
Ehud Olmert: “O que estamos fazendo em Gaza é uma guerra de extermínio…um indiscriminado…cruel e criminoso assassinato de civis…e, sim, Israel está cometendo crimes de guerra”
1.
1.
Em meados dos anos 1950, uma corajosa jornalista, Helena Salem, brasileira de cultura judia, escreveu um livro sobre a saga do povo palestino com um título polêmico: Os novos judeus. Em linguagem fluente e despojada, sem pieguices sentimentais, a autora apontava, já na época, justificando o título, as perturbadoras semelhanças entre os destinos de judeus e palestinos.
A história dos judeus é bem conhecida. Um povo discriminado, perseguido e chacinado durante séculos, sobretudo na Europa cristã, e em especial na parte central e oriental do continente europeu. Os judeus, espalhados pelo mundo, despojados da proteção de um Estado nacional, eram quase sempre obrigados a viver separados das comunidades nacionais em que se inseriam, nos chamados ghettos, palavra de origem italiana, designando um bairro, em Veneza, onde eles eram obrigados a viver.
De tempos em tempos, as suas comunidades eram massacradas, criando-se na língua russa até uma palavra específica para o fenômeno: pogrom. O termo, sinistro, especificava as tempestades de violência que se abatiam de tempos em tempos sobre os judeus, estimuladas por preconceitos religiosos multisseculares e incentivadas, e acobertadas, o mais das vezes, pelos Estados da região ou/e pelas forças mais obscuras disseminadas nas sociedades.
O processo, como se sabe, alcançou tenebroso auge no âmbito da Segunda Guerra Mundial, com o extermínio dos judeus promovido de forma sistemática e industrial pelo nazismo alemão, o Holocausto ou Shoah. Em hebraico: destruição, catástrofe. No contexto dos pogroms e da Shoah o aniquilamento dos judeus não obedecia a qualquer critério particular, social ou político: os judeus eram candidatos certos à morte por serem isto que eles eram por origem e formação cultural: judeus.
Registre-se que, no curso da Guerra, as evidências deste sombrio processo filtravam e se acumulavam, mas, por variadas (des)razões e preconceitos, foram ignoradas ou subestimadas pelas principais lideranças e Estados que combatiam o nazismo.
Já antes da Guerra, procurando alternativas às discriminações, os judeus, em movimentos diversos, de distintas orientações políticas, começaram a emigrar para o território histórico de onde provinham seus ancestrais e onde viviam pequenas comunidades judaicas: a Palestina, então sob controle da Inglaterra, desde o fim da Primeira Grande Guerra, em 1918. Uma de suas lideranças qualificou então o movimento migratório como a de um povo sem terra para uma terra sem povo. Mas havia ali um povo, o povo árabe palestino, com uma religião específica, o islamismo.
Ao longo dos anos 1920 e 1930, a convivência entre os que lá chegavam e os que já residiam no território, até então pacífica, começou a conhecer tensões e a se deteriorar, em torno de duas questões: a terra e a água, escassas na região e essenciais à sobrevivência humana. As contradições acirraram-se depois da Guerra. Tangidos pelos horrores do Holocausto e pela indiferença dos europeus, cresceu, de forma exponencial, a emigração dos judeus, interessados em construir um Estado nacional próprio, capaz de defendê-los das tradicionais – e históricas – perseguições.
2.
A alternativa proposta – e aprovada pela Assembleia Geral da ONU – foi a partição da Palestina entre judeus e árabes. Neste contexto, fundou-se o Estado de Israel, em 1948, hegemonizado na época por um Partido Trabalhista, filiado à Internacional Socialista, de orientação laica, e dispondo de simpatias das duas superpotências emergentes da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética.
Entretanto, opondo-se à partilha do território, considerando-se excluídos do compromisso aprovado, os Estados árabes vizinhos (Egito, Jordânia e Síria) não tiveram interesse em patrocinar a formação de um Estado palestino. Ocuparam o território destinado a isto e declararam guerra ao novo Estado de Israel. Foram derrotados num conflito que durou pouco menos um ano (maio de 1948 a março de 1949), no âmbito da qual os árabes palestinos foram os que mais sofreram, expulsos de muitas de suas terras, batidos e humilhados.
Uma parte deles permaneceu em Israel, tornando-se ali cidadãos de segunda classe. A maior parte agrupou-se como pode em campos de refugiados ou nas pequenas cidades das regiões que passaram ao controle do Egito (a faixa de Gaza) e da Jordânia (a Cisjordânia). Seus sofrimentos e desterro ganharam uma palavra árabe: al-Nakba, a catástrofe. A saga dos “novos judeus” tinha apenas se iniciado.
Na segunda metade do século XX, a região seria redefinida segundo os parâmetros da Guerra Fria e dos interesses dos Estados envolvidos. O Estado de Israel, sob as referências de uma democracia liberal, tornou-se aliado incondicional dos Estados Unidos e dos principais estados europeus. Apoiado militar, política e diplomaticamente pelas potências ocidentais, armado até os dentes, dispondo de uma população altamente instruída, passou a ser visto pelos árabes como uma espécie de enclave ocidental ancorado no mundo árabe.
O nacionalismo árabe emergente nos anos 1950 e 1960 fez da destruição do novo Estado um programa. Numa aliança instável com a União Soviética, propunha-se, para o território da Palestina, um estado unificado, laico, onde conviveriam árabes e judeus. Sob as asas deste nacionalismo, incentivado por ele, criaram-se diversas organizações revolucionárias palestinas, reunidas na Organização para a Libertação da Palestina/OLP, reconhecida em 1964 pela Liga Árabe como única representante do povo palestino. Mas os palestinos cedo perceberiam que os Estados árabes estavam dispostos à luta contra Israel até o último… palestino.
No contexto da Guerra Fria e da radicalização nacionalista árabe, seguiram-se três guerras. A de outubro de 1956 durou cinco dias. Israel aliou-se aos Estados inglês e francês que, equivocando-se de século, como se disse na época, desembarcaram tropas na região para impedir a nacionalização do Canal de Suez. Embora vitoriosos, em termos imediatos, ingleses, franceses e israelenses foram obrigados a se retirar pelas pressões soviéticas e norte-americanas.
A de 1967 durou um dia a mais que a anterior, entre 5 e 10 de junho, e resultou num desastre para os estados árabes e para os palestinos em particular. Israel, mais uma vez apoiado pelos EUA e pelas potências europeias, levou de roldão os diferentes exércitos árabes e ocupou toda a Palestina e mais alguns territórios pertencentes ao Egito e à Síria. Uma nova catástrofe para os palestinos, pois a dominação dos Estados árabes vizinhos seria agora substituída pela dominação direta dos israelenses.
A situação ainda iria piorar – e muito – para os palestinos no chamado “setembro negro”. Ocorreu em setembro de 1970, quando as tropas árabes da Jordânia chacinaram as unidades guerrilheiras da OLP estacionadas no país, expulsando-as para o Líbano, com o objetivo de preparar condições para uma normalização de suas relações com Israel. Em fins deste funesto mês, morreria o grande líder nacionalista egípcio Gamal Abdel Nasser, incentivador maior da OLP. Os palestinos, mais uma vez, constatavam a fragilidade das alianças com seus irmãos árabes.
Viria ainda uma nova guerra, a de 1973, iniciada em 6 de outubro por uma ofensiva egípcia, articulada com a Síria, que surpreendeu os israelenses em um de seus dias sagrados, o Yom Kippur. Encerrou-se vinte dias depois, com resultados controvertidos, pois ambos os lados cantaram vitória. Do ponto de vista palestino, o mais importante foi que a guerra deu lugar a longas tratações entre egípcios e israelenses que, sob o patrocínio dos Estados Unidos, assinaram os chamados acordos de Camp David, em 1978. No ano seguinte, o Egito assinou um tratado de paz com Israel, reconhecendo formalmente a existência do Estado de Israel em troca da devolução dos seus territórios perdidos em 1967.
3.
E os palestinos nesta história toda? Entregues a si mesmos. E suas organizações revolucionárias? Obrigadas a se redefinirem. E o programa de destruição do Estado de Israel? Arquivado.
Os palestinos procuraram se adaptar aos novos tempos. Já em 1974, Yasser Arafat, grande líder da OLP, era recebido na ONU. Em discurso de grande repercussão, sem abandonar as armas, oferecia um ramo de oliveira. Teve início um longo percurso que iria desembocar, anos mais tarde, em 1988, no reconhecimento pelos palestinos do direito à existência de Israel. Foi um marco histórico. Promissor. Inclusive porque ocorria no contexto de um primeiro grande movimento social do povo palestino que, na Cisjordânia e em Gaza, protestava com pedras e gritos contra a ocupação israelense.
A Intifada (agitar, em árabe), entre 1987 e 1993, evidenciou a vontade dos palestinos de constituir um estado próprio, ensejando simpatia em todo o mundo e oferecendo o quadro em que se deram as conversações entre palestinos e israelenses, resultando nos Acordos de Oslo, em 1993, prevendo-se, por etapas, a criação de um Estado Palestino. No ano seguinte, Arafat, pela OLP, e Yitzhak Rabin e Shimon Peres, pela antiga tradição trabalhista israelense, seriam agraciados, com razão, com o Prêmio Nobel da Paz.
Parecia que as propostas de 1948, quase meio século depois, seriam, afinal, concretizadas.
Mas os sonhos palestinos de um Estado próprio não se realizaram. Yitzhak Rabin, um dos principais arquitetos dos Acordos de Oslo, foi assassinado por um extremista de direita, judeu, em 1995. O fato de não ter tido sucessores à altura evidenciou o enfraquecimento das tendências favoráveis a entendimentos com os palestinos. No contexto da sociedade, os desdobramentos da ocupação israelense na Cisjordânia e, em menor medida, em Gaza, ensejaram a ocupação ilegal das terras palestinas por dezenas de milhares de colonos.
Apesar do não reconhecimento internacional, as novas colônias consolidaram-se e hoje reúnem cerca de 400 mil judeus, muitos dos quais animados com propósitos messiânicos de formação de um Grande Israel, que subtende a submissão, a expulsão ou o extermínio dos palestinos. No plano político, cresceram as tendências de direita e de extrema-direita em Israel, reforçadas pelo afluxo da imigração proveniente da Rússia, estimada em cerca de um milhão de pessoas, a maioria identificada com políticas extremistas de direita.
Benjamin Netanyahu tornou-se expressão política deste processo, aliado a partidos de confissão religiosa, também comprometidos com propósitos messiânicos. Assim, os Acordos de Oslo, assinados nos anos 1990, viraram letra morta e uma segunda Intifada, nos primeiros anos deste século, não teve força suficiente para reconstruir uma dinâmica de compreensão mútua.
Por outro lado, os sucessores de Arafat na condução dos territórios palestinos semi-autônomos, em condições muito adversas, não souberam conquistar a confiança da população palestina, acossados por escândalos de corrupção e acusados de conciliação indevida com o governo israelense. Seu prestígio declinante levou-os a expedientes de perpetuação no poder, sabotando ou anulando eleições livres que os ameaçavam.
A popularidade do Hamas cresceu neste quadro, sobretudo na faixa de Gaza, mas sua força já estava sendo objeto de controvérsias nos últimos anos, em virtude da violência contra eventuais oposições ou críticas.
A ofensiva terrorista promovida pelo Hamas, em outubro de 2023, com seu cortejo de crueldades, teve grande impacto no mundo e, em especial, na sociedade israelense, mobilizada pelo desejo de vingança. Entretanto, o massacre da população em Gaza que teve início desde então, já há muito ultrapassou qualquer proporção. O bombardeio indiscriminado de uma população indefesa sem meios de contra-atacar é covarde e injustificável.
A situação também tem se tornado crítica na Cisjordânia, onde os colonos judeus hostilizam, perseguem e tornam insuportável a vida dos palestinos, conforme documentado pelo recente e emocionante filme No Other Land/Sem chão, dirigido por judeus e palestinos (Basel Adra, Yuval Abraham, Rachel Szor e Hamdan Ballal).
Lideranças da aliança no poder em Israel, de extrema direita, sempre apoiados pelo governo dos EUA, já falam abertamente em anexar de uma vez os territórios palestinos, promovendo uma gigantesca “limpeza étnica”, comparável, em escala ampliada, ao que se viu em guerras civis na Europa (ex-Iugoslávia) e na África (Congo e Ruanda).
Enquanto isso, os Estados Unidos e os principais Estados europeus permanecem apoiando o atual governo israelense ou mudos e passivos (China e Rússia, Índia), naturalizando o matadouro em que se tornou Gaza. Até mesmo os estados árabes, dando continuidade às suas políticas tradicionais de instrumentalização dos palestinos e de conciliação com Israel, limitam-se a declarações inócuas de solidariedade.
E o Brasil, embora tendo seu embaixador desrespeitado por autoridades israelenses, não esboçou nenhuma atitude mais firme e decente. Quanto às esquerdas brasileiras, limitam-se igualmente a palabras. Trata-se de um colossal fracasso ético, como assinalou com razão a escritora Francesca Melandri.
Salvando a honra da humanidade, começam a despontar, porém, embora ainda débeis, sinais de um movimento de indignação. O governo da África do Sul, em maio do ano passado, denunciou Israel no Tribunal Internacional de Haia por prática de genocídio. Os governos de outros estados europeus (Espanha, Holanda, Suécia e Irlanda), de forma tímida, pressionam a União Europeia a condenar o massacre.
Além disso, manifestações públicas, em várias sociedades europeias, protestam contra a carnificina. Mesmo em Israel, civis e militares da reserva começam a se movimentar e a denunciar a guerra. Ehud Olmert, ex-primeiro ministro israelense, não ficou em meias palavras. Disse ele: “O que estamos fazendo em Gaza é uma guerra de extermínio…um indiscriminado…cruel e criminoso assassinato de civis…e, sim, Israel está cometendo crimes de guerra”.
Os palestinos, entregues a si mesmos, usados, abusados, humilhados e tiranizados, feridos e assassinados transformam-se definitivamente em novos judeus. E é uma tragédia histórica irremediável que parte dos próprios antigos judeus se tornem os perpetradores e responsáveis por esta transformação.
DANIEL AARÃO REIS ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
*Daniel Aarão Reis é professor titular de história contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A Revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917 (Companhia das Letras). [https://amzn.to/3QBroUD]