
A obra de Jessé Souza é um aprofundamento consciente dessa fratura exposta
O dilema de Prudêncio
Na última coluna mencionei o “dilema de Prudêncio” como uma chave possível para a leitura do ensaio de Jessé Souza, A elite do atraso.
Tratemos, pois, desse impasse.
Como você se deu conta, retorno ao personagem das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
Em sua anamnese interessada, o defunto autor assim evoca a tirania do menino Brás sobre o moleque Prudêncio – e os dois termos, menino e moleque, sintetizam a rigorosa hierarquia que nunca abandona a relação dos dois. A violência absurda da cena apenas é agravada pela sua naturalização:
“Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando
muito, um – ‘ai, nhonhô!’ – ao que eu retorquia: – ‘Cala a boca, besta!’.”
Coisificado, objeto dos caprichos do futuro senhor de direito, mas já um cruel sinhozinho de fato, o moleque só podia lamentar-se – e ainda assim em voz baixa. Brás aprendeu a ser severo e impiedoso desde a mais tenra idade e, por isso, nesse Brasil bem brasileiro, Prudêncio não podia senão sonhar com a improvável alforria, sem jamais poder denunciar as torturas diárias que sofria. Mas não se esqueça da lição do filósofo Johnny Alf: às vezes, o inesperado faz mesmo uma surpresa. Redundância com final feliz, a liberdade veio e o escravizado tornou-se homem livre – pobre, porém livre.
(O encontro entre Carl von Clausewitz e Jessé Souza começa a ser esboçado.)
Alforriado, Prudêncio finalmente deixou o círculo de ferro das arbitrariedades e dos caprichos de um senhor-menino. Eis que um dia o caminho dos dois se reencontrou. A passagem é longa, mas indispensável para que se entenda o verdadeiro dilema que ainda não fomos capazes de superar:
“(…) era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: – ‘Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!’ Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
– Meu senhor! gemia o outro.
– Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei… justos céus! Quem havia de ser o do vergalho?
Nada menos que o meu moleque Prudêncio – o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
– É, sim, nhonhô.
– Fez-te alguma coisa?
– É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
– Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
– Pois não, nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!”
A prosa deliberadamente cínica do volúvel Brás Cubas apenas torna o trecho mais doloroso, num involuntário raio-X da hipótese central de Jessé Souza: a escravidão como o elemento determinante da sociedade brasileira – e isso depois do 13 de maio de 1888, claro está.
Fratura exposta em dupla direção.
De um lado, homem livre, Prudêncio reproduziu o sistema escravocrata pela outra ponta: comprou um escravizado. Foi além: como se revivesse as aquarelas-denúncia de Jean-Baptiste Debret, castigava o seu passado sem piedade aparente, antes com o maldisfarçado sentimento de vingança alheia. E no espaço público, afirmando sua nova condição diante de olhares indiferentes, mas sádicos. As pontas se atam dolorosamente na perpetuação do algoz e na multiplicação de vítimas. Na psicanálise improvisada do narrador: “Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro.”
De outro lado, a cena corta ainda mais fundo e é quase insuportável. Não apenas o moleque Prudêncio se converteu numa mímesis imperfeita do menino Brás Cubas, como também, e sobretudo, manteve os ouvidos dóceis, demasiadamente dóceis, à voz do antigo senhor. A lembrança da dicção do menino Brás infantiliza o homem Prudêncio.
(Infante, em latim in fans, é aquele que não fala.)
Rumo ao encontro
A obra de Jessé Souza é um aprofundamento consciente dessa fratura exposta, que não deve ser mais ocultada; pelo contrário, a única alternativa válida consiste em tornar essa fratura visível, palpável até.
(Doa a quem doer.)
Daí a hermenêutica nada tímida da releitura proposta do clássico maior do pensamento social brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda. O autor de Como o racismo criou o Brasil (2021) é incisivo:
“(…) nossos problemas não seriam causados pelo secular saque elitista das nossas riquezas, mas, sim, por conta de uma ‘falha cultural e moral’ do próprio povo sofrido e abandonado.
Essa ‘culpa da vítima’ foi vista pelos intérpretes e seguidores como, pasmem, uma prova da coragem do autor em mostrar a verdade, doa a quem doer. Um intelectual dominado por ideias colonizadas que põe, por má sociologia, o próprio povo na lata de lixo foi, desse modo, incensado entre nós como o nosso grande pensador crítico.”[1]
A perspectiva é tão radical que desconcerta. Jessé Souza reitera sua resistência à consagração de Raízes do Brasil: o modelo interpretativo do ensaio de 1936, à revelia das intenções do autor, ofereceu à elite do atraso a justificação ideal para levar adiante o projeto de saque permanente do Estado, pois, em lugar de uma análise das relações concretas de poder, adota-se a noção idealizada de traços pretensamente sociológicos que definiriam a identidade nacional, ou seja, os obstáculos à impossível modernização da sociedade brasileira. País refém, sem remissão à vista, da “cordialidade” e do “patrimonialismo” de extração ibérica. Aqui, a crítica alcança seu tom mais ácido, já que se refere ao domínio da teoria de Max Weber:
“Como veremos a seguir, para Max Weber – o inventor do conceito e de quem se retira o ‘prestígio científico’ para tornar a ideia ‘respeitável’ –, o patrimonialismo é inseparável de precondições que são pré-modernas.
(…)
O homem cordial é a concepção do brasileiro como vira-lata, ou seja, como conjunto de negatividades: emotivo, primitivo, personalista e, portanto, essencialmente desonesto e corrupto.
(…)
Já o patrimonialismo é uma espécie de amálgama institucional do homem cordial, desenvolvendo todas as suas virtualidades negativas, dessa vez, no Estado.”[2]
Terreno aplainado, silêncios verbalizados, podemos finalmente comparecer ao encontro marcado entre Carl von Clausewitz e Jessé Souza.
(Ainda não: aguarde só um pouco: concluo esta série no próximo texto.)
[1] Jessé Souza. A elite do atraso. Da escravidão à ascensão da extrema direita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2025, p. 9. Na conclusão do ensaio, o tom é mais firme: “A concepção vira-lata do brasileiro que estamos criticando mostra-se aqui à luz do sol. Sérgio Buarque e Raymundo Faoro como legitimação perfeita do protofascismo brasileiro.” Idem, p. 194.
[2] Idem, p. 199 & 200. b
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)