É Kamala Harris a melhor opção para derrotar Trump? É evidente que não. Até porque se fosse, ela teria sido candidata desde o início – Biden, sabia-se há quatro anos, seria um presidente de transição.
Venham agora quantas vierem as figuras de elite do Partido Democrata assumir o apoio à vice-presidente, neste momento nada apaga a noção de que Harris é a solução de recurso num cenário de pesadelo em que o partido e Joe Biden se deixaram cair por culpa própria e muita incompetência.
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De pouco valerá a pena tentar fazer a autópsia de como um dos partidos de poder nos EUA chegou a esta situação, até porque há perguntas a que nunca conseguiremos respostas verdadeiras: Biden avaliou mal a sua própria capacidade de resistência física? Durante o processo de Primárias, por que razão não houve mais opções… medo de suicídio político por ir enfrentar Trump? E até que ponto está o Partido Democrata refém da infiltrada ala radical de esquerda, cujos rostos mais visíveis são Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, que impediu que surgisse uma solução moderada de qualidade?
Certo é que nem o alívio que o atentado a Trump deu a Biden (como escrevi na semana passada) lhe bastou, tal a decrepitude em que o presidente se encontra. A infeção de covid-19 que apanhou agora é um azar, mas a sucessão de gaffes que cometeu em dias-chave, como a Cimeira da NATO – em que chamou Putin a Zelensky e disse “vice-presidente Trump” – são sua culpa exclusiva. Não foi de admirar que poucos dias passados do ataque ao rival, em que Biden até assumiu bem a tarefa presidencial, as pressões de dentro do partido tivessem regressado e a dada altura eram já quase 30 os democratas de relevo que publicamente lhe pediam que abandonasse a corrida.
Mas se Kamala Harris é a fuga para a frente possível e óbvia, é muito dificilmente ganhadora. E o antigo presidente Barack Obama percebe-o tão bem que nem lhe declarou o apoio.
Obama, lembre-se, foi o político que salvou o seu próprio partido, há quatro anos, de avançar com uma candidatura da tal ala mais à esquerda – que nunca terá qualquer hipótese de ser eleita nos EUA, por mais que alguns “intelectuais” aqui deste lado do Atlântico sonhem (os mesmos que acham que os EUA são o inferno na Terra que leram nos livros marxistas, trotskistas ou maoistas da sua juventude).
Foi Obama quem convenceu os democratas que só o seu “vice” Biden poderia derrotar Trump – pelo seu histórico politico, por ser uma figura que os americanos reconheciam como um “deles”. E tinha razão.
Agora, quanto a Kamala Harris, volta a colocar-se a questão: é mais à esquerda do que Obama gostaria (ainda que, ironicamente, não o suficiente para os Sanders e as Cortez que minam os democratas, que não lhe perdoam algumas das decisões que tomou enquanto procuradora-geral da Califórnia onde ganhou uma reputação de ser “dura com os criminosos” que muito irritou esta ala). Obama sabe bem que ela não é, à partida, uma personagem que consiga converter quem já não esteja convencido em não votar Trump.
(E não, não acredito na tese de que Obama estará a guardar-se para que a sua mulher, Michelle, lance de surpresa a candidatura, que neste contexto correria o risco de ser mais um suicídio político, obrigando dezenas de figuras de topo a “virar a casaca” em cerca de um mês – a Convenção Democrata que nomeará o candidato à Casa Branca é no fim de agosto.)
Kamala Harris teve 3 anos e meio para demonstrar ser presidenciável. E não conseguiu.
Ainda que o papel do vice-presidente dos EUA seja, por natureza, apagado (um segundo violino que mal se ouve a não ser que aconteça algo muito errado ao Presidente), Biden deu-lhe dossiês importantes, incluindo a imigração. E pouco ou nada se viu. Neste caso concreto, a noção que existe entre a classe média e média-alta dos EUA – de forma até justa, diga-se – é que o assunto da imigração está hoje tão (ou ainda pior) administrado do que no período Trump.
Depois, há que saber como Harris capta o voto “racial” (à falta de melhor termo) e de “género”. Não é de todo líquido que tenha uma boa prestação entre o público feminino só por ser mulher – Trump já demonstrou, apesar de todas as acusações e/ou suspeitas de agressões ou abusos sexuais, que tem uma boa performance neste eleitorado; e o voto afro-americano até poderá tender a cair para os republicanos em alguns estados fundamentais – ao contrário de como aqui na Europa os haters o pintam, Trump por lá não tem bem uma imagem de racista.
Há um fator que será importante na corrida de Kamala Harris: a escolha do seu vice. Se por exemplo convencer o governador da Pensilvânia, o muito popular Josh Shapiro, a concorrer consigo, tal poder-lhe-á dar alguns votos preciosos.
Mas regresso a um ponto sobre o qual já aqui escrevi: os americanos votarão sempre no candidato que vejam como “um dos seus”, que sinta os seus problemas. Mas que não se lhes substitua na resolução dos mesmos. O típico americano quer simplesmente uma Administração que lhe dê espaço e oportunidade para trabalhar, fazer negócio e criar riqueza.
A não ser que Harris faça um grande milagre de retórica e faça o pino na ideologia, Donald Trump é a pessoa que lhes promete fazer isso – infelizmente para a democracia mundial, dada a sua personalidade.
E, estritamente do ponto de vista doméstico americano, ele irá provavelmente cumprir.
RICARDO SIMÕES FERRREIRA ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)
Editor do Diário de Notícias