ENCONTRO REVELADOR: CLAUSEWITZ E JESSE DE SOUZA

Uma guerra permanente, com base na persistência da combinação perversa do “preconceito de classe” e do “preconceito de raça”

Afinal: o encontro

Nas duas últimas semanas, anunciei o encontro inesperado entre Carl von Clausewitz e Jessé Souza, embora não tenha esclarecido de que forma tenha ocorrido. Hora, portanto, de explicitar minha hipótese de leitura.

Antes que seja tarde demais e você desista desta série de artigos.)

Leiamos três passagens de A elite do atraso:

“Em outras palavras, o culturalismo da teoria da modernização – e de nosso culturalismo doméstico também, como veremos – é uma continuação, por outros meios, do racismo científico da cor da pele, não a sua superação.”[1]

“E essa continuação da escravidão por outros meios se utilizou e se utiliza da mesma perseguição e da mesma opressão cotidiana e selvagem para quebrar a resistência e a dignidade dos cidadãos.”[2]

“O ‘perigo negro’, usado como senha para massacrar indefesos e quilombolas durante séculos, é continuado por outros meios no massacre aberto, e hoje aplaudido sem pejo, de pobres e negros em favelas e presídios.”[3]

Os trechos destacados tanto iluminam o eixo da argumentação de Jessé Souza quanto convidam a uma pequena digressão: hora de falar de um prussiano do século XIX e seu paralelo com o sociólogo brasileiro do século XXI.

Da Guerra

Carl von Clausewitz (1780-1831) foi um destacado general prussiano, contemporâneo da expansão militar dos ideais da Revolução Francesa. De fato, a figura de Napoleão Bonaparte desempenha o papel de um autêntico fantasma na vida do oficial e do futuro teórico da guerra.

(O último grande livro de René Girard, Achevez Clausewitz, escrito em colaboração com Benoît Chantre, recupera a dicção de Plutarco num paralelo fascinante entre Napoleão e Clausewitz.)

A obra-prima do general, Vom Kriege, foi redigida durante as guerras napoleônicas, e publicada postumamente em 1832. Desde então constituiu-se num clássico fundamental. Uma passagem em particular é sempre citada, e nos contextos os mais variados.

“Vemos, portanto, que a guerra não é meramente um ato de política, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas realizada com outros meios”.

A fórmula tornou-se onipresente e foi adaptada às mais variadas circunstâncias.  A diplomacia não deixa de ser uma continuação da guerra por outros meios; o comércio internacional certamente pertence à semântica do conflito apesar da aparência de acordos civilizados e de uma reciprocidade feliz; não é portanto casual que em seu delírio de um Nero supremacista, Trump também apresente seu irracional e anacrônico protecionismo econômico como uma forma de guerra por outros meios; o próprio campo da cultura aí se inscreve, como a expressão soft power revela, aliás, sem maiores sutilezas.

(Claro, nem preciso recorrer à nefasta guerra cultural da extrema direita, não é mesmo?)

A força do pensamento de Carl von Clausewitz reside na agudeza da abordagem: a guerra não é compreendida como um fato isolado, explosão de violência aparentemente irracional. Pelo contrário, o general prussiano assinala a continuidade perfeitamente lógica entre os interesses de uma nação e o emprego de ações bélicas como instrumento válido. Aliás, a história europeia moderna dificilmente faria sentido sem essa percepção. Repare-se que não há aqui juízo de valor, mas, por assim dizer, constatação fática.

Eis o ponto de encontro que prometi: Jessé Souza descortina uma guerra permanente, com base na persistência, desde a escravidão, da combinação perversa do “preconceito de classe” e do “preconceito de raça”. As consequências são nefastas e transformam o cotidiano brasileiro num autêntico campo de batalha:

“O excluído, majoritariamente negro e mestiço, é estigmatizado como perigoso, inferior e perseguido não mais pelo capitão de mato, mas, sim, pelas viaturas de polícia com licença para matar pobre e preto.”[4]

Como se ainda permanecêssemos reféns do universo das aquarelas de Jean-Baptiste Debret, com suas cenas terríveis de tortura física de escravizados em plena praça pública como um hábito prosaico de um dia a dia marcado pela violência mais brutal.

Daí, Jessé Souza acerta no alvo: a continuação da escravidão por outros meios é o traço definidor do País-Brasil e que, por isso mesmo, jamais se transformou na Nação-Brasil.

(Já perguntava o ensaísta involuntário Zé Rodrix – “Quando será?”)

[1] Jessé Souza. A elite do atraso. Da escravidão à ascensão da extrema direita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2025, p. 19, grifos meus.
[2] Idem, p. 90-91, grifos meus.
[3] Idem, p. 91, grifos meus.
[4] Jessé Souza. A elite do atraso. Da escravidão à ascensão da extrema direita. Op. cit., p. 90.

JOÂO CEZAR DE CASTRO ROCHA ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)

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