OS DOCUMENTOS SECRETOS DO EXÉRCITO QUE LEVARAM À FARSA SOBRE RUBENS PAIVA

Confira o comunicado 446/71, classificado como “Informe 70” da Agência RJ, dos arquivos do SNI, com data de 26/01/1971, seis dias após a prisão do ex-deputado

13 de fevereiro de 2025, 18:38 h

A partir da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino, que concluiu, instado por um recurso do Ministério Público Federal (MPF), que ocultação de cadáver é um crime permanente, uma vez que segue sendo cometido enquanto o corpo não é encontrado, e por isso não deve ser beneficiado pela anistia da ditadura, tem havido inquietação entre os militares – avessos a que se mexa nesse passado -, e entre direitistas históricos.

O atual ministro da Defesa, José Múcio, por exemplo, disse numa entrevista no programa Roda Viva (10/02), ser favorável a que se ajude às famílias dos desaparecidos políticos a localizarem seus corpos, mas que qualquer coisa além disso “é revanchismo”. Independentemente dessas opiniões, no entanto, a pauta está posta desde que o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, saiu do âmbito da arte para remexer a história recente. Motivou, também, a análise, no STF, de um outro recurso do MPF (Ministério Público Federal) contra militares acusados de homicídio qualificado e ocultação de cadáver cometidos durante a guerrilha do Araguaia.

A decisão do ministro Flávio Dino teve maioria formada na corte. Ele diz não se tratar de uma revisão da Lei da Anistia, mas de uma peculiaridade. “Ora, quem oculta e mantém oculto algo, prolonga a ação até que o fato se torne conhecido. O crime está se consumando, inclusive, na presente data, logo não é possível aplicar a Lei de Anistia para esses fatos posteriores”, defende.

O esforço do Exército Brasileiro para ocultar os seus crimes durante a ditadura vem de longe. Ainda no vigor do regime de opressão, quando os cadáveres resultantes dos “acidentes de trabalho” caíam às pencas em seus colos, os oficiais iam “dando um jeito”. Para cada “acidente” ou falha, eram obrigados a montar uma versão, que desembocava em outra, e outra, e outra…

Um documento localizado por mim nos documentos do inquérito da morte de Rubens Paiva durante as pesquisas para a Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio), e que permaneceu inédito, diz muito sobre essas falhas e a busca desesperada para consertar “erros” que poderiam evidenciar o que eles desesperadamente buscavam esconder.

Trata-se do comunicado 446/71, classificado como “Informe 70”, de seis páginas, da Agência RJ, localizado nos arquivos do SNI, com data de 26/01/1971, seis dias, portanto, após a prisão do ex-deputado federal Rubens Paiva. O documento tem anotações à mão, que recomendam: “Essas cartas, apesar do que já revelam, é interessante que sejam analisadas”.

A observação traz a data de 27/01/1971 na margem esquerda, ou seja, quando o caso da morte de Rubens Paiva nos porões do DOI-CODI fazia ferver os miolos dos envolvidos. Na margem direita há rubricas, mas impossíveis de decifrar de quem sejam. Dias depois, em 03/02, alguém deu ciência e ordenou três providências, com o carimbo de: “leitura precária”: 1) subsolo do setor; 2) cópias ao Fq; 3) arq. E, como bem convinha à burocracia monstruosa da época, em 18/02, a ordem de arquivar foi cumprida. Mas, também de acordo com a paranoia da época, em 23/02 o material é retirado do arquivo e destruído, com a justificativa de estarem “ilegíveis”. Claro, se a prisão de Rubens Paiva se deu por ele estar de posse das cartas vindas do exterior, se as cartas fossem encontradas no DOI-CODI, poderiam vir a constituir prova material de que eles estiveram com ele em suas dependências.

documento 1

Juntamente com as cartas – dos exilados no Chile para os parentes, no Rio -, que Rubens estaria incumbido de entregar, o informe emitido pelo SNI tinha em seu conjunto de seis páginas um documento altamente comprometedor. No alto da página, a razão para o pânico nos porões: o atestado da prisão de Rubens Paiva (que àquela altura todos negavam peremptoriamente) e todo o roteiro percorrido por ele no “sistema”, até morrer nas mãos dos torturadores, estava estampado no documento, já disseminado para 60 pessoas, como descrito no alto esquerdo da página.

E agora? Cinco dias depois de dar entrada na 3ª Zona Aérea como preso (em sua casa, que a repressão chamou de “aparelho”) pela equipe do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) e, ao ser transferido para o DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita 435, ser morto na tortura, não havia como devolver o corpo massacrado à família. Rubens Paiva precisava desaparecer e a confissão de que o Estado brasileiro teve o ex-deputado em seu poder, também. E não só. Em seu nome, foi aberto o prontuário “24.388”.

documento 2
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De pouco ou nada adiantou a observação no final do documento, que dizia:

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Bateu o medo de que 60 cópias para um documento daquele nível de periculosidade eram um exagero e poderia vazar além muro. Além do mais, o advogado da família, Lino Machado Filho, havia protocolado, naquele mesmo dia (25/01/1971), um pedido de habeas corpus em favor do seu cliente, Rubens Paiva, arrolando o comandante do 1º Exército de então, o general Sizeno Sarmento.

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A temperatura sobre o caso do ex-deputado detido subiu ainda mais quando o Supremo Tribunal Militar (STM), em ofício do ministro brigadeiro Grun Moss, relator, endereçado ao general Sizeno Sarmento, comandante do 1º Exército, entrou no caso, exigindo informações sobre o “preso” “no dia 20 de janeiro” – observem que eles detinham total conhecimento do que se passava -, embora negassem para a família e para o advogado tê-lo prendido.

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Vendo que até o STM tinha informações sobre a prisão, pois descrevia corretamente a data em que ela foi efetuada, o comando do Exército tomou o rumo da mentira, da farsa e da negação de seus crimes, tornando, doravante, o caso Rubens Paiva insolúvel, ao mesmo tempo em que os obrigou a percorrer caminhos que nem sequer o realismo mágico de Gabriel García Marquez daria conta de abranger. Negaram o óbvio, o que já estava registrado em documentos oficiais e já descrito com riqueza de detalhes: a prisão de Paiva e sua passagem pela 3ª Zona Aérea e pelo DOI-CODI. A situação exigia solução imediata. E o que não se pode dizer daquela gente é que não eram “criativos”. Montaram a farsa da fuga no Alto da Boa Vista, com requinte de croquis, detalhamento de velocidade, percurso, explosões e, para que não pairassem dúvidas, requisitaram uma perícia do “local” da fuga, elaborada pelo instituto de perícia legal. A mentira ganhava tração e velocidade. E nunca mais eles deixariam de mentir a respeito.

documento 7

Estava oficializada a farsa da fuga de Rubens Paiva das mãos de seus algozes, mesmo que numa descrição insólita, em que ele, que tinha um corpo avantajado, teria de ter escapado do banco de trás de um fusca, com as mãos algemadas, sobrevivido a rajadas de tiros se escondendo atrás de um poste de concreto e sumido no ar. Mas observem que a documentação da “sindicância”, datada do dia 12 de fevereiro de 1971 – 23 dias depois de sua prisão -, providenciada pelo próprio Exército para comprovar a mentira meticulosamente montada, tem carimbo e oficialidade. Não por acaso eles gritam: “revanchismo!” a cada vez que se mexe nesse passado. Foram além, muito além do tolerável e do ridículo, para encobrir seus crimes hediondos.

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Retrocederam na data do acontecido, arredando para o dia 22 de janeiro, a tal “fuga”, para que tudo fizesse sentido. Caso fosse real, Rubens teria empreendido fuga dois dias depois de ser preso, aos ser transferido para uma outra unidade. E o que é mais vergonhoso: o documento foi assinado pelo comandante Sizeno Sarmento, do 1º Exército. Sim, ele se prestou a isso para salvar a própria pele e a de seus comandados dos porões onde Paiva fora sacrificado. À frente, o major Francisco Demiurgo Santos, comandante do DOI-CODI, e comprometendo o capitão Raimundo Ronaldo Campos, que, em 2014, assumiria para a Comissão da Verdade do Rio que mentiu sobre a fuga, por ordens superiores. Como alegaram os nazistas da SS na Alemanha.

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No documento a seguir, os detalhes da peça de ficção montada dentro do 1º Exército que, é bom que se diga, não tem como uma de suas especificidades montar roteiro de filmes ou peça de teatro.

Documento 10

É possível que o leitor já esteja exausto, querendo interromper a leitura, mas pelo bem de restabelecer a verdade, a partir do que esses senhores produziram, e para que não venham amanhã desmentir o que é irremediável, exibo aqui mais detalhes do que foram capazes de “criar”. Talvez a academia de cinema, que concede o Oscar, devesse abrir uma nova categoria, para premiar, pós mortem, o conjunto deles.

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Por fim, as manchetes coniventes com as farsas da época. Esta, especificamente, foi lida em Londres por Veroca, a filha mais velha dos Paiva, que só então tomou conhecimento do que se passava com o pai e toda a sua família. Vera Paiva mobilizou-se para voltar ao país, como relatou em entrevista ao programa “Denise Assis Convida”, de 26 de novembro de 2024, exibido aqui, no 247.

Documento 19

DENISE ASSIS ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

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