A esquerda que venceu em França tem, agora, a derradeira oportunidade de se reinventar. Caso contrário, irá limitar-se a convocar manifestações para a Place de la République, sempre que ficar assustada com as escolhas dos eleitores
Em abril de 2002, cheguei a Paris poucas horas depois dos franceses terem entrado em estado de “choque” com a passagem inesperada de Jean-Marie Le Pen, líder da extrema-direita e assumidamente racista e xenófobo, à segunda volta das eleições presidenciais. Como muitos outros jornalistas, dirigi-me para a Place de la République, onde se concentravam, então, de forma ininterrupta, os protestos contra Le Pen, com apelos ruidosos à constituição de uma frente republicana para impedir a sua eleição e, ainda por cima, dar-lhe uma lição nas urnas. Os dois objetivos foram alcançados, mesmo que a reeleição de Jacques Chirac não fosse, até aquele momento, o desejo da esmagadora maioria dos franceses, desacreditado que estava por vários escândalos e uma coabitação problemática com o primeiro-ministro socialista Leonel Jospin (o favorito incontestado de todas as sondagens, mas que falhou a concretização desse objetivo devido à pulverização de votos em demasiados candidatos de esquerda, na primeira volta).
Mais de duas décadas depois, a Place de la République e a emblemática estátua que ali foi erguida por ocasião do primeiro centenário da tomada da Bastilha continuam a ser o centro aglutinador das manifestações contra a extrema-direita, como se viu nos últimos dias. Mas apesar dessa semelhança, sempre vincada como cenário de quase todos os diretos das televisões, a França já não é o mesmo país que, em 2002, se uniu de forma esmagadora contra Le Pen. Agora, embora tenha ficado em terceiro lugar no número de deputados, devido à particularidade do sistema eleitoral a duas voltas, o Rassemblement National, de Marine Le Pen, é incontestavelmente o maior partido francês – a grande distância de todos os outros. Tanto nas europeias como nas duas voltas das legislativas, a extrema-direita recolheu mais de 30% dos votos. Por isso, vai formar, depois de desfeitas as coligações à esquerda e ao centro, o maior grupo parlamentar na nova Assembleia Nacional.
Por mais festejada que tenha sido a vitória da nova Frente Popular ‒ na Place de la République, bem como na maioria das capitais europeias –, a realidade é bem menos eufórica para quem defende a democracia e o projeto europeu. E é também menos surpreendente do que a vitória da esquerda, ao arrepio de todas as sondagens. A verdade é que, de eleição para eleição, há mais eleitores a repetir o seu voto num partido que quer dar direito de preferência aos “franceses puros” e penalizar os de dupla nacionalidade – como são milhares de lusodescendentes. E que, ainda por cima, advoga o fim da livre circulação na União Europeia e, por mais que o tente disfarçar desde a invasão da Ucrânia, mantém o seu apoio a Vladimir Putin.
Os dados foram lançados e o jogo está quase concluído. Emmanuel Macron arriscou forte, embora não tenha perdido, também não ganhou. Para já, ninguém lhe tira um triste balanço: com a sua primeira eleição em 2017, dinamitou os partidos tradicionais franceses, fez milhões de franceses sonhar que iria ser uma alternativa contra um sistema injusto e enclausurado em esquemas do passado, transmitiu a ideia de que iria ser a maior barreira à ascensão de Le Pen – mesmo quando esta tentou adocicar a imagem e o discurso, embora sem perder a verdadeira essência ‒, mas acabou por falhar em toda a linha e ficar intimamente ligado ao crescimento da extrema-direita.
É neste contexto que a esquerda vencedora destas legislativas tem uma responsabilidade acrescida. Ainda para mais num país com uma importância estratégica enorme, como segunda maior economia da UE e a sua única potência nuclear, além de continuar a ser a única antiga potência colonial a manter territórios e influência direta em todos os oceanos. Apesar dos avanços de Le Pen, o seu projeto antidemocrático ainda é desprezado por dois terços dos franceses. Mas o sentido de unidade demonstrado, mais uma vez, em defesa dos ideais republicanos não pode ser apenas alicerçado na rejeição. É preciso mesmo que algo mude e que os partidos democráticos sejam capazes de responder aos desafios dos novos tempos, com propostas e ações que façam a diferença. A esquerda que venceu em França tem, agora, a derradeira oportunidade de se reinventar. Caso contrário, irá limitar-se a convocar manifestações para a Place de la République, sempre que ficar assustada com as escolhas dos eleitores. Até que seja tarde demais.
RUI TAVARES GUEDES ” VISÃO” ( PORTUGAL)