
Livro de Jessé acabou de ganhar uma nova edição, revista e aumentada
Por outros meios?
Um dos maiores êxitos editoriais da história das Ciências Humanas, “A elite do atraso”, acabou de ganhar uma nova edição, revista e aumentada. Os números são hiperbólicos: 400 mil exemplares vendidos em menos de uma década e, na avaliação correta do autor, Jessé Souza: “(…) somando os que leem em cópia e por meios pirateados, certamente foi lido por alguns milhões”. [1] Hipérbole inédita na carreira de um escrito acadêmico.

Não é tudo: lançado pela primeira vez em 2017, no ano seguinte o ensaio inspirou o enredo da escola Paraíso de Tuiuti: consagração imediata que somente pode ser comparada ao sucesso de Euclides da Cunha com o aparecimento de sua obra-prima, “Os sertões”, em 1902. Aliás, com agudeza o título do samba-enredo sintetiza no ponto de exclamação a perplexidade que move a reflexão do sociólogo Jessé de Souza, “Meu Deus, Meus Deus, está extinta a escravidão?”.
A letra do samba-enredo reitera a perspectiva crítica:
Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti, o quilombo da favela
É sentinela da libertação
(…)
Amparo do Rosário ao negro benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor
E assim, quando a lei foi assinada
Uma Lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra a bondade cruel
Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social
A “bondade cruel” traduz o ponto de interrogação do título do samba-enredo. Estamos diante da extinção formal da escravidão, mas sem qualquer projeto sério de inserção do escravizado na nova ordem social. Nesse sentido, o caráter absoluto da precariedade dos ex-escravizados numa República que se lastreou no desprezo a eles, deu origem ao dilema que ainda hoje não tivemos força política para superar:
“Como houve continuidade sem quebra temporal entre a escravidão — que destrói a alma por dentro, humilha e rebaixa o sujeito, tornando-o cúmplice da própria dominação — e a produção de uma ralé de inadaptados ao mundo moderno, nossos excluídos herdaram, sem solução de continuidade, todo o ódio e o desprezo covarde pelos mais frágeis e com menos capacidade de se defender.” [2]
Esse olhar corrosivo esclarece o impacto do ensaio, pois, “precisamente o aumento exponencial, desde sua publicação, dos que veem a escravidão o núcleo da nossa história e da nossa sociedade atual, e não mais a herança de corrupção ibérica como construída pelo cânone dominante”. [3]
No eterno retorno do impasse do “Prudêncio machadiano”, tão bem formulado no romance-revolução “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881), ocorre o encontro inesperado entre Carl von Clausewitz e Jessé Souza.
(Mas, claro, você já sabe: espere a próxima coluna.)
[1] Jessé Souza. A elite do atraso. Da escravidão à ascensão da extrema direita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2025, p. 7.
[2] Idem, p. 91.
[3] Idem, p. 12.
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)