GUERRA NUCLEAR ?

CHARGE DE CÍCERO

Putin declarou os EUA “patrocinadores de terrorismo”, e agora duas superpotências nucleares dançam na beira do abismo enquanto Trump ainda se vê como pacificador

1.

Em contraste com os tempos de Joe Biden, quando a inimizade era preto-no-branco, desde a posse de Donald Trump os EUA e a Rússia têm, desajeitada ou até desastradamente, tentado acertar passos de dança, para verem se dão conta de voltar a conviver de uma forma minimamente fluida como outrora.

Não mais.

No dia 01 de junho, ataques ucranianos a bombardeiros estratégicos das forças nucleares da Rússia e a um trem de passageiros, o que resultou na morte de civis, foram a pá de cal. No dia 04 de junho Vladimir Putin declarou: “Essas ações apenas confirmam nossas preocupações de que o já ilegítimo regime de Kiev, tendo tomado o poder pela força, vem de forma resoluta se convertendo em uma organização terrorista, ao passo que os seus patrocinadores atuam cada vez mais como cúmplices de terrorismo”.

Isto significa que a Rússia passou a considerar os Estados Unidos como país patrocinador de terrorismo, e terrorismo conta a Rússia.

Neste mesmo discurso, Vladimir Putin formalizou o abandono por parte da Rússia de quaisquer futuras negociações de paz com a Ucrânia, porque com terroristas não se negocia, ponto.

Mas o quadro é ainda pior. Até o dia 04 de fevereiro de 2026 os Estados Unidos e a Rússia encontram-se vinculados ao tratado New Start (ou Start-3), que assinaram em 2010 e prorrogaram em 2021. Esse tratado obriga as partes a prover transparência, por meio de inspeções e monitoramento por satélite, de seus respectivos arsenais nucleares um perante o outro.

Foi por essa razão que os bombardeiros estratégicos russos estavam estacionados a céu aberto, em vez de protegidos em hangares. O mesmo tratado que exige essa transparência coloca as partes como garantidoras da segurança dos equipamentos expostos um do outro.

Assim, a inteligência militar dos Estados Unidos, ao repassar à Ucrânia coordenadas de geolocalização das aeronaves (o que não tem como ser negado, pois nem a Ucrânia nem nenhum dos aliados europeus detém tal capacidade), não apenas fez dos EUA partícipes do ataque como – e muito pior – os fez romper com o tratado, de forma traiçoeira, fazendo uso de informações as quais se encontrava obrigada a resguardar no propósito de infligir dano aos meios nucleares da Rússia. Algo assim equivale, na prática, a uma declaração de guerra.

Quanto à Donald Trump em pessoa, ele pode até negar que tivesse conhecimento prévio dos ataques às aeronaves, mas isso não importa para os russos porque, sabedor ou não, é ele quem responde pelos Estados Unidos da América (se ele sabia, tanto pior, se não sabia, passa recibo de não deter controle sobre o próprio governo – o que não seria surpresa nenhuma, há décadas setores do deep state operam por agenda própria).

2.

Recentemente (novembro de 2024) a Rússia revisou a sua doutrina nuclear, a qual passou a estabelecer que: “[…] 11. A agressão contra a Federação Russa e/ou seus aliados por parte de qualquer estado não-nuclear [no caso, Ucrânia] com a participação ou apoio de um estado nuclear [no caso, pelo menos os Estados Unidos, senão Reino Unido e França também] é considerada um ataque conjunto por ambos. […] 19. As condições que permitem a possibilidade do emprego de armas nucleares pela Federação Russa são as seguintes: […] ações de um adversário que afetem elementos criticamente importantes da infraestrutura estatal ou militar da Federação Russa, cuja incapacitação prejudicaria ações de retaliação pelas forças nucleares; […]”. Uma vez que foi precisamente isto o que aconteceu, a resposta esperada agora seria um contra-ataque nuclear russo.

Uma tal resposta nuclear pode até acontecer, embora eu descreia. Tampouco um ataque com armas convencionais contra os EUA ou qualquer outro país da OTAN deve ser esperado, posto que arriscaria escalar até a guerra nuclear. Esse anticlímax repete o ocorrido em fins do governo Biden, quanto as tensões haviam chegado a um tal ponto que Vladimir Putin explicitamente ameaçou: “No dia 19 de novembro [de 2024], por meio de seis mísseis balísticos táticos ATACMS produzidos pelos Estados Unidos, e também hoje [no dia 21 de novembro], por ocasião de um ataque combinado de mísseis envolvendo os sistemas britânicos Storm Shadow e os sistemas HIMARS produzidos pelos EUA, foram atacadas instalações militares dentro da Federação Russa nas regiões de Bryansk e de Kursk. Daqui por diante, conforme nós havíamos deixado claro repetidamente em comunicações anteriores, o conflito regional na Ucrânia, provocado pelo Ocidente, passa a assumir um caráter global. […] nós estamos conduzindo testes de combate do sistema de mísseis Oreshnik como resposta às ações agressivas da OTAN contra a Rússia. Nossa decisão quanto a futuros lançamentos de mísseis de curto e médio alcance irá depender das ações dos Estados Unidos e seus satélites”.

Ameaçou, mas não cumpriu – ainda que, apenas quatro dias depois (no dia 25), mísseis ATACMS de fabricação americana tivessem mais uma vez sido utilizados em um ataque contra a retaguarda russa, atingindo o aeroporto militar de Khalino na cidade de Kursk e destruindo (segundo a Ucrânia) um sistema de defesa antiaérea S-400.

3.

Não obstante, a retaliação russa ao ataque às aeronaves ainda virá. Para que seja caracterizada com tal (de modo a surtir efeito intimidatório sobre o Ocidente), ela terá que ser qualitativamente distinta daquilo que os russos já vêm fazendo (mísseis e drones sobre a Ucrânia). E algo assim requer tempo para planejamento e preparação. Podemos assumir que a retaliação virá em seguida à próxima reunião do Conselho de Segurança da Rússia, quando as opções serão analisadas e o martelo será batido.

A minha perspectiva é que essa retaliação recairá sobre a Ucrânia, e não sobre os EUA ou a OTAN. Talvez a Rússia converta a sua “operação militar especial” em uma “operação de contraterrorismo”, pelo que toda a liderança ucraniana se tornaria passível de ser caçada e fisicamente liquidada. No limite, uma arma nuclear tática poderia ser empregada contra a Ucrânia, de modo a, pelo choque, levar as populações do Ocidente a caírem em si em relação aos riscos que desavisadamente já estão correndo.

Eu posso estar enganado, mas Vladimir Putin não quererá correr o risco de desencadear uma guerra nuclear contra os Estados Unidos. Diversos analistas militares (Andrei Martyanov por exemplo) sustentam que, dadas as tecnologias detidas atualmente por cada lado, a Rússia estaria em condições de arrasar por completo os Estados Unidos, enquanto que as suas defesas antimísseis (compostas por sistemas como S-500, S-550 e A-235 Nudol) estariam em condições de abater a maioria dos mísseis americanos.

Só que “a maioria” não significa “todos” e, assim, ainda que a Rússia sobreviva a uma guerra nuclear, milhões de pessoas morreriam vítimas daqueles mísseis que penetrassem as defesas. Para Vladimir Putin (e para a Rússia) algo assim não seria “vencer” uma guerra nuclear, seria meramente “perder menos”.

A situação da Rússia é exasperadora: ela não quer (e não vai, creio eu) provocar uma guerra nuclear, e assim ela não pode retaliar os EUA ou a OTAN. Mas, sem retaliá-los, ela os encoraja a novas provocações cada vez mais atrevidas e temerárias, porque a sua cautela é tomada por covardia. E, se nos Estados Unidos a belicosidade contra a Rússia estaria a cargo de facções do governo em vez dele todo, em países como Reino Unido, Alemanha e França a destruição da Rússia já é assumidamente uma política de Estado.

Então, o quadro paradoxal a que se chegou é que o Kremlin entende que os Estados Unidos são cúmplices do terrorismo ucraniano contra a Rússia, bem como que os Estados Unidos romperam traiçoeiramente o tratado Start-3 de defesa nuclear mútua que haviam firmado com a Rússia. Em síntese, os Estados Unidos estão agora em guerra contra a Rússia.

Ao mesmo tempo, a Rússia não pode responder diretamente, para não arriscar provocar uma guerra nuclear (uma resposta indireta, segundo análises, teria sido uma oposição terminativa, possivelmente sob forma de veto ou ultimato, tanto aos EUA quanto a Israel com respeito a qualquer ação militar contra o Irã).

4.

Para adornar esse paradoxo com cores bizarras e delirantes, Donald Trump, preso à sua leitura personalíssima da realidade, parece incapaz de se dar conta de que os Estados Unidos acabaram por chegar a um patamar de guerra contra a Rússia, e continua ainda a ver a si próprio como o pacificador por excelência do conflito entre Rússia e Ucrânia.

Em entrevista no dia 05 de junho, um repórter lhe perguntou se ele estaria considerando aplicar mais sanções à Rússia, no que ele respondeu “Sim, quando eu vir o momento quando nós não chegaremos a um acordo e que essa coisa [guerra] não vai parar. Nesse momento…” O repórter o interrompe: “Há um prazo limite?”, e ele prossegue: “Sim, está na minha cabeça, o prazo limite. Quando eu vir o momento em que isso não vai parar, e eu tenho certeza de que vocês também verão, nós seremos muito, muito, muito duros. E isso pode ser com os dois países, para ser sincero, você sabe, é preciso dois para dançar um tango. Mas… nós seremos muito duros, seja com a Rússia ou com qualquer outro país, seremos muito duros.”

Isso, para no dia seguinte (06), volúvel como ele só, dizer que os ucranianos, com o ataque às aeronaves, “deram a Vladimir Putin uma razão para ir lá e bombardeá-los até não poder mais”, ou seja, legitimando aquilo que entende já ser a retaliação russa.

Uma vez que a mídia hegemônica dá voz não só a Donald Trump mas a qualquer um do lado ucraniano porém a ninguém do lado russo, ao longo de todo o Ocidente (e assim também no Brasil) praticamente inexiste esse entendimento da extrema gravidade da situação – um estado de guerra entre Estados Unidos e Rússia é a antessala de uma guerra nuclear devastadora de todo o planeta (há, claro, as exceções de praxe, como Jeffrey Sachs).

A Rússia não teria saída, então? Estaria ela condenada a, de forma humilhante, se ver compelida a aturar, quieta, mais e mais agressões sem poder reagir à altura? Eu penso que não.

É claro que ela pode chegar a um ponto de exasperação tal que resolva escalar contra o Ocidente, correndo todo os riscos. Mas eu penso que ela queira buscar uma alternativa mais sagaz.

No dia 09 de dezembro de 2022, ao término da cúpula da União Econômica Eurasiana em Bishkek, no Quirguistão, durante uma entrevista despretensiosa um jornalista surpreendeu Vladimir Putin com uma pergunta capciosa, questionando-o sobre ele ter dito em outra ocasião, a respeito da doutrina russa de não usar armas nucleares primeiro, que se elas não fossem usadas primeiro tampouco serviriam depois.

Vladimir Putin lhe respondeu que quis dizer que, em caso de detecção de um ataque de mísseis contra a Rússia, os mísseis russos seriam disparados contra o inimigo garantindo a destruição completa dele, porém isso não impediria que mísseis inimigos viessem a atingir a Rússia, porque, afinal de contas, já teriam sido disparados. Em outras palavras, o arsenal nuclear russo existe para ser um dissuasor e não para o combate real ou, ainda, a finalidade última do arsenal russo é a de não precisar ser utilizado.

Na elaboração desse raciocínio Vladimir Putin mencionou o dispositivo presente na doutrina americana (mas não na doutrina russa) do first strike, um ataque nuclear de surpresa destinado a decapitar a liderança russa e a destruir seus meios para uma retaliação, utilizando mísseis de cruzeiro (Tomahawks) disparados de submarinos próximos à costa russa, armamentos estes que à época em que a teoria do first strike foi concebida os americanos possuíam porém os russos não (mísseis de cruzeiro quando sobre o mar voam rente à agua, e assim não são detectáveis – veja por exemplo este vídeo filmado por pescadores daguestaneses no Mar Cáspio, mostrando mísseis Kalibr a caminho da Ucrânia).

E foi durante essa digressão que ele deixou escapar os seguintes fragmentos: “[com relação a] um ataque preventivo de desarmamento com armas hipersônicas, os Estados Unidos não possuem essas armas, mas nós possuímos. Então, com relação a um ataque preventivo, talvez nós devêssemos pensar em como utilizar as soluções dos nossos parceiros americanos e as suas ideias sobre como garantir a sua própria segurança. […] Os Estados Unidos […] têm esse conceito de um ataque preventivo em sua estratégia e em outros documentos das suas políticas. Nós não. […] Se um adversário em potencial acredita que é possível usar a teoria do ataque preventivo, enquanto nós não, isso ainda nos faz pensar na ameaça que tais ideias da esfera da defesa de outros países significam para nós. E isso é tudo o que tenho a lhe dizer.”

Uma das coisas que Vladimir Putin disse foi “nós temos armas hipersônicas, e eles não”. Ora, algumas das armas russas mais modernas são capazes de atingir e destruir os meios de retaliação nuclear americanos sem botar a perder o elemento surpresa, e com munição convencional em vez de nuclear (apenas a título de informações resumidas de domínio público: o míssil de cruzeiro Burevestnik, movido a energia nuclear, supera as limitações de alcance inerentes aos mísseis de cruzeiro por possuir autonomia potencialmente infinita, e assim poderia ser lançado de qualquer ponto da Rússia e atingir os Estados Unidos vindo pelo oceano Pacífico, de forma indetectável por voar rente às ondas; o míssil de cruzeiro hipersônico Zircon pode ser disparado de submarinos próximos à costa americana, também é rasante e assim indetectável, e estima-se que tenha um alcance de até dois mil quilômetros; e o míssil balístico hipersônico Oreshnik, ainda que detectável por satélites, se disparado do extremo leste da Rússia teria um tempo de voo extremamente curto até os silos que abrigam os mísseis intercontinentais Minuteman americanos).

Lendo nas entrelinhas, a chave está em associar tais capacidades tecnológicas com uma outra coisa que Putin também disse, “a teoria do first strike faz parte da doutrina deles, mas não da nossa” – se os mísseis russos estiverem equipados com ogivas convencionais em vez de nucleares, então não há necessidade de inscrever o dispositivo do first strike na doutrina nuclear. Surpresa total e absoluta.

5.

Eu havia guardado para mim essas ideias sem lhes dar a devida importância, até que em 2024 um artigo em russo assinado por Timofey Sergeitsev, intitulado “A Rússia terá que privar os Estados Unidos das suas armas nucleares”, publicado a 17 de setembro daquele ano pela agência de notícias estatal da Rússia RIA Novosti e repercutido pelo blog em inglês de Andrei Martyanov, me evidenciou a decisão por um first strike de desarmamento.

A título de justificativa, reza o artigo: “[…] não se deve contar [de parte dos Estados Unidos] com o “instinto de autopreservação”, pois o sujeito que afirma ter superpoder não o possui por definição. O suicídio é precisamente a sua maior conquista e perspectiva inevitável. Afinal, um supersujeito se torna tal ao gastar recursos incontrolavelmente. O que um dia acaba. No entanto, ao contrário da União Soviética, que aceitou o veneno ideológico do anticomunismo e morreu tranquilamente na sua cama, os Estados Unidos tentarão levar consigo todos os outros. Porque vivem às custas dos outros e não às suas próprias custas. E os outros mais cedo ou mais tarde deixarão de alimentar o dragão.”

Há que se desarmar os Estado Unidos antes que eles destruam o planeta ao se darem conta de que não poderão mais predá-lo.

Enfim, tudo isso é apenas conjectura da minha parte. E por que? Porque para mim tudo isso faz sentido. E aqui não se trata apenas de fazer sentido, eu preciso acreditar que o mundo não irá acabar em uma hecatombe nuclear mesmo quando eu vejo tudo se encaminhando inexoravelmente nessa direção.

Vamos torcer para que os russos estejam mesmo preparando um first strike para desarmamento dos americanos, que o executem a tempo (antes que ocorra a guerra nuclear), e que sejam bem-sucedidos. Do contrário, as nossas (do mundo) perspectivas não são nada, nada favoráveis.

Se de todo modo advier a guerra nuclear, ainda assim lhes deixo aqui um texto que elaborei, “O Pós-Guerra Nuclear no Brasil”, sobre como seria possível tentarmos lidar com uma tal realidade.

RUBEN BAUER NAVEIRA ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)

*Ruben Bauer Naveira é funcionário público aposentado e ativista. Autor do livro Uma nova utopia para o Brasil: três guias para sairmos do caos, disponível para download em http://www.brasilutopia.com.br.

AnteriorAnteriorJosé Márcio Rego

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *