Denise Crispim, companheira do militante Bacuri, assassinado pela ditadura, levou o Estado brasileiro a julgamento em corte internacional
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Imagine esperar 54 anos para ter um vislumbre de justiça por ter sido torturada grávida por agentes de Estado durante a ditadura no Brasil, além de ter enfrentado o medo, a dor e o luto por perder seu companheiro, um militante assassinado brutalmente por militares que jamais foram instados a responder por seus crimes. Esse é um capítulo marcante na história de Denise Peres Crispim, que se passa na sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde ela foi ouvida pelos juízes do tribunal internacional nesta sexta-feira, 5 de julho.
Emocionada e fortemente abalada pela memória de fatos horrendos vividos na pele, Denise disse que esse momento diante dos juízes era o ela aguardava por toda uma vida, quando questionada se a reparação material e imaterial buscada junta à Corte, pelo que ela e sua família enfrentaram nos anos de chumbo, seria algo perto de fazer justiça.
“Não tem dinheiro no mundo que pague um sofrimento desse tipo”, disse Denise, entregue às lágrimas. “Além do mais, isso [dinheiro] não é Justiça. Não pode ser considerada uma forma de Justiça. Não pode ser considerado esse momento que estamos vivendo aqui. Era isso que eu queria! A única coisa que aqui falta são aqueles que cometeram o assassinato [de seu companheiro Bacuri]. É inadmissível pensar nesses termos, de que o dinheiro possa substituir Justiça. Não tem dinheiro que pague”, afirmou a vítima.
Nos anos 1970, Denise Perez Crispim foi presa arbitrariamente, mantida no DOI-CODI de São Paulo e torturada inúmeras vezes enquanto estava grávida de seis meses de sua filha Eduardo, fruto de seu relacionamento com o militante Eduardo Leite, mais conhecido como Bacuri. Preso, Bacuri foi, segundo apurado até o momento, o preso da ditadura que mais enfrentou horas de tortura. No fim, foi executado extrajudicialmente em uma propriedade do delegado Fleury.
Denise relutou em oferecer detalhes sobre as condições do corpo do companheiro, mas acabou revelando que Bacuri foi reconhecido pela família com hematomas e queimadura pelo corpo, dentes arrancados, orelhas decepadas e os olhos vazados.
A sessões de tortura contra Denise começaram imediatamente no instante em que ela se recusou a colaborar nos termos impostos pelos militares. “Eu fui espancada durante todo o tempo. Me levaram para uma sala de tortura, onde tinham nas paredes manchas de sangue já escuras, secas. Eram três a quatro horas de sessão de tortura”, lembrou.
Na prisão, Denise deu à luz à sua filha Eduarda, momento de tensão que ficou marcado em sua memória. “Meu parto foi uma cesareana. Eles fizeram. Eu tinha medo de parir minha filha naquelas condições; não sabia que destino pudesse haver. Eu tinha quase certeza que eles iriam me matar, mas eu temia pela minha filha.”
Ainda durante a ditadura militar, Denise foi colocada em liberdade provisória e, diante dos rotineiros interrogatórios e ameaças à sua segurança, ela decidiu deixar o País. Em 2009, foi anistiada, e retornou para pedir ajuda do Ministério Público Federal em Brasília e em São Paulo, para investigar a morte de Bacuri. O MP-SP respondeu que os fatos estavam prescritos há mais de 20 anos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que o Estado brasileiro “não investigou os fatos de modo diligente”, justificando a abertura do caso Collen Leite vs. Brasil, que contou com a audiência de Denise Crispim hoje em San José da Costa Rica. Além disso, a Corte também estabeleceu que Denise também foi vítima de detenção arbitrária e tortura, e que por estar grávida, foi violado o direito à integridade da filha Eduarda.
Para Denise, a Corte Interamericana deveria fazer justiça no caso Bacuri, condenado o Brasil a investigar em tempo razoável e com todos os recursos possíveis, o responsável pela execução.
“Depois, o Estado brasileiro tem que garantir que pessoas na prisão sejam tuteladas à vida, integridade física e respeito ao ser humano. E não condenar o ser humano à condição de não-humano. Que o Estado possa assegurar, sobretudo, condições às mulheres, porque são elas que passam pela prisão sofrendo as piores degradações humanas”, pontuou.
Esta é a terceira vez que o Brasil é levado a uma corte internacional por crimes da ditadura. O País já foi condenado no caso Araguaia e Vladmir Herzog.
CINTIA ALVES ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.