FÁBULAS AMERICANAS

CHARGE DE ZÉ DASSILVA

Os partidos dos EUA arrumaram a casa, fizeram as suas convenções (obedientes e sem surpresas) e lançam-se no último troço da campanha. A fábula está em curso.

Nada está decidido, nada está ganho e nada está perdido. Mesmo os erros colossais (as patéticas declarações de Trump sobre as medalhas dos combatentes, o silêncio embaraçado de Harris na inflação e fronteiras) pareceram irrelevantes.

Mas isso foi no preâmbulo. Agora é a sério.

Só agora começa o confronto com consequências.

E o mundo assiste, como se a campanha americana representasse uma espécie de teatro universal.
Fossem os EUA a Suíça, famosos pela conciliação, tecnologia, paraíso bancário e de serviços, lazer e disciplina consentida, e não haveria drama.

Mas Washington possui a chave nuclear, comprometeu-se a proteger uma série global de ideias e entidades, e alia a qualidade de superpotência militar e república imperial do imaginário, a começar pelo cinema.

Daí que, nos quatro pontos cardeais, se discuta o torneio entre Trump e Harris como se fosse na casa ao lado. E se façam apostas e interpretações como se a América nos representasse a todos, mortais do mundo.

É evidente que é tão imbecil apontar que Kamala Harris parece “socialista”, como jurar que Donald Trump é “nazi”. Mas quem o diz não faz por mal, ou de forma pensada. Limita-se a tentar fazer o público compreender algo, com rótulos simples.

Lupus in fabula, como escrevia Terêncio, quase um século e meio antes de Cristo.

Ou seja, fala-se do lobo da fábula, e ele aparece.

Para que o duelo americano surja entusiasmante e apocalíptico, é preciso imaginar bons e maus, totalmente antagónicos. Ninguém se mobiliza para cruzadas, se os rivais forem gémeos.

Daí que, dentro e fora dos EUA, é preciso imaginar diferenças entre Trump e Harris.

Apesar de ter trilhado todas as instituições do sistema, de ser crente e de defender a identidade nacional, Harris é convenientemente arrumada como de “extrema esquerda”, porque o outro extremo já está ocupado pelas acusações ao milionário das torres, casinos, campos de golfe e concursos de beleza.

É evidente que, na Convenção Democrata de Chicago, o movimento UNM gritava nas ruas que os dois partidos eram farinha do mesmo saco, por exemplo na questão de Gaza. Mas esse pormenor não ganha votos.

Daí que seja preciso a cada lado mostrar algo distintivo, que ressoe dentro e fora dos EUA.

Como forma superior de poesia, os democratas foram buscar a “alegria”. Os republicanos tinham ficado pela “mudança”, e os dois falam de “união”, mesmo quando dividem.

Em muitos aspetos, a campanha sugere algo já visto, por exemplo nas últimas legislativas em Portugal.

Os Republicanos perguntam aos Democratas o que fizeram nos anos de governo, e porque é que não consertaram o poder de compra, o preço das casas, o regime de preços, o sistema fiscal, a decadência do aforro. De certa forma, proíbem o inimigo de usar como motivos de campanha queixas que o homem da rua partilha.

Por outro lado, há, como no caso doméstico, o problema das concessões. A desistência de Robert Kennedy Jr. a favor de Trump, em nome de uma varridela de todo o sistema eleitoral, lembra fortemente as discussões sobre a política de alianças do PSD. Nos EUA, é difícil dizer quanto se ganha com a desistência do “descentrado” Kennedy. Valia 5% nas urnas, e nenhuma sondagem parece indicar mudanças decisivas.

Na verdade, Trump surge à frente de todos os estados capazes de mudança, com exceção do Wisconsin, mas por percentagens mínimas. E Harris continua à frente, também por uma nesga, no voto nacional, mas atrás no número de grandes eleitores (menos 36).

Pode repetir-se assim o caso Hillary Clinton, com um triunfo democrata no voto direto, mas uma vitória republicana no Colégio.

Seria preciso um grande abalo para que este cenário se alterasse completamente. Mas, a partir de agora, os atores têm de decorar todas as falas, evitar armadilhas, afastar-se de tentações, e dizer o máximo com o menor número de palavras.

A plateia universal estará atenta. 

A guerra sem princípio

A guerra de nervos, bombas e declarações continua, entre Israel e os seus inimigos próximos e longínquos, reis ou imaginários. Trata-se de um conflito cujo principio se esquece, e o fim não se antecipa.

Temos um governo judaico de duvidosa representatividade, que se entrincheira e afirma estar a defender o direito à vida.

Temos um poder fantasma em Gaza. Deve separar-se a Palestina do Hamas, mas ninguém sabe como.
E há uma potência que não tem fronteiras com os israelitas, o Irão. Deseja afirmar a sua relevância regional, mas não é suicida. Daí que incentive, ou dissuada, os seus aliados sectoriais.

É preciso sair deste círculo vicioso.

Mas pode ser impossível.

O que não se diz

Começa a ser um hábito, por toda a Europa, a ordem dada a polícias, serviços de informações e autoridades municipais, para não divulgarem dados sobre homicidas e terroristas, se estes forem imigrantes.

A necessidade de não lançar o alarme social entende-se.

A imperatividade de não fazer o justo pagar pelo pecador compreende-se.

O bom senso de não criar movimentos de rejeição global do estrangeiro percebe-se.

Mas nada disso pode confundir-se com a cegueira perante a ameaça, a inépcia na deteção do perigo, ou a bandeira branca içada, face às provocações e planos de extermínio.

O que ganha a União em ignorar a realidade, a estatística e a dureza dos factos?

Deixem a verdade ganhar. 

O escudo

À hora que escrevo, todas as grandes cidades ucranianas do norte, centro e leste estão sob intenso ataque da aviação estratégica russa (incluindo 17 bombardeiros Tu-22 e Tu-95), convenientemente abrigada nas suas bases distantes, incluindo Shaykovka, em Kaluga.

Por outras palavras, um dia depois da celebração da independência, os ucranianos voltam a ser agredidos, sem se poderem defender convenientemente.

O “Ocidente” mais significativo não quer respostas em território do Kremlin.

Bem pode a Ucrânia ter como símbolo um escudo. Protege-se e protege outros, mas nos momentos fulcrais é sempre deixada sozinha. Daí que tenha de olhar para mais e novos amigos. Só boas palavras não servem. 

NUNO ROGEIRO ” RFEVISTA SÁBADO” ( PORTUGAL)

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