O TEMPO DO INFERNO SITIANDO A RAZÃO

Do laboratório de impunidade em Gaza ao silêncio cúmplice da Europa: um genocídio que expõe a bancarrota ética da razão moderna

A opinião pública internacional começa finalmente a sacudir o estupor da indiferença. Com crescente atenção — e horror —, assiste ao desenrolar de um genocídio sustentado e sistemático que não só ceifa vidas, como também devasta territórios, culturas e memórias. Observa as práticas de desertificação humana e material que a teocracia terrorista e imperialista de Israel impõe a Gaza, mas não apenas a esta já dizimada e estreita faixa de terra. Afeta também toda a geografia palestina, sem disfarce sob o pretexto da autodefesa.

Mas essa infâmia não irrompe como um relâmpago repentino: é apenas um novo degrau na longa escalada do horror, cujos primeiros degraus foram legitimados entre as ruínas ainda fumegantes da Segunda Guerra Mundial. Em sua gênese, o Estado de Israel nasceu como a saída geopolítica de uma Europa que, expiando sua culpa, erigiu outra catástrofe. A subjugação atual nada mais é do que a continuação aberrante desse desígnio.

Nem os escombros da alma palestina nem o fedor da carne carbonizada parecem penetrar as fronteiras da consciência ocidental. A Europa, envelhecida e blindada, vira o rosto, ainda que seus radares diplomáticos e comerciais estejam perfeitamente sintonizados com precisão cirúrgica. Gaza sangra em alta definição, mas os limiares morais do velho continente foram endurecidos por séculos de colonialismo e extermínio seletivo.

Nenhum horror a comove mais se não for branca ou não tiver passaporte da União Europeia ou fenótipo nórdico. Horroriza-se com o punhal improvisado de um refugiado, mas subsidia a indústria de mísseis supostamente cirúrgicos. Nem lágrimas restam.

Ali, na ratoeira da história, uma faixa de terra ressequida e cercada tornou-se sinônimo de sufocamento. É um laboratório a céu aberto da impunidade imperial. Não é o primeiro massacre, nem será o último, porque o genocídio se naturalizou como rotina. Não há trégua possível quando a própria trégua é usada como álibi para arrasar bairros inteiros.

Cada criança mutilada por estilhaços, cada escola transformada em pó, cada hospital fechado por uma bomba de precisão, é um tapa na cara da própria ideia de humanidade. A Europa está em silêncio. Não apenas em silêncio: persegue aqueles que fogem, aprisiona aqueles que protestam e deixa naufragar aqueles que escapam.

A vala comum do Mediterrâneo e os escombros de Gaza são feitos do mesmo barro moral. O mesmo barro que o Ocidente amassou ao longo de séculos de legalidade seletiva, asilo negado e direitos cercados por fronteiras. O direito ao exílio, outrora um grito sagrado nas vozes errantes do século XIX , da Primeira Guerra Mundial ou do nazismo, está agora afogado entre a cerca de Melilla e os campos de concentração higienizados das ilhas gregas ou de Lampedusa.

Não há memória viva nas capitais europeias, apenas o mármore frio de simpósios com resoluções não vinculativas e bolsas de estudo para estudar a paz enquanto se comercializa armas. Dois pesos e duas medidas não são dissonância, mas doutrina: tornaram-se um regime.

A Europa, outrora aclamada como um farol da civilização, acabou se tornando sua sinistra paródia. Não oferece refúgio, mas cercas eletrificadas. Não oferece asilo, mas deportação. Não oferece ajuda, mas calcula o naufrágio. Depois de derrubar o sinistro Muro de Berlim, ergueu novos muros.

A velha Europa, o túmulo das utopias iluminadas, transformou o Mediterrâneo em uma vala comum mais profunda que suas águas: é o abismo em que afundam a fraternidade e a legalidade internacional. Sob a retórica da segurança, nega asilo em nome da segurança àqueles que fogem dos horrores semeados por suas próprias armas e pelas de seus aliados.

Passaportes, como armas, também matam. Não com pólvora, mas com ausência: a ausência de direitos, de chão firme, de toda empatia. Uma origem geográfica equivocada ou pele escura bastam para ser ilegítimo, dispensável. Enquanto Gaza arde sob as bombas, a Europa restringe vistos, corta o financiamento humanitário e ordena navios que vigiam, não salvam. Protege-se da fumaça que a história levanta como se sua alma não estivesse já maculada por séculos de colonialismo, escravidão, pogroms e extermínios. Os muros de hoje são herdeiros diretos dos muros que a Europa jamais ousou derrubar.

Para aqueles que escaparam das bombas, a intempérie. Para aqueles que fugiram da ocupação, o confinamento. A solidariedade europeia vem com cláusulas de exclusão: nem muitas, nem muito próximas, nem muito diferentes. Mas essa contabilização do sofrimento a aproxima mais de seus antigos algozes do que dos ideais que outrora defendeu. Quando se considera quantos refugiados um país pode “suportar”, não há mais uma bússola, apenas um cálculo. Porque não se trata de uma questão de peso demográfico, mas de ônus ético. E a Europa, com Gaza diante dos olhos, declarou a falência da humanidade.

A América Latina, que soube cantar sua rebelião contra impérios e abrir corredores humanitários quando as balas caíam como raios sobre nações irmãs, hoje mal murmura, se é que pronuncia uma palavra. Já se foram as fotos de presidentes defendendo a causa palestina em fóruns globais. Hoje, silêncios oficiais e declarações diplomáticas mornas pesam como lápides sobre uma história que deveria ser de solidariedade e agora jaz enterrada.

Em Gaza, assim como com nossos desaparecidos, também há voos da morte. Os corpos não são jogados fora, mas germinam no território. Mas agora, nossos governos, mesmo os progressistas como o do Uruguai, mantêm uma distância prudente para não incomodar Washington ou dificultar o comércio: isso nos envergonha.

O Sul Global perdeu seus reflexos e seu pulso. Apenas algumas vozes solitárias e alguns países ainda irreverentes ousam chamar genocídio de genocídio, apartheid de apartheid. Os demais acalmam sua inação com eufemismos. Ou pior, chamando a limpeza étnica de guerra. Apelam para a “complexidade do conflito” como se escondessem um crime sob a névoa do caos. Pedem “contenção de ambos os lados”, como se houvesse simetria entre aqueles que atiram fósforo branco em escolas e aqueles que se defendem com pedras, foguetes caseiros e comunicados. É a linguagem da equidistância, que na verdade é a linguagem do carrasco.

O projeto fundador dos Estados-nação, tal como emergiu da Paz de Vestfália, pressupunha um território fixo, uma população constante e soberania reconhecida. O Estado-nação implicava não apenas uma estrutura jurídico-administrativa, mas também uma certa homogeneidade cultural ou étnica, ou pelo menos uma narrativa legitimadora forjada a posteriori. Nesse contexto, o Estado deveria articular os interesses individuais sob a proteção da lei e da racionalidade jurídica, em nome do bem comum.

Hegel levou essa noção ao seu ápice filosófico. O Estado, em sua visão, não é meramente uma estrutura legal: é a personificação da própria razão, o momento em que a liberdade subjetiva se torna a vontade geral. E o espírito absoluto é historicamente realizado. O Estado hegeliano não apenas governa: ele revela e concretiza o significado profundo da história universal, através da mediação dialética das contradições.

Marx, em sua crítica à filosofia do Estado de Hegel ao conceber que o Estado burguês não é uma culminância histórica, mas um ponto de partida, continua a pensar que a modernização capitalista não é apenas uma ordem de racionalidade superior à precedente, mas também a condição de possibilidade para a transição em direção à sua superação. Talvez encorajado pelo entusiasmo darwinista da época, ele induziu uma leitura evolucionária da história que ainda permeia certos movimentos de esquerda contemporâneos.

A racionalidade da modernidade se constrói sobre uma confiança sem precedentes na razão humana como princípio ordenador do mundo. Não dogma ou herança, mas a vontade iluminista de construir uma ordem política fundada na autonomia individual, na soberania popular e na legalidade dessacralizada do contrato humano.

As revoluções francesa e americana, frutos dessa nova racionalidade, deslocaram definitivamente a matriz teológico-política do absolutismo e consagraram o direito à autodeterminação, a cidadania jurídica universal, a liberdade como fundamento do sujeito moderno e a igualdade perante a lei como seu horizonte normativo. Foram mais do que irrupções políticas: constituíram o mito fundador da modernidade emancipatória, superando até mesmo o Pacto de Vestfália, que ainda conservava resíduos monárquicos e uma concepção estática de poder.

Contudo, esse universalismo proclamado, embora frequentemente sincero, nunca foi neutro: foi extraído do centro europeu, com pretensões de expansão totalizante, e relegou singularidades culturais e povos colonizados às margens da exceção, do atraso e da barbárie. O universalismo moderno, em sua própria natureza, carrega, portanto, a sombra de suas próprias limitações: ele pretende incluir a todos, mas a partir de um modelo que exclui todas as diferenças que não podem ser assimiladas.

Sob o disfarce da lei e da promessa de universalidade, a modernidade também iluminou seu abismo, sua falha mais atroz: a coexistência com tragédias políticas e a própria possibilidade de seres humanos sem direitos. Hannah Arendt formulou um dos alertas mais radicais do século XX. Ela alertou que a desumanização não começa com o assassinato, mas muito antes: quando alguém é excluído da comunidade política e perde o “direito de ter direitos”.

Não se trata apenas de uma desapropriação legal, mas de uma mutilação ontológica: o ser humano sem cidadania não é mais sequer um cidadão degradado, mas um não sujeito, expulso do mundo comum. Assim, os apátridas, os expulsos, os detidos sem documentos, encarnam o paradoxo de uma modernidade que proclama direitos inalienáveis, mas apenas os torna exigíveis sob uma soberania reconhecida.

Onde não há pertencimento, não há humanidade. E onde alguém é reduzido a uma mera vida biológica sem história, sem nome, sem comunidade, a barbárie começa não como uma ruptura com a modernidade, mas como sua culminância perversa.

Nessa perspectiva, o modelo israelense não se alinha ao ideal hegeliano do Estado como uma razão corporificada que transcende interesses particulares. Ao contrário, preserva a particularidade de uma comunidade étnico-religiosa como pedra fundamental do Estado desde suas origens. A cidadania árabe-israelense, embora formalmente reconhecida, permanece como um cidadão de segunda classe, subordinado tanto simbólica quanto legalmente. Pode esse tipo de Estado ser considerado uma expressão da razão universal ou, melhor, uma forma moderna de teocracia democrática representativa, ou mesmo um oxímoro: uma etnoteocracia democrática?

Israel é um caso que desafia as categorias da modernidade. Formalmente, apresenta-se como uma democracia parlamentar moderna, com separação de poderes e sistema jurídico próprio. Contudo, sua fundação em 1948 foi sustentada não apenas por razões políticas, mas também por uma reivindicação nacional-religiosa e uma genealogia étnica que contradiz substancialmente o modelo iluminista de cidadania universal.

O Estado israelense não é apenas o lar dos cidadãos nascidos em seu território, mas a pátria de todos os judeus do mundo. De um lado, a Lei do Retorno, que garante cidadania automática a qualquer judeu independentemente de seu local de nascimento; de outro, a Lei do Estado-Nação do Povo Judeu (2018), que consagra o caráter judaico do Estado acima do princípio da igualdade, configura uma concepção étnico-religiosa do Estado que se afasta radicalmente do princípio da igualdade (ainda exclusivamente formal para os cidadãos) do universalismo jurídico moderno.

O conceito de teocracia, tradicionalmente reservado a regimes onde o clero detém o poder direto — como no Irã ou no Vaticano — sofreu mutações na era contemporânea. Uma casta sacerdotal não é mais necessária no governo para que uma estrutura estatal seja regida por mandatos sagrados. Basta que uma religião condicione normativamente as leis, a educação, os costumes civis e até mesmo a política externa, para que o poder derive sua legitimidade de uma narrativa transcendente.

Israel, embora não seja administrado por rabinos, entrelaça sua estrutura jurídica com princípios religiosos que permeiam tudo, desde o direito civil — como o casamento — até a política territorial, simbolicamente consagrada como a posse de uma “Terra Prometida”. A teologia opera como a espinha dorsal da soberania. Mesmo a partir dos princípios fundadores do sistema vestfaliano, surge uma questão tão básica quanto perturbadora: Israel, a rigor, tem fronteiras?

Essa amálgama híbrida de instituições representativas e legitimação religiosa suscita mais do que uma mera ambiguidade ontológica: Israel é um Estado moderno no sentido racional-hegeliano, ou uma teocracia imperial disfarçada de instituições liberais? É governado pela vontade geral ou pela vontade de uma comunidade historicamente marcada pela memória do exílio e do “pacto divino”?

Prefiro pensá-lo como um Estado étnico, teocraticamente estruturado, que impõe, por meio de uma violência inscrita na lógica do extermínio identitário, uma ordem de exclusão estrutural a povos não integrados à narrativa nacional judaica, como o povo palestino.

Assim, a questão não é apenas se Israel realiza a razão, mas que forma de razão se materializa em sua própria existência: uma razão universal, esclarecida e cívica, ou uma razão identitária e excludente, legitimada pela fé? Essa tensão — entre Hegel e Josefo, entre Vestfália e Sinai — permanece sem solução, mas define o drama contemporâneo de um Estado que invoca o progresso, dramaticamente confirmado em seu desenvolvimento tecnobélico, enquanto exibe orgulhosamente um arcaísmo político e cultural.

Em 2008, comecei a publicar uma série de artigos nas últimas páginas dominicais do jornal La República, através dos quais pretendia tipificar o terrorismo (por exemplo “Três tristes terrorismos”): o terrorismo individual ou partidário (como o praticado e felizmente abandonado pelo movimento anarquista — que felizmente se descontinuou — e hoje, em outra escala, o Hamas, que usa o ódio e a vingança como álibi moral, sob a aparência de uma resistência que dissolve atos cegos); o terrorismo de Estado (como o que assolou nossas nações do sul); e o terrorismo imperial (como o praticado pelos Estados Unidos em todo o mundo e por Israel no Oriente Médio, bombardeando com a arrogância dos eleitos enquanto legisla sobre cadáveres). Os três convergem tragicamente, como rios de fogo, para a mesma vítima: a população civil indefesa.

Em Gaza, todos os fogos se cruzam: os do céu, os da terra, os do ódio. Bombas imperiais com selo israelense-americano e colaboração europeia, o fanatismo reacionário de grupos de milícias que reivindicam a vingança como identidade, e o silêncio já obsceno e ensurdecedor de organizações internacionais, cúmplices por omissão.

Não há simetria possível entre o oprimido sitiado e o opressor blindado. Não há paridade nem na contagem de corpos nem na monstruosa assimetria do fogo. Mesmo assim, nem o terror de um nem de outro pode ser redimido: o sangue de uma criança morta em nome de uma bandeira não vale mais nem menos do que o de uma criança morta por um drone sem rosto.

Nomear o Hamas como terrorista sem nomear Israel como terrorista imperial é um ato de covardia intelectual. Assim como romantizar o desespero ou transformar o foguete caseiro em símbolo de resistência. O terror não liberta. Não conscientiza, não organiza a esperança. Pelo contrário, a envenena. Gaza não precisa de mártires, minas, túneis ou drones militares no céu, mas sim de água limpa, soberania e escolas abertas ao futuro: direitos. E, acima de tudo, não precisa ser esquecida entre massacres e massacres, como se seu direito de existir dependesse apenas de quanto ela pode sofrer sem desaparecer.

Não existe neutralidade diante do genocídio, assim como não houve diante de Treblinka ou da ESMA. O silêncio consente. Quem hesita, adia. E nessa demora, uma mulher é enterrada na fronteira, um idoso agoniza sem água no coração de Gaza, e mais uma criança sufoca sob um prédio desabado. Não se trata de tomar partido ou avaliar proporcionalidade: trata-se da defesa radical da vida humana, sem distinção de fé, passaporte ou geografia.

Artigos brilhantes foram publicados recentemente no Uruguai, como o de Gabriela Balkey, exaltando a cultura judaica em diálogo com a nacionalidade oriental, mas exigindo que isso nunca seja feito em seu nome, ou o de Federico Fasano, enfatizando a nefasta conversão de judeus de vítimas recentes a algozes atuais. Não me passou despercebido que a opção quase hegemônica entre a esquerda e os movimentos progressistas tem sido a constituição de dois Estados.

Pelo contrário, acredito que constitui uma ilusão perigosa diante do drama palestino-israelense. Porque não só se tornou impraticável em termos geopolíticos, mas também é profundamente regressivo no plano civilizacional. Longe de garantir a paz, consolidaria a fragmentação, o atraso e a barbárie em uma região dilacerada por concepções pré-modernas e teocráticas que se alimentam mutuamente em sua violência, distanciando-se cada vez mais, inclusive, da fase jacobina da Revolução Francesa.

Os acontecimentos atuais não me induzem a mudar essa posição, que defendi naquela série de artigos há quase duas décadas. A única solução justa, possível e ética reside na fundação de um Estado único, moderno e laico, que supere o etnocentrismo do apartheid israelense e a lógica patriarcal da liderança palestina, para citar apenas um aspecto de cada um. Um Estado onde a cidadania não seja definida por credo, etnia ou linhagem, mas pela pertença igualitária ao espaço político comum.

Um Estado laico, com plena liberdade de culto, que reconheça todas as línguas, culturas e memórias, e restaure a dignidade jurídica e ontológica daqueles que hoje vivem excluídos do direito de ter direitos. Como a África do Sul tentou outrora após o apartheid, ou a Bolívia quando constitucionalizou seu pluralismo ancestral, esta é a única maneira de inscrever esta terra dilacerada na modernidade democrática e emancipatória, retirando-a do pântano do atraso em que se aninharam mutuamente.

O inferno não é um lugar: é este o tempo. E Gaza, seu nome próprio. Mas há outra possibilidade, ainda latente: que a raiva se organize, que a tristeza se transforme em julgamento, que a memória não seja enterrada sob os escombros. Que a resistência não se confunda com a vingança, nem a denúncia com a retórica. Que o Sul se lembre de sua vocação para a solidariedade. Que as palavras nem sempre cheguem tarde demais.

Gaza não é apenas uma ferida aberta: é um espelho. E estamos olhando para nós mesmos.

EMÍLIO CAFASSI ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

TraduçãoArtur Scavone.

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