Em política não dá para ter apenas adversários que podem ser aliados amanhã. É preciso ter inimigos, pois queiram, os inimigos existem.
Os governos de Biden e Lula, guardadas todas as enormes diferenças, constituíram, por conta de uma série de circunstâncias, uma espécie de vidas paralelas. Biden foi vice-presidente de Obama por oito anos e aquele ciclo foi interrompido pelo governo de extrema-direita de Trump. Lula foi presidente por oito anos e teve um prolongamento político nos governos Dilma, interrompidos por um impeachment-golpe e pelo governo tampão de Temer. Esse período do petismo foi sucedido pelo governo de extrema-direita de Bolsonaro.
Trump e Bolsonaro, em seus governos pandêmicos, defenderam determinadas políticas e visão de mundo comuns: negacionismo climático e pandêmico, valores conservadores, ataque à mídia, populismo de redes digitais, violação de regras democráticas e do Estado de Direito, patrocínio de mentiras e fake news, ataque à credibilidade dos sistemas eleitorais, flertes com o messianismo religioso, maniqueismo político-religioso com a autorreferência como representantes do bem contra o mal e por aí vai.
Biden e Lula venceram seus adversários por pequenas margens de votos, num contexto político altamente polarizado. Os governos Biden e Lula foram vítimas de tentativas golpistas nos inícios de seus mandatos. O 6 de janeiro de 2021, com a invasão do Capitólio, tinha o sentido e o desejo de impedir a posse de Biden. Ele corresponde ao 8 de janeiro de 2023 ocorrido no Brasil, com o mesmo objetivo de remover Lula e restabelecer Bolsonaro no poder por meio de uma intervenção militar. A invasão e depredação das sedes dos três poderes visava desencadear a intervenção. O 6 de janeiro foi estimulado por Trump e, todas as evidências o indicam, Bolsonaro e os bolsonaristas que o cevavam, estimularam o 8 de janeiro.
No decurso de seus governos, Biden e Lula tiveram várias oportunidades de articular derrotas políticas do trumpismo e do bolsonarismo. Não o fizeram. Quer dizer: em termos de linguagem maquiavelliana, a linhagem principesca anterior não foi extinta. Trump e Bolsonaro estão aí com grande força política.
Mas o maior paralelismo dos governos Biden e Lula está na economia e na percepção que a sociedade tem da mesma. Biden e Lula herdaram de seus antecessores dois grandes problemas: desequilíbrio nas contas públicas, com dívidas crescentes, e inflação alta. Em 2023, o crescimento da economia dos Estados Unidos foi superior a 3%, surpreendendo todos os analistas. O PIB do Brasil, no ano passado, cresceu quase 3%, também surpreendendo todas as previsões.
O emprego cresceu significativamente nos dois países e houve uma importante recuperação dos salários e das rendas. A inflação foi controlada nos EUA e os juros poderão começar a cair neste ano. Aqui, a inflação foi derrubada, proporcionando algumas quedas nas taxas de juros. Em que pese tudo isso, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, as pesquisas mostram que a maioria das pessoas tem uma visão mais negativa do que positiva da economia. Existe uma discrepância entre os dados da realidade e a percepção subjetiva das pessoas sobre os mesmos.
Os governos Biden e Lula são medianamente avaliados, algo em torno de 38% e 36% em suas avaliações positivas. Claro, nessas avaliações incidem fatores diferentes. Biden sofre críticas pelo caos nas fronteiras, os progressistas o criticam pelo apoio que dá a Israel que massacra crianças em Gaza. Excetuando alguns problemas, a situação da economia indica que Biden deveria ser bem posicionado nas eleições. Não o era, mesmo antes do desastroso debate. O que fez Biden desistir da condidatura é uma conjunção de fatores: o debate, a idade, mas também a percepção não positiva que os americanos têm da economia.
Lula vinha enfrentando uma queda preocupante nas pesquisas desde o final do ano passado. A última rodada de pesquisa apontou para uma estagnação da queda e uma pequena reação positiva. Lula, setores do governo e dirigentes do PT vêm gerando uma crise de confiança na condução da política econômica, pois são ambíguos, quando não críticos à condução correta que Haddad e a equipe econômica vêm imprimindo.
Um último paralelismo entre os governos Biden e Lula é que carecem de narrativas. As narrativas sempre foram importantes na história para convencer, persuadir, engajar. No nosso tempo, marcado pela hipercomunicação e profusão de informações, as narrativas são ainda mais importantes. Elas articulam concepções, ideias, interesses, valores e afetos. Em determinados contextos históricos e em determinados grupos sociais, as narrativas são mais importantes do que a economia na orientação de escolhas políticas.
Tanto Biden quanto Lula e seus respectivos escudeiros adotam uma abordagem economicista, com forte ênfase nos interesses. Trata-se de uma herança da narrativa da sociedade industrial e do sindicalismo. Em recente artigo, Paul Krugman reconheceu que, nesse contexto de embates ideológicos e polarização, a evidência dos dados econômicos não perdeu força. Eles sofrem os crivos da política, da ideologia e dos valores.
As narrativas precisam articular um sentido para os acontecimentos, articulando uma coerência entre interesses, valores e afetos. As narrativas precisam apresentar um conjunto discursivo simples e verossimilhante. O verossimil não é necessariamente o verdadeiro. Mas o verdadeiro precisa ser verossímil. Num de seus últimos dicursos Biden afirmou que sabe o que é verdadeiro e o que é errado, falso. Em política, a coisa não é tão simples. Se o verdadeiro não for coerente, verossível, convincente, persuasivo, pode parecer falso.
As narrativas constroem salvadores e heróis, vilões e malvados. Articulam poderosas representações simbólicas. Nelas, é preciso definir, ao menos, dois campos em luta: o dos vencedores, as elites; e o dos perdedores, os oprimidos, os trabalhadores. Em política não dá para ter apenas adversários que podem ser aliados amanhã. É preciso ter inimigos, pois queiram ou não as boas almas, os inimigos existem. Os inimigos precisam ser tratados como inimigos. Eles precisam ser postos na defensiva política.
Biden e Lula pareceram diluir a identificação dos inimigos. Trump e Bolsonaro têm clareza sobre isso. Essa circunstância lhes dá a vantagem de permanecer na ofensiva. Os Democratas estão arrumando o time na prorrogação. Lula e os partidos progressistas ainda tem tempo de arrumar o time durante o jogo normal. Mas é preciso ter claro que, mesmo em governos de frentes partidárias, o estado-maior dirigente do governo não pode abdicar de dar direção e sentido ao processo político.
Biden e Lula não podem permanecer na mera defesa dos legados de seus governos. Devem defendê-los, mas apontando sempre para a necessidade de mudanças. Vivemos num mundo em crise, de mal estar, de desassossego, que precisa de mudanças profundas. Somente as mudanças podem suscitar esperanças. E quem mais precisa de mudanças são os aflitos, os oprimidos, os deserdados.
ALDO FORNAZIERI ” JORNAL GGN” ? BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.