TOM ZÉ: FABRICAÇÃO DO “LÁ DE FORA”

CHARGE REP ” ( ARGENTINA)

Por um triz

Como prometido, volto ao documentário de Décio Mattos Jr., Fabricando Tom Zé, para tratar de um instante agônico. Na cena, Tom Zé gesticula agitado, muito irritado com a qualidade do som; enfático, adverte à produção europeia do show:

“A gente precisa de explicar para eles que a gente é louco. Se de noite a gente começar a fazer o show e não estiver satisfatório, a gente para. Aí é que está o problema: essa banda é louca”.[1]

O local era nada menos do que o palco do Festival de Jazz de Montreux. Ainda assim as condições técnicas eram insuficientes; o retorno do som era muito precário e até o volume dos microfones estava desajustado. Tom Zé não contemporiza e, num inglês enraivecido, repete mais ou menos o que havia dito em português para sua banda:

“It’s impossible! I have to be honest with everybody. I don’t play with this kind of sound. Who knows if people don’t like the style. Aí, tá certo o que estou falando? Se não estiver, grita daí, pelo amor de Deus. If you don’t like the style, substitute the band”.[2]

A partir desse momento a situação escala vertiginosamente. Alguém da produção europeia do show dirige-se a Tom Zé por meio de um intérprete. Arrogante, em inglês claudicante, pobre como a rima, caminha na direção do músico brasileiro, isto é, a estrela do espetáculo e, em pouco mais de 15 segundos, assume, sem sequer se dar conta do caráter inaceitável de sua atitude, um ar de insuportável superioridade colonial:

“Tell him that if he is very precise, I don’t know anybody better than Ben. So, if he wants somebody else, he should take his own engineer then. He has to be very precise about what he wants; if he is precise, tell the frequencies; instead of ‘bla, bla’. Tell precise things and we’ll do it”.[3]

Quando um certo alguém

Esse certo alguém, cujo domínio do idioma de Shakespeare é tão precário quanto sua capacidade de reconhecer o excepcional artista que tem diante de si, não olha para Tom Zé enquanto fala; dá atenção somente ao tradutor. Invade o espaço do brasileiro ao abrir os braços sem cuidado, um pouco mais e tocaria agressivamente no outro. Ora, como duvidar?, ele é o verdadeiro dono do palco, temporariamente invadido por um músico dos trópicos. E ao reduzir a legítima preocupação estética de Tom Zé a um “blá-blá”, levanta os braços para o alto, como se dissesse, “por que estou aqui?” Ao concluir sua peroração, vira as costas e sequer mira a Tom Zé.

(Sejamos diretos: esse certo alguém jamais diria a um músico norte-americano ou europeu que sua reclamação por qualquer coisa seria um “blá-blá-blá”.)

A ironia corta fundo, trazendo à tona o preconceito que o produtor europeu gostaria de ocultar. A etimologia da palavra “bárbaro” tudo ilumina. Oriunda do grego antigo, “βάρβαρος”, foi registrada na Ilíada, de Homero, para se referir aos cários, um povo “não-grego”. Palavra-pura-exclusão, portanto.

Não é tudo: “βάρβαρος” é uma onomatopeia e quer dizer precisamente “blá-blá-blá”! Ou seja, mera emissão de som, sem sentido decodificável. Bárbaro, pois, é o todo aquele que não fala grego; melhor, o ático ateniense. Claro: para o ateniense — bem entendido.

(Pois é…)

A reação de Tom Zé é proporcional à violência simbólica do certo alguém suíço. De forma compreensível, o músico se indigna com a ideia de que o problema não seria de ordem técnica, mas de sua imprecisão e, sobretudo, de seu impertinente “blá-blá-blá”. Nesse momento, em que Tom Zé extravasa sua frustação dialogando com a sua banda, o produto acreditar ter o direito de admoestar o artista com um paternalista “Ô, Ô, Ô!” e, ao mesmo tempo, faz um gesto com as mãos exigindo “Calma, calma!”.

O caldo entorna. Tom Zé parte para cima do certo alguém, que se imagina um próspero colonizador. O brasileiro torna-se senhor do palco, empurrando o produtor, que, atônito, desce de seu pedestal:

“Não! Ô, Ô, Ô, porra nenhuma! Vá prá porra! Não venha me dizer Ô, Ô, Ô, não! Vá prá porra! Não venha me dizer Ô, Ô, Ô, não! Vá prá porra! Não venha me dizer Ô, Ô, Ô, não! Eu tô aqui há meia hora em cima do palco. Estão me desrespeitando. Estão me desrespeitando. Não me diga cale a boca”.[4]

(Na passagem da tensão do conflito à realização do espetáculo, um detalhe tocante: escuta-se o Canon de Pachelbel.)

Tudo se resolveu a partir dessa retomada do território.

O concerto foi todo um êxito.

Viva Tom Zé-Caliban!

Estamos na segunda cena do primeiro ato da peça de William Shakespeare, The Tempest. Por que não concluir escutando a voz de Caliban?

You taught me language, and my profit on’t

Is, I know how to curse. The red plague rid you

For learning me your language!

[1] Décio Mattos Jr. Fabricando Tom Zé (2007). Ver de 57:07 a 57:23: https://www.youtube.com/watch?v=UJdXrL4nYOQ&t=9s.
[2] Idem, ver de 59:12 a 59:36.
[3] Idem, ver de 1:00:15 a 1:00:38.
[4] Idem, ver de 1:01:23 a 1:01:34.

JOÂO CEZAR DE CASTRO ROCHA” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)

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