
Apresentação da nova edição do livro de Karl Marx.
O capital é comumente lido da perspectiva da tradição marxista que inaugurou e dos debates internos aos movimentos socialistas. Ainda que tais debates muitas vezes tenham desembocado em vulgarizações e esquemas simplórios, permitiram ao mesmo tempo manter viva a obra de Karl Marx, promovendo um diálogo ininterrupto entre o aparato conceitual elaborado pelo autor e a realidade dinâmica das sociedades capitalistas.
No entanto, o alcance de O capital é muito maior. O livro ocupa um lugar de destaque no pensamento moderno que extrapola suas filiações teóricas e sua perspectiva política. Um lugar similar àquele ocupado por outro livro também publicado no terceiro quarto do século XIX, A origem das espécies, de Charles Darwin. Ambos provocaram debates intensos, formaram inúmeros discípulos e ofereceram uma maneira revolucionária de interpretar o mundo – em outras palavras, “tornaram-se fundamentais para toda a cultura moderna”.
A semelhança não passou despercebida. O próprio Karl Marx referiu-se ao livro de Charles Darwin como “a base das ciências naturais do nosso ponto de vista”, e Friedrich Engels, em 1883, em discurso realizado no funeral de seu grande colaborador, afirmou: “Assim como Darwin descobriu a lei de desenvolvimento da natureza orgânica, Marx descobriu a lei de desenvolvimento da história humana”.
Mas o paralelo não deve ser levado longe demais. A origem das espécies esgotou sua primeira tiragem em um único dia, e suas ideias rapidamente se consolidaram como um dos principais pontos de partida para as Ciências Naturais. O capital, por sua vez, custou muito mais para se difundir e para disseminar a reputação de seu autor. Ademais, ainda que incontornável, a obra é mais comumente rejeitada do que adotada como uma das bases das Ciências Sociais contemporâneas.
Por que, então, reler O capital, mais de um século e meio após a primeira publicação de seu primeiro volume? Porque o livro ainda reserva um enorme potencial de iluminar transformações socioeconômicas contemporâneas que têm desafiado as Ciências Sociais tradicionais, ampliando a perspectiva da análise dos dilemas atuais e oferecendo horizontes para além dos impasses paralisantes das crises do presente.
Sua acidentada e tortuosa recepção não se deve a eventuais limites do livro, mas é um sintoma dos conflitos inerentes ao modo de produção que Marx contribuiu para dissecar. Além disso, por muito tempo a leitura de sua obra foi realizada sob a sombra dos conflitos em torno da Guerra Fria, da mistificação do autor realizada por parte de seus seguidores e de sua demonização pelos seus detratores.
Paradoxalmente, em um momento em que desafios políticos à hegemonia capitalista são relativamente mais débeis, cria-se uma oportunidade de reler o livro em seus próprios termos, sem as amarras impostas pelas disputas de interpretação que marcaram sua recepção. Um reencontro que pode interrogar, em um novo momento histórico, o que O capital tem a oferecer às questões do presente.
É claro que essa releitura só poderá ganhar corpo se as formas de resistência à dominação capitalista adquirirem força suficiente para “transformar o mundo”. Afinal, como Marx argumentou em sua célebre décima primeira tese, interpretar o mundo é apenas o primeiro passo. O capital não é somente a principal obra de Marx, mas também, no que diz respeito a seu primeiro volume, um dos raros livros que ele publicou em vida.
A maior parte de sua obra foi publicada postumamente e, em inúmeros casos, constitui-se de textos com diferentes graus de acabamento. O primeiro volume de O capital, porém, resultou de anos de trabalho, revisão e polimento. É difícil pensar em uma obra semelhante em termos de ousadia, abrangência e riqueza de detalhes. Ela combina um esforço conceitual extenso e rigoroso com reconstruções históricas inovadoras e minuciosas. Marx efetivamente buscou articular o conjunto do pensamento que o antecedeu, levando adiante suas contribuições.
Como resumiu David Harvey: “Shakespeare, os gregos, Fausto, Balzac, Shelley, contos de fadas, lobisomens, vampiros e poesia, encontramos tudo isso em suas páginas [do livro], ao lado de inúmeros economistas políticos, filósofos, antropólogos, jornalistas e cientistas políticos”. A obra que produziu fez de Karl Marx o verdadeiro “herdeiro dos economistas e filósofos clássicos” e da tradição que remonta ao “desenvolvimento intelectual desde o Renascimento”.
As seções a seguir introduzem brevemente o argumento do livro. Nas duas primeiras, o arcabouço conceitual elaborado nos primeiros quatro capítulos do Livro 1 é elucidado à luz do contraste entre Marx e os economistas políticos clássicos. Nas três seções seguintes, analisa-se a forma como o autor partiu de tais conceitos para oferecer uma interpretação sobre a dinâmica das sociedades capitalistas, suas “leis de movimento”.
O foco divide-se, então, entre os argumentos apresentados no livro e sua atualidade. O capital foi um acerto de contas com a chamada Economia Política clássica, a tradição de pensamento que emergiu junto com o capitalismo industrial e que tem em Adam Smith e David Ricardo seus principais representantes. Nascido na Alemanha em 1818, Marx iniciou sua formação intelectual em intenso diálogo com a Filosofia alemã, em particular com Hegel e seus seguidores.
Posteriormente, sua formação política seria forjada em debates acalorados com socialistas franceses. A partir da década de 1850, então com trinta e poucos anos, passou a se dedicar a um estudo sistemático da Economia Política clássica. A Filosofia alemã, o socialismo francês e a Economia Política britânica formariam o tripé básico de sua formação e de sua obra. O capital, como indica seu subtítulo, trouxe para o primeiro plano a crítica da Economia Política.
Seu ponto de partida está nos primeiros quatro capítulos do Livro 1, em que a crítica à teoria do valor clássica é formulada. A teoria do valor, em especial em Smith e Ricardo, resultou do empenho de tais autores para compreender a dinâmica do capitalismo que emergia a sua volta. Por trás de um exercício às vezes hermético a fim de iluminar os preços relativos das mercadorias, escondia-se um esforço para desvendar, como Marx escreveria em 1859, “a anatomia da sociedade burguesa”.
Tratava-se de entender o funcionamento de uma sociedade que passava a depender das trocas de mercadorias para a maior parte de sua reprodução material. A ruptura histórica que isso representou não deve ser subestimada. Durante toda a história humana precedente, dos primeiros agrupamentos de caçadores e coletores até o século XVIII, a garantia cotidiana da reprodução material dependia crucialmente da produção para o próprio consumo.
Apenas as classes dominantes, nas sociedades de classes, não se ocupavam da produção para a própria subsistência, garantindo sua reprodução pela expropriação de parte do que era produzido pelas classes subalternas. Alimentos, roupas, casas – quase tudo era produzido para consumo próprio ou das classes dominantes, e apenas excepcionalmente algo fundamental para a reprodução material era obtido em uma transação mercantil. Mercados evidentemente existem há muito tempo, assim como a troca de produtos entre diferentes comunidades.
A novidade representada pelo modo de produção capitalista foi subordinar a maior parte da reprodução material da sociedade às trocas mercantis. Um dos principais responsáveis por acentuar tal ineditismo foi Karl Polanyi. Segundo ele, até a época de Adam Smith, essa propensão [para barganhar, permutar e trocar uma coisa pela outra] não havia se manifestado em qualquer escala considerável na vida de qualquer comunidade pesquisada e, quando muito, permanecia como aspecto subordinado da vida econômica. Uma centena de anos mais tarde, porém, já estava em pleno funcionamento um sistema industrial na maior parte do planeta e, prática e teoricamente, isso significava que a raça humana fora sacudida em todas as suas atividades econômicas, se não também nas suas buscas políticas, intelectuais e espirituais, por essa propensão particular.
Marx referiu-se a esse ineditismo na abertura de O capital: “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar”. Apenas com a consolidação desse modo de produção, o produto do trabalho humano assume a forma de “mercadoria”, isto é, de algo produzido para ser vendido.
Consequentemente, a questão crucial para a compreensão dessa sociedade referia-se à coordenação social: como seria possível garantir que decisões relativamente descentralizadas sobre o que produzir e o que consumir pudessem ser conciliadas, garantindo a reprodução material da sociedade, ainda que de modo muitas vezes precário e sempre desigual? Como garantir que uma parte suficiente da sociedade dedicar-se-ia à produção dos produtos que alimentariam todas as pessoas, por exemplo? Ou à produção das roupas que elas vestiriam?
É precisamente esse o pano de fundo da formulação de Adam Smith segundo a qual “nosso jantar” não depende da “benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro”, mas “da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse”.
A formulação de uma teoria do valor pelos economistas políticos clássicos visava ao enfrentamento dessa questão. A determinação dos valores pelos quais as mercadorias são trocadas implica processos econômicos que garantem a complexa tarefa de coordenação social da produção, dinamicamente garantindo que a produção social se ajuste aos requisitos de reprodução material da sociedade como um todo, ainda que em meio a crises e desequilíbrios contínuos.
Um desequilíbrio pontual, como a produção em volume insuficiente de um certo alimento (por decorrência de problemas na colheita, por exemplo), eleva o preço desse produto, estimulando um aumento da sua produção. Produtores de outros setores podem se deslocar para esse, em busca de uma renda maior. O processo inverso ocorreria com um desequilíbrio na outra direção, no caso de uma produção excessiva.
Dessa maneira, a oscilação dos preços de mercado desencadeia ajustes na quantidade produzida pelos diferentes setores, funcionando como um mecanismo impessoal de coordenação social. A formulação de Smith partiu da distinção entre preço de mercado e preço natural. Este último é definido como “o preço central ao redor do qual continuamente estão gravitando os preços [de mercado] de todas as mercadorias”.
Restou, então, ao pensador escocês definir como os preços naturais são determinados e chegar, assim, à base de sustentação do processo de coordenação social. Eis o núcleo da teoria do valor. Na realidade, no entanto, ele deu duas respostas distintas, isto é, formulou duas teorias do valor.
A primeira delas, que se aplicaria apenas ao “estágio antigo e primitivo que precede ao acúmulo de patrimônio ou capital e à apropriação da terra”, afirmava que o trabalho seria “o padrão último e real com base no qual se pode sempre e em toda parte estimar e comparar o valor de todas as mercadorias”.
Adam Smith concluiu, então, que o “trabalho é o preço real das mercadorias”. Daí que sua teoria às vezes seja denominada de teoria do valor-trabalho. Uma teoria diferente, contudo, valeria para o caso de “sociedades mais evoluídas”, uma vez que nelas o valor obtido com a venda das mercadorias não remuneraria apenas o trabalho despendido em sua produção, mas também o capital investido e a terra utilizada.
Adam Smith formulou, para tais sociedades, uma teoria aditiva do valor, segundo a qual o valor das mercadorias resultaria da soma de salários, lucros e renda da terra. Em ambas as sociedades, o preço natural, determinado pelo trabalho ou pela soma das remunerações (conforme o caso), atuaria como polo gravitacional, estruturando os processos de troca e, por meio deles, a distribuição social da produção e do trabalho.
Estava lançada, assim, a base conceitual que seria apropriada criticamente, de modo diverso, por David Ricardo e Karl Marx. David Ricardo notou que, mesmo no estágio mais primitivo da sociedade, não é razoável supor que as pessoas dispensassem o uso de capital para as suas atividades. Um caçador pré-histórico provavelmente precisava de alguma arma, isto é, algum capital, para “capacitá-lo a matar sua presa”.
Ainda que ele próprio produzisse sua arma, o valor de sua caça não seria determinado inteiramente pelo tempo de trabalho diretamente despendido na atividade final – na caça –, mas seria influenciado também pelo tempo de trabalho necessário para produzir a arma. Digamos que o tempo médio necessário para caçar um gamo e um castor, exemplos empregados pelo próprio David Ricardo, fosse o mesmo. Isso não implicaria que um gamo poderia ser trocado por um castor, uma vez que as horas empregadas na produção das armas adequadas para caçar cada um dos animais poderiam ter sido distintas.
Dessa maneira, mesmo para o “estágio primitivo”, seria necessário formular uma teoria do valor que levasse em conta tanto o trabalho diretamente empregado na produção quanto aquele embutido nas ferramentas utilizadas no processo produtivo. Com esse argumento, David Ricardo recusou a formulação de Adam Smith segundo a qual seria necessário elaborar mais de uma teoria do valor, cada uma adequada para um estágio distinto de desenvolvimento das sociedades. No primeiro capítulo de seu livro principal, ele colocou para si o desafio de explicar a determinação do valor das mercadorias pelo tempo de trabalho incorporado nelas (direta e indiretamente), partindo do reconhecimento de que apenas excepcionalmente a produção é realizada só com trabalho, mas de modo geral recorre a alguma forma de capital.
Assim, David Ricardo generalizou a teoria que Adam Smith formulou para o “estágio primitivo das sociedades”. O desafio teórico envolvido era, de fato, enorme. Tanto que o assunto não se encerrou com a formulação de Ricardo e é debatido intensamente até hoje, sendo um dos temas principais que ocupou o economista Piero Sraffa e seus seguidores, responsáveis em grande medida por renovar o legado de Ricardo. A publicação do livro Produção de mercadorias por meio de mercadorias, por Piero Sraffa, em 1960, gerou inúmeros debates envolvendo economistas de diferentes filiações teóricas, inclusive marxistas, e inaugurou uma nova tradição de pensamento, sraffiana ou neo-ricardiana.
Ademais, o longo debate marxista sobre o chamado “problema da transformação” de valores em preços de produção, que toma como ponto de partida o esforço realizado pelo próprio Marx para dar conta do desafio lançado por David Ricardo (nas seções i e ii do Livro 3 de O capital, capítulos 1 a 12), trata da mesma questão.
Resumidamente, assumindo que a mobilidade de capital entre setores produz uma tendência à equalização das taxas de lucro e que diferentes setores empregam volumes distintos de capital em relação ao trabalho diretamente utilizado, os preços relativos entre as mercadorias desviam- -se, ainda que moderadamente, da razão entre os tempos de trabalho (direto e indireto) empregados em sua produção.
Para usar as expressões consagradas por Marx, haveria assim uma distinção entre valores (exclusivamente determinados pelo tempo de trabalho incorporado) e preços de produção (que levam em consideração a tendência à equalização da taxa de lucro). A controvérsia iniciada por essa constatação dividiu aqueles que consideravam que tal desvio contradizia o princípio de que o trabalho determinava o valor das mercadorias e aqueles que afirmavam que ela implicava apenas uma sofisticação da teoria fundada nesse princípio.
Tanto a busca de David Ricardo e Piero Sraffa por uma “medida invariável de valor” quanto as diferentes propostas de solução para o “problema da transformação” representaram, assim, uma defesa da teoria do valor-trabalho.
Voltando a David Ricardo, sua decisão de rejeitar a teoria aditiva do valor de Smith e generalizar a teoria do valor-trabalho tinha uma implicação decisiva: trazia à tona a questão da exploração. Em Adam Smith, o tempo de trabalho incorporado na produção das mercadorias e a remuneração por esse trabalho são tomados como equivalentes, de forma que a teoria do valor-trabalho precisa ser abandonada em “sociedades mais evoluídas” exatamente porque nelas o valor da mercadoria não se esgota nos salários, devendo também abranger os lucros e a renda da terra.
A teoria aditiva do valor seria apropriada, por parte da literatura posterior, precisamente como uma legitimação dos três tipos de renda, contra a ideia de exploração. Representou, assim, uma base teórica para argumentar que trabalho, capital e terra contribuíam para a produção e seriam remunerados proporcionalmente. Ao insistir que, mesmo quando o capital é usado, o valor das mercadorias segue sendo determinado pelo tempo de trabalho envolvido em sua produção, David Ricardo explicita que os salários pagos aos trabalhadores representam apenas uma parte do valor por eles criado.
Não estava nos planos de David Ricardo formular uma teoria da exploração, mas tal implicação de sua obra tampouco foi acidental. Escrevendo mais de quatro décadas após Adam Smith, quando a Revolução Industrial já estava mais avançada na Inglaterra e suas tensões sociais e políticas haviam emergido, David Ricardo não subestima a centralidade dos conflitos de classe.
Na realidade, sua formulação da teoria do valor decorreu de uma intervenção política prática, isto é, da sua defesa da abolição das chamadas leis dos cereais, o conflito central que dividiu a burguesia emergente e os proprietários de terra na primeira metade do século XIX, na Inglaterra. Em um ensaio escrito em 1815 sobre o assunto e que lançaria a base para o seu principal livro teórico, publicado originariamente em 1817, David Ricardo não mediu palavras: “o interesse do proprietário de terra é sempre oposto ao interesse de todas as demais classes da sociedade”.
Seu esforço rigoroso e obsessivo para elucidar a determinação do valor das mercadorias foi paralelo à tomada de consciência da centralidade dos conflitos de classe. No prefácio aos Princípios, ele argumentou que explicar a divisão da produção entre proprietários de terra, capitalistas e trabalhadores era “a principal questão da Economia Política”.
FERNANDO RUGITSKY ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
*Fernando Rugitsky é professor de economia na University of the West of England, em Bristol, e co-diretor do Bristol Research in Economics.
Referência

Karl Marx. O capital: crítica da economia política. Tradução: Flávio R. Kothe & Regis Barbosa. São Paulo, Ubu, 2025, 2384 págs. [https://amzn.to/3FCt52w]