O DUELO ANTISSISTEMA

CHARGE DE MÀRIO ADOLFO

A cadeirada de José Luiz Datena em Pablo Marçal, em meio ao debate da maior metrópole brasileira, mostra nossa vocação para a farsa tragicômica

Neste ano que registra o maior número de eleições ao redor do planeta — mais de 40 pleitos nacionais em países que concentram mais de 40% da população mundial —, também assistimos cenas de violência política, ora assustadoras e fatais, ora patéticas, mas intoleráveis com o exercício da democracia.

Nem sempre a disputa de ideias caracterizou a disputa política. Debates, através dos tempos, acabavam derivando para embates, guerras ou duelos. Vamos para o exemplo do país que diz encarnar a maior democracia do mundo e se faz xerife pelos quatro cantos da democracia alheia: Estados Unidos.

Na semana passada vimos um tosco e perverso ex-presidente apelar para o boato infundado do consumo de cães e gatos pelos imigrantes haitianos para não apanhar feio de uma mulher no debate televisivo mais assistido no país norte-americano. Notem que Donald Trump pode ter se inspirado em Porto Alegre, capital cujo governante já participa há algum tempo da história mundial da infâmia, pois na eleição passada Manuela d’Ávila foi acusada da mesma sandice.

Pois no comecinho do século XVII, em 1806, o que seria o futuro presidente dos EUA, Andrew Jackson entrou em um duelo contra Charles Dickinson. Tudo começou com trocas de insultos entre os cavalheiros. Charles Dickinson, tocando num ponto fraco de Andrew Jackson, chamava sua esposa de bígama, pois Andrew Jackson casou-se com ela enquanto ela ainda era oficialmente casada com o primeiro marido, fazendo com que o Andrew Jackson ficasse extremamente nervoso. Como consequência, ele o convocou para o duelo de pistolas.

Como estes duelos eram proibidos na cidade, os dois foram para Logan, no Kentucky, e lutaram. O marido ofendido disparou o primeiro tiro contra Charles Dickinson. Em seguida, foi atingido no peito, mas se manteve de pé. Assim, mirou cuidadosamente e puxou o gatilho, atingindo bem no meio do peito de Charles Dickinson, que morreu algumas horas depois. Andrew Jackson sobreviveu e se tornou presidente. Violência recompensada.

Passados mais de dois séculos, aqui pelos trópicos, a violência é menos dramática, mas não menos nociva para a democracia.

A cadeirada de José Luiz Datena em Pablo Marçal, em meio ao debate da maior metrópole brasileira, mostra nossa vocação para a farsa tragicômica. Tudo indica que a saraivada de insultos de Pablo Marçal e a reação de José Luiz Datena têm mais a ver com cálculo do que com ação espontânea. E nesse sentido, gostaria de contribuir com um ponto de vista.

A princípio temos dois personagens de fora da política, ou “outsiders”, disputando de modo renhido a posição de representante antissistema, uma vez que a percepção de descrédito, cansaço e ressentimento com a política pode ser percebida nitidamente no eleitorado. Ocorre, que não se trata de dois candidatos antissistema, mas de personas políticas que encarnam dois sistemas que estão em conflito e medição de forças.

José Luiz Datena é o representante do sistema midiático tradicional. Um sistema que sempre atuou como jogador embora apenas simule narrar o jogo. Até pouco tempo, esse sistema era dono absoluto dos holofotes e das chaves da vitrine. Tinha o poder exclusivo de formar opinião, agendar o debate, manipular percepções, exacerbar sentimentos, ajustar tendências. Não por acaso, são inúmeros os exemplos do uso da TV e do rádio como trampolim político, muito embora a transferência de audiência para votos nunca tenha sido automática.

Programas policialescos populistas, com alto índice de simplificação e violência fizeram escola e criaram simbioses que embora ilegais em muitos aspectos, conquistaram resultados extraordinários. Em 2018, ano da hecatombe democrática no país com a eleição de um torturador convicto ao mais alto cargo da República, nada menos do que 23 repórteres e/ou apresentadores de programas policialescos, em 10 estados, concorreram naquele pleito, segundo levantamento do site Intervozes.

No repertório, soluções ineficazes para a segurança pública, postura autoritária e linguagem violenta. Ocorre que esse sistema baseado num modelo de negócios da mídia mainstrean está em crise como modelo dominante. No seu calcanhar está uma nova ecologia midiática, com capacidade de viralização, midiatização total da vida e personalização de mensagens e personagens.

Há em operação outro sistema, mais autoritário, menos transparente e que se nutre da violência. As plataformas, canais e aplicativos de mensagens online simplesmente mudaram a maneira de fazer política, obrigaram a uma nova gramática, a um conjunto de referências, nichos e sentidos que não são do domínio do discurso político. Esse novo sistema ainda sem regulação, sem ethos, mas com audiência e dinheiro, tudo permite.

Os golpes abaixo da linha da cintura viram memes e cortes. A notoriedade é assustadoramente rápida e abrangente. Temos, portanto, um fenômeno que parece engolir o outro sistema, com capacidade de influenciar cardumes de jovens da periferia, aqui, na França, na Argentina, na Indonésia, na Índia e em toda parte. Esses influenciadores não estão apenas no jogo político, por isso os efeitos da comunicação digital são mais avassaladores e não são conquistados apenas abrindo um perfil no Instagram.

Os influenciadores que prometem reprogramação mental, inspiram negócios, ensinam a empreender, a se maquiar, a se vestir, a jogar, a namorar e ter prazer, a acreditar em Deus com prosperidade, integram o mundo da vida inteira, o tempo todo. Surgem com harmonização facial e ideologia de bricolagem. Falam em nome de Deus e do mercado ou, melhor, tudo junto. Eles vendem um modo de vida e quando associam isso à política, a participação e a ação política ficam transfiguradas. Como debater nesses temos?

O interessante é que os analistas do jornalismo miram só metade do fenômeno, ao concluir que a política em descrédito é quem dá vazão a esses aventureiros. Quando na verdade todas as instituições mais estáveis estão sob desconfiança, a começar pela própria mídia. O sistema de José Luiz Datena, a mídia de massas, o jornalismo (seja o mais sério ou o mais populista) está com a mesma crise de credibilidade.

A realidade brutal produzida pela acumulação e consumo decompostos em fadiga e caos, permite aos cidadãos interpelar as instituições e os centros de poder de modo violento, ressentido e simplificador. Antes, não tinham como fazer públicas suas demandas, seus sentimentos, suas decepções. Hoje, se identificam com particularidades e cenários locais que os estimulam a saídas pela barbárie. Assim, são livres para adorar quem foi “ferrado”, mas venceu na vida, ainda que de modo desonesto.

Quanto aos debates, me socorri da hipótese levantada em publicação recente do Nucop, do qual participei como uma das autoras, sob orientações de Maria Helena Weber, no texto “Dramaturgia política e disputa de verdades entre Lula e Bolsonaro nos debates televisivos do segundo turno de 2022”. A hipótese sugerida pelos pesquisadores é que o debate eleitoral televisivo é a síntese democrática das eleições e permite ao eleitor estabelecer uma relação mais próxima com os candidatos e avaliar seus projetos e discursos.

Contudo, sugerem os autores após análise exaustiva, que há um paradoxo. “Os candidatos assumem personagens que possam qualificá-los para o cargo por meio de exercício retórico que pode contribuir para a desqualificação da política e da democracia, na medida em que valoriza a polarização política e desobedece aos princípios do debate público ao reduzir a argumentação à opinião, transformar o adversário em inimigo, não privilegiar os temas de interesse público e a governança, blefar e tergiversar sobre a verdade e a realidade. Em suma, o debate eleitoral televisivo tanto pode esclarecer quanto embaralhar o discernimento do eleitor indeciso”.

Olhando esse trecho e lembrando das cenas lamentáveis de duas figuras rebaixadas, me parece que fomos visionários, embora não nos ocorresse que voaria uma cadeira no meio da discussão.

SANDRA BITTENCOURT ” PORTAL A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).


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