, vale citar a grande crítica recente a essa perspectiva que circunscreve o fascismo a um momento histórico e produz essa série de precursores: trata-se de Fascismo Tardio, livro de Alberto Toscano publicado em 2023. Por mais que se queira reservar a categoria de fascismo a uma doutrina que se soma, na Europa, às mais tradicionais liberalismo, conservadorismo e socialismo, é mera conveniência limitar o conjunto das práticas autoritárias, excludentes e desumanizadoras que o caracterizam a um momento excepcional no interior do campo político ocidental.
Como aponta Toscano, essas práticas já vinham sendo exercitadas, e com muito sucesso, nas colônias e contra a população não branca dos Estados Unidos. O exercício de um poder arbitrário com dois ritmos, a disseminação no tecido social de uma lógica de purificação e expulsão, a formação de grupos paralegais violentos para reforçar leis de segregação, tudo isso era corriqueiro para quem estava fora da Europa, mas sob o jugo europeu. Por sinal, os primeiros campos de concentração foram construídos pelos ingleses na África do Sul.
6.
Talvez a dificuldade nasça, em parte, não só do caráter proteiforme dos fascismos, mas também da circunstância de ter sido o nome de um dos movimentos surgidos ao fim da 1a Guerra, e o primeiro a obter sucesso, isto é, chegar ao poder. As características do fascismo de Mussolini se transplantam com facilidade para o conceito em geral, o que quase inevitavelmente provoca confusões. Se não foi praticado na Itália de 1922-1945, não é fascismo? Tudo que ocorreu naqueles anos é fascismo? Movimentos de extrema-direita daquele período, que foram muitos, só contam como fascismo se eram “parecidos” com os grupos de Mussolini e Hitler? (Ou seja, seus imitadores?)
Há outras fontes de confusão, sobretudo de ordem terminológica, que se desenvolveram após 1945 e parecem ter piorado na última década. Por exemplo, a absorção um tanto açodada do fascismo na categoria dos totalitarismos, fazendo dele um caso particular da completa absorção da sociedade pelo Estado; parcialmente culpada dessa confusão é Arendt, que fez do nazismo uma espécie de paradigma de todos os fascismos possíveis e o aproximou demais do regime soviético. Mas como comparar a experiência ultranacionalista de quem garroteou os trabalhadores em nome do anticomunismo e em benefício da reação com o processo que levou de Kerenski a Stalin? Não há parâmetro viável.
Muito pior, porque com consequências nefastas nos nossos dias e, portanto, para nossas vidas, é a impostura desavergonhada que consiste em reduzir os movimentos com clara (ou nem tão clara) inspiração fascista à mísera categoria do “populismo”, como encontramos na obra sempre citada de Jan-Werner Müller. Este é um termo guarda-chuva que, nos últimos tempos, tem servido apenas para lançar no mesmo cesto do indesejável as políticas que se apoiaram na mobilização das massas e dos trabalhadores, quer seja para obter melhorias em sua condição de vida, quer seja para subjugá-los sob uma bandeira nacionalista forjada.
É uma definição confortável, baseada no “nós contra eles”, em que o “eles” é sempre a classe dominante, algo que definitivamente não é o caso do fascismo. Se já não fosse ruim o suficiente, hoje ainda temos a categoria do “iliberal”, que procura igualar o neoliberalismo à democracia, como sendo a única democracia possível, e ainda por cima apagando dos registros a reiterada cumplicidade dos liberais realmente existentes com os fascismos de ontem e os de hoje.
Já deveríamos estar preocupados, ainda antes disso, com a tendência, principalmente no cinema e audiovisual americano (que é bastante influente), de reduzir toda a experiência traumática dos anos 1920-1945 ao nazismo alemão e este ao antissemitismo, holocausto em particular. Simbólico a este respeito é o Bastardos Inglórios de Tarantino, em que tudo nos nazistas parece comum e passável, exceto o desconforto da ocupação de Paris (como ousam?) e a perseguição do pitoresco e aproveitador Hans Landa à jovem judia Shosanna.
Não deveríamos estranhar que começassem a pipocar avaliações de que o nazismo não era tão ruim ou, pior ainda, que o fascismo italiano, em comparação, era “light”. Essa postura nos legou, para ficar só na Itália, figuras como Berlusconi, Salvini e agora Meloni. Mas também generalizou uma concepção de que governos repressivos ao extremo, com políticas de esmagamento do trabalho e “retorno às tradições”, são perfeitamente aceitáveis – contanto que não haja campos de extermínio (por ora).
Tanto a escolha pelo termo “populismo” quanto a redução do fascismo a Hitler dão indícios de que há pelo menos duas décadas o mundo já anda predisposto a abraçar ou pelo menos tolerar o retorno de um fascismo institucional. Nem chega a surpreender que o gesto de Musk seja recebido com tão pouco repúdio. Os sintomas que mais saltam aos olhos são elementos como a “guerra ao terrorismo”, a desumanização dos migrantes, a virada anticaritativa que atingiu em cheio o mundo das religiões.
A economia, onde passou a dominar uma lógica atomizada de competição brutal mesmo nos campos da existência considerados não exatamente econômicos, também serviu para ralear os laços sociais que poderiam ter se mantido não-fascistas. No plano do discurso, temos o sistema das redes sociais que propaga antes a cisão que a comunicação, antes o absurdo que o sentido – e remeto novamente ao livro de Cesarino.
7.
Voltemos, então, ao retorno do fascismo como potência política na última década, ainda mais agora que ele vai se tornando a força até mesmo dominante. Na verdade, em termos eleitorais, o fascismo nunca foi tão forte. Nos Estados Unidos, no Brasil, na Índia, países muito populosos, obteve votações acima de 45%, superando o máximo de 37% dos nazistas na Alemanha de 1932. Derrotado a duras penas na terra do Tio Sam, retornou ainda mais forte e violento. Algo semelhante ocorreu na Itália e, em menor escala, na Alemanha.
Do mesmo modo, apesar das conhecidas alianças entre Hitler, Franco e Mussolini, não havia no “primeiro momento do fascismo” uma internacional fascista como a que se constituiu neste século. A associação entre o capital e os grupos fascistas também era bem menos direta, já que os grupos industriais dos anos 1920 e 1930 acreditavam estar apenas “se servindo” de uns pândegos para se livrar dos comunistas, até que a situação retornasse ao “business as usual”. Hoje, ao contrário, temos líderes fascistas que parecem brotar do projeto pessoal de alguns bilionários sedentos de dominação. Inclusive um deles, que deveria ter mais o que fazer, está colocando a mão na massa para destruir os últimos resquícios de um poder público funcional no maior império do planeta.
Muita gente fica confusa com essa curva da história, porque não enxerga aquelas condições que sempre foram vistas como necessárias para a emergência de um fascismo triunfante. A crise de 2008, por exemplo, já é coisa antiga. A esquerda revolucionária não tem a menor perspectiva de chegar ao poder. Não há nem sombra de ameaça ao controle do capital em escala global; ao contrário, temos oligopólios cada vez mais articulados e incontestes.
E mesmo assim existe uma sensação de crise, de ameaça aos modos de vida, de iminente transformação. Aliás, já pudemos perceber, há muito, que nosso tempo é de crise constante: pulamos, e ainda vamos pular muito mais rapidamente, de uma situação extrema para a seguinte. Pandemias, guerras, incêndios, inundações, bloqueios do comércio internacional, derretimentos financeiros… que sei.
O filósofo Marco Antônio Valentim se refere ao fascismo como princípio político por excelência do antropoceno. É claro: uma política de crises constantes para um contexto ambiental e social de crises constantes. As condições do que foi entendido por democracia ao longo do século XX, como a prosperidade geral (embora desigual) e a comunicação pretensamente racional, mas pelo menos balizada, parecem estar fora da equação.
Restam a redução da vida coletiva ao conflito generalizado, a tentativa de cada um para garantir um quinhão do que sobrar de bem-estar e, claro, a busca de formas alternativas de conexão inter-individual – das religiões ao nacionalismo, da filiação política à livre associação fascista.
Haveria alternativas? Sem dúvida. Momentos de crise prolongada ou profunda também podem suscitar formas de organização econômica baseadas na solidariedade, uma aproximação social que reconheça a indistinção dos riscos e, por isso, acolha a diferença, e assim por diante. Polanyi esboçou esse cenário já em 1944. Mas hoje tudo isso parece ser apenas um cardápio de respostas à crise, quando o que seria necessário são preparativos concretos.
E se há algo em que o fascismo atual se destaca, diferenciando-se de sua história já secular, é que parece ter se adiantado às suas tradicionais condições de emergência. Parece uma versão acelerada e intensificada daquele “fascismo preventivo” que Marcuse identificou nos anos 1960-1970. Aquele só se adiantava aos avanços de uma esquerda com ancoragem social.
Desta vez, quando os primeiros sinais da catástrofe climática mal começavam a aparecer para o público geral, já vociferavam seus negadores, colocando a culpa em migrantes, liberais, transgêneros e ateus. De delirante, o fascismo parece que passou a ser premonitório.
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CHARGE AROEIRA ( BRASIL)
DIEGO VIANA ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
*Diego Viana é jornalista.