A MORTE DO NEGÃO DE ALMEIDA

O Pix do Almeida desapareceu da nossa conta. Por três dias liguei para ele, e ninguém atendeu. Ontem, fiquei sabendo que meu amigo Almeida, o Negão Almeida, tinha partido no final de janeiro. Como não tinha o contato dos filhos – nem eles do meu – ficamos sem saber.

Foram 50 anos de amizade, desde que o conheci no Bar do Alemão, em meados dos anos 70. Almeida era personagem da noite paulistana. Pandeirista, cantor, amigo de meio mundo, compunha o folclore do Alemão, ao lado do Pelão, produtor musical, do Baiano, aposentado da Marinha, do Danilo, filho de um cappo do Palmeiras, e outros que receberam a rapaziada que começava a ingressar na noite paulistana.

Seus feitos foram inúmeros. Era forte, um braços de jacarandá, campeão sul-americano de Masters, se lançamento de peso.

Um dia estávamos na mesa 8 tocando, com as respectivas namoradas, quando um pipoqueiro bêbado parou na porta do bar e começou a urinar. O Negão correu, em defesa do pudor das donzelas e deu uma bronca no pipoqueiro. Este levantou os olhos, e passou a mirar o pé do Almeida, que teve de pular de um lado para o outro para não ser atingido.

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Na sequencia, pegou o carrinho de pipoca e arremessou no meio da rua. Toca a colocar o Almeida no carro e zarpar dali porque era batata que apareceria a polícia, ainda mais sabendo que o autor do feito era um negão.

Almeida era vendedor de livros, assim como Dagô, o dono do Alemão. E tornou-se vendedor de tudo quanto foi tranqueira que apareceu nos anos seguintes, de cartela de ouro a boi gordo.

Era enrolado com dinheiro. Um dia telefonou para mim, no Jornal da Tarde.

  • Turco, vendi uns quadros e só vou receber na semana que vem. Vocë teria algum para me emprestar?

Eu estava com dinheiro contrado para dar entrada em um Sobradinho na Aclimação. Pedi para ele ser franco: se não houvesse garantia de que iria me pagar em uma semana, que me dissesse, que tentaríamos outra saída. Garantiu que pagaria.

E não pagou. Foi num sufoco conseguir dinheiro para completar a entrada.

Semanas depois, peguei o Metrô para ir até a Bolsa de Valores. Na volta, ouço um grito;

  • Turco! Turco!

Era o Negão Almeida. Disse-lhe para nem olhar para minha cara, que não queria saber dele. E tive que suportar aquele massa de homem atrás de mim, chorando:

  • Turco, não faz isso, você é meu irmão.
  • Para de vexame, negão.

Tempos depois, apareceu em casa com um monte de livros proibidos e recolhidos pela ditadura. Descobriu que o pai de um colega de escola do filho era agente do DOPS com acesso aos livros apreendidos. E montou um negocinho com ele.

Foi em casa, para pagar a dívida com livros. Me vendeu três ou quatro, mas não descontou da dívida.

Suas histórias faziam a festa no Alemão. Como o dia em que Carlinhos Vergueiro apareceu com a Beth Carvalho, que engatou uma conversa com o Negão – que ela já conhecia de outros carnavais. Carlinhos ficou enciumado, veio por trás e deu um murro na orelha do Negão. Foi como uma mosca dando um peteleco em um elefante. O Negão virou-se para saber o que estava acontecendo e levou algum tempo para entender que tinha sido vítima de uma agressão. Quando se deu conta, foi preciso uns três ou quatro para segurá-lo.

Foi a única vez que vi o Negão perdendo a cabeça.

Mas o episódio mais marcante foi o dia em que Nelson Cavaquinho apareceu no bar. Ia pegar o önibus à meia noite. A Vilma, namorada do Eduardo Gudin, ofereceu-se para levá-lo. Mas a gasolina acabou em pleno minhocão. Ela foi até um orelhão e ligou para o bar, atrás de um voluntário. O Negão nem vacilou, pegou sua banheira e rumou para o Minhocão.

A Rodoviária ainda era na Estação da Luz. Bêbeado que nem um peru, Nelson Cavaquinho comoveu-se com a carona:

  • Você é meu afilhado. Vamos para o Rio comigo que vou fazer uma buchada e convidar toda a velha guarda da Mangueira.

O Negão nem vacilou. Deixou o carro estacionado, comprou a passagem e foi para o Rio, com Nelson Cavaquinho dormindo e babando no seu ombro.

Perto de Volta Redonda Nelson acordou, olhou para o Negão e perguntou:

  • Quem é você?

O Negão chegou no Rio, comprou a passagem de volta e retornou no primeiro ônibus.

Mas seu maior feito foi ter esnobado dois dos maiores violonistas da história.

O primeiro foi Rafael Rabelo, perto de 15 anos de idade, quando apareceu no Alemão, depois do Festival do Choro da Bandeirantes.

Sentou na mesa 8, pegou um violão maior que ele. O Negão se aproximou com seu modo desconfiado e ordenou:

  • Toque a Feia.

É uma valsa de Jacob do Bandolim, própria para derrubar acompanhantes. E Rafael:

  • Em que tom?

Quando começou a tocar, Nelsinho Risada, nosso cavaquinhista, e profundo conhecedor do choro – e caixa do bar – gritou para o pessoal:

  • Parecem de falar que entrou um gênio no bar!

O segundo momento foi com Yamandu Costa, bem jovem, recém-chegado a São Paulo. Montei um sarau-almoço em casa para ele e para o pessoal da Contemporânea – um grupo de chorões de todas as idades, que se reunia aos sábados na loja Contemporânea.

O violão ia de um por um, passava por Arnaldinho e outros, Quando chegava no Yamandu, vestido com bombachas, o Negão simplesmente pegava o violão e passava para o seguinte. Yamandu apenas observava com ar divertido.

Até que Yamandu pode tocar. Negão ficou branco e olhou para mim, sabendo que jamais se redimiria do duplo pecado.

Escrevi uma crônica na Folha sobre esse duplo feito. Almeida andava com a crônica na carteira e exibia:

  • Olha o Turco me difamando.

Melhor que isso só o show de Luiz Gonzaga no Colégio Equipe, nos anos 70. Negão levou seu pandeiro e começou a tocar, meio de lado. Sem parar a música, Gonzaga improvisou:

  • Olha só, que ganhamos um som de terreiro.

O Negão parou na hora, mas foi incentivado por Gonzaga para continuar.

E assim fomos levando a vida e a amizade. Quando me separei a segunda vez, uma vez por mês o Negão aparecia para me levar à feijoada do Tio, o Laércio de Freitas.

Certa vez, envolvi-me em uma polêmica com um aluno da USP, da Bahia, e bolsista da Fundação Ford. Ele escreveu o livro “Como fazer amor com um negro sem se cansar”. Era um marqueteiro completo.

Emplacou uma nota no The New York Times, apresentando-se como última vítima da ditadura. E apenas tinha sido detido pela polícia por puxar os muros da USP. No livro, desancava todo mundo, imigrante, mulher e o escambau. Escrevi uma crônica e fui convidado para debater o tema no Sesc Vila Mariana.

Era evidentemente uma arapuca, seguindo a moda da época, de se espelhar no movimento negro norte-americano. Mas decidi ir levei o Negão como torcida organizada, individual, porém sincera. Foi um quebra-pau de dar gosto. No final, uma loirinha, aluna da ECA-USP, veio falar comigo:

  • Ainda bem que você se saiu bem. Quem organizou foi minha professora, porque virou moda. Mas na hora de escolher os monitores, ela só escolhe loirinhas como eu.

No corredor, fomos abordados por dois rapazes, querendo tirar satisfações. Perguntei onde tinham estudado. Esnobaram: estudamos em escolas muito melhores, nos Estados Unidos.

O Negão fez o seu modo invocado e perguntou:

  • Quem são seus pais?

Disseram. O Negão conhecia. Nos anos 60, junto com os pais dos rapazes, organizou um movimento de negros classe média, para fazer vaquinha para apoiar os filhos mais talentosos. E passou um pito nos meninos, por sua arrogância.

  • Desculpe, tio!, foi a reação.

Depois, me contou que foi criado por uma família iugoslava e foi o primeiro negro a pular na piscina do Clube Esperia.

Agora, parte um dos últimos dos veteranos que nos receberam em São Paulo. Pelão já se foi, assim como João Macacão, os Macambira, Lineu dentista, o próprio Bar do Alemão.

Falando nisso, preciso acertar logo o jantar com o Gudin, porque a vida está correndo muito depressa.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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