
CHARGE DE JOTA CAMELO
O genocídio está quase completo. Ao ser concluído, não só terá dizimado palestinos, terá exposto a falência moral da civilização ocidental.
Este é o fim. O último capítulo sangrento do genocídio. Acabará em breve. Semanas. No máximo. Dois milhões de pessoas estão acampadas entre os escombros ou ao ar livre. Dezenas são mortas e feridas diariamente por projéteis, mísseis, drones, bombas e balas israelenses. Falta-lhes água limpa, remédios e comida. Chegaram a um ponto de colapso. Doentes. Feridos. Aterrorizados. Humilhados. Abandonados. Destituídos. Famintos. Sem esperança.
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Nas últimas páginas desta história de horror, Israel está sadicamente atraindo palestinos famintos com promessas de comida, atraindo-os para a estreita e congestionada faixa de terra de 14 quilômetros que faz fronteira com o Egito. Israel e sua cinicamente chamada Fundação Humanitária de Gaza (GHF), supostamente financiada pelo Ministério da Defesa de Israel e pelo Mossad, estão transformando a fome em uma arma. Estão atraindo palestinos para o sul de Gaza da mesma forma que os nazistas atraíram judeus famintos no Gueto de Varsóvia para embarcar em trens para os campos de concentração. O objetivo não é alimentar os palestinos. Ninguém argumenta seriamente que há comida ou centros de ajuda suficientes. O objetivo é amontoar os palestinos em complexos fortemente vigiados e deportá-los.

Membros de uma empresa privada de segurança dos EUA, contratada pela Fundação Humanitária de Gaza (GHF), um grupo privado de ajuda humanitária apoiado pelos EUA com o qual a ONU se recusa a trabalhar por questões de neutralidade, orientam palestinos deslocados enquanto se reúnem para receber suprimentos de ajuda em um centro de distribuição no centro da Faixa de Gaza, em 8 de junho de 2025, enquanto bombas de fumaça são disparadas por tropas israelenses. (Foto de Eyad via Getty Images)
O que vem a seguir? Há muito tempo parei de tentar prever o futuro. O destino tem um jeito de nos surpreender. Mas haverá uma explosão humanitária final no matadouro humano de Gaza. Vemos isso com as multidões crescentes de palestinos lutando para obter uma cesta básica, o que resultou em empreiteiros privados israelenses e americanos matando a tiros pelo menos 130 pessoas e ferindo mais de setecentas outras nos primeiros oito dias de distribuição de ajuda. Vemos isso com Benjamin Netanyahu armando gangues ligadas ao ISIS em Gaza que saqueiam suprimentos de comida. Israel, que eliminou centenas de funcionários da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA), médicos, jornalistas, funcionários públicos e policiais em assassinatos seletivos, orquestrou a implosão da sociedade civil.
Suspeito que Israel facilitará uma brecha na cerca ao longo da fronteira egípcia. Palestinos desesperados invadirão o Sinai egípcio. Talvez acabe de outra forma. Mas acabará em breve. Não há muito mais que os palestinos possam suportar.
Nós — participantes plenos deste genocídio — teremos alcançado nosso objetivo insano de esvaziar Gaza e expandir a Grande Israel. Vamos baixar a cortina sobre o genocídio transmitido ao vivo. Teremos zombado dos onipresentes programas universitários de estudos sobre o Holocausto, concebidos, ao que parece, não para nos equipar para acabar com genocídios, mas para deificar Israel como uma eterna vítima com licença para realizar massacres em massa. O mantra do “nunca mais” é uma piada. A compreensão de que, quando temos a capacidade de deter o genocídio e não o temos, somos culpados, não se aplica a nós. Genocídio é política pública. Endossado e sustentado pelos nossos dois partidos governantes.
Não há mais nada a dizer. Talvez seja esse o ponto. Para nos deixar sem palavras. Quem não se sente paralisado? E talvez, também, seja esse o ponto. Para nos paralisar. Quem não está traumatizado? E talvez isso também tenha sido planejado. Nada do que fazemos, ao que parece, pode deter a matança. Sentimo-nos indefesos. Sentimo-nos impotentes. Genocídio como espetáculo.
Parei de olhar para as imagens. As fileiras de pequenos corpos amortalhados. Os homens e mulheres decapitados. Famílias queimadas vivas em suas tendas. Crianças que perderam membros ou estão paralisadas. As máscaras mortuárias calcárias daqueles que foram retirados dos escombros. Os lamentos de luto. Os rostos emaciados. Eu não consigo.
Este genocídio nos assombrará. Ele ecoará pela história com a força de um tsunami. Ele nos dividirá para sempre. Não há como voltar atrás.
E como nos lembraremos? Não nos lembrando.
Quando acabar, todos aqueles que o apoiaram, todos aqueles que o ignoraram, todos aqueles que nada fizeram, reescreverão a história, incluindo a sua própria história. Era difícil encontrar alguém que admitisse ser nazista na Alemanha do pós-guerra, ou membro da Ku Klux Klan após o fim da segregação no sul dos Estados Unidos. Uma nação de inocentes. Vítimas até. Será a mesma coisa. Gostamos de pensar que teríamos salvado Anne Frank. A verdade é diferente. A verdade é que, paralisados pelo medo, quase todos nós salvaremos apenas a nós mesmos, mesmo à custa dos outros. Mas essa é uma verdade difícil de encarar. Essa é a verdadeira lição do Holocausto. É melhor que seja apagada.
Em seu livro “Um Dia, Todos Sempre Terão Sido Contra Isso”, Omar El Akkad escreve:
Se um drone vaporizasse alguma alma anônima do outro lado do planeta, quem entre nós quer fazer alarde? E se descobrirem que era um terrorista? E se a acusação padrão se provar verdadeira e, por implicação, formos rotulados como simpatizantes do terrorismo, condenados ao ostracismo e alvo de gritos? Geralmente, as pessoas são motivadas com mais zelo pela pior coisa plausível que poderia lhes acontecer. Para alguns, a pior coisa plausível pode ser o fim de sua linhagem em um ataque de míssil. Suas vidas inteiras transformadas em escombros e tudo isso preventivamente justificado em nome da luta contra terroristas que são terroristas por omissão, por terem sido mortos. Para outros, a pior coisa plausível é ouvir gritos.
Você pode ver minha entrevista com El Akkad aqui.
Não se pode dizimar um povo, realizar bombardeios de saturação ao longo de 20 meses para destruir suas casas, vilas e cidades, massacrar dezenas de milhares de pessoas inocentes, montar um cerco para garantir a fome em massa, expulsá-los da terra onde vivem há séculos e não esperar retaliação. O genocídio terminará. A resposta ao reinado do terror de Estado começará. Se você acha que não, não sabe nada sobre a natureza humana ou a história. O assassinato de dois diplomatas israelenses em Washington e o ataque contra apoiadores de Israel em um protesto em Boulder, Colorado, são apenas o começo.
Chaim Engel, que participou do levante no campo de extermínio nazista de Sobibor, na Polônia, descreveu como, armado com uma faca, atacou um guarda no campo.
“Não é uma decisão”, explicou Engel anos depois. “Você simplesmente reage, instintivamente reage a isso, e eu pensei: ‘Vamos lá, vamos lá e fazemos’. E eu fui. Fui com o homem no escritório e matamos esse alemão. A cada golpe, eu dizia: ‘Isso é pelo meu pai, pela minha mãe, por todas essas pessoas, todos os judeus que você matou.’”
Alguém espera que os palestinos ajam de forma diferente? Como reagirão quando a Europa e os Estados Unidos, que se autodenominam a vanguarda da civilização, apoiaram um genocídio que massacrou seus pais, seus filhos, suas comunidades, ocupou suas terras e reduziu suas cidades e lares a escombros? Como não odiar aqueles que fizeram isso com eles?
Que mensagem esse genocídio transmitiu não apenas aos palestinos, mas a todos no Sul Global?
É inequívoco. Vocês não importam. O direito humanitário não se aplica a vocês. Não nos importamos com o seu sofrimento, com o assassinato de seus filhos. Vocês são vermes. Vocês não valem nada. Vocês merecem ser mortos, passar fome e serem despojados. Vocês devem ser apagados da face da Terra.
“Para preservar os valores do mundo civilizado, é necessário incendiar uma biblioteca”, escreve El Akkad:
Explodir uma mesquita. Incinerar oliveiras. Vestir-se com a lingerie de mulheres que fugiram e depois tirar fotos. Destruir universidades. Saquear joias, obras de arte, alimentos. Bancos. Prender crianças por colherem vegetais. Atirar em crianças por atirarem pedras. Desfilar os capturados de cueca. Quebrar os dentes de um homem e enfiar uma escova de banheiro em sua boca. Soltar cães de combate contra um homem com síndrome de Down e depois deixá-lo morrer. Caso contrário, o mundo incivilizado pode vencer.
Há pessoas que conheço há anos com quem nunca mais falarei. Elas sabem o que está acontecendo. Quem não sabe? Elas não correrão o risco de alienar seus colegas, de serem difamadas como antissemitas, de colocarem seu status em risco, de serem repreendidas ou de perderem seus empregos. Elas não correm o risco de morrer, como os palestinos. Correm o risco de manchar os patéticos monumentos de status e riqueza que passaram a vida construindo. Ídolos. Elas se curvam diante desses ídolos. Elas adoram esses ídolos. São escravizadas por eles.
Aos pés desses ídolos jazem dezenas de milhares de palestinos assassinados.
CHRIS HEDGES ” THE CHRIS REDGES REPORTER” ( EUA) / ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
Chris Hedges é um autor e jornalista ganhador do Prêmio Pulitzer, foi correspondente estrangeiro do The New York Times por quinze anos.