
O governo Lula precisa fazer uma escolha clara. Até mesmo para definir o horizonte para os eleitores em 2026. Se seu ideário é de um governo de inclusão social, disposto a fazer a complementação da reforma tributária sobre o consumo (já aprovada para valer em 2027), então, precisa avançar, para valer, na complementação da guinada de justiça fiscal para o imposto de renda, com elevação gradativa para quem ganha acima de R$ 50 mil mensais, como forma de compensar a ampliação da isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais. E não se deixar acuar por memes nas redes sociais, como fez no caso da transparência do Pix e agora no recuo do IOF sobre transações com o exterior e nos fundos multimercados.
Quem examina as contas do Estado brasileiro vê dois problemas básicos: 1- o Orçamento Geral da União, além do crescente avanço do poder de deputados e senadores sobre o Orçamento Secreto, está comprometido em mais de 90% com os chamados gastos discricionários (não sobra espaço para investimentos). As sobras no OGU só se tornam possíveis se a economia crescer muito, levando, de carona, o aumento do emprego e a arrecadação de impostos e de obrigações sociais; 2 – mas o crescimento está sendo sempre atropelado pelo aumento dos juros. Isso derruba a economia, o consumo, inibe o investimento, endivida as famílias e as empresas. Em especial, o Tesouro Nacional, com o aumento da dívida pública que cobre os rombos estruturais da Previdência Social (eterna vítima de fraudes, como os aposentados).
No mês de março (últimos dados conhecidos), o Tesouro gastou R$ 75,2 bilhões em juros. Nos últimos 12 meses, as despesas do Tesouro com juros somaram R$ 935 bilhões! Segundo o Banco Central, cada um ponto de aumento na taxa Selic, que remunera a maior parte da dívida pública (há títulos com juros fixos e correção da inflação – IPCA, com taxas fixas e com taxas atreladas ao câmbio, tudo com estreita relação com a Selic e a inflação) gera um aumento de despesa para o Tesouro Nacional de R$ 54,2 bilhões ao fim de 12 meses. Como desde novembro, quando a Selic estava em 11,25%, ela subiu 3,5 pontos até os 14,75% ao ano, fixados em 8 de maio, esse aumento de 3,5 pontos na taxa Selic significa gasto de R$ 189,7 bilhões para o Tesouro em 12 meses. Em 15 meses deve chegar a gasto de R$ 200 bilhões!
Para quem vai essa fortuna? Elementar, meu caro leitor: para a minoria da sociedade que vive de aplicações financeiras, bancos e gestores de investimento. Quando identificou os dois lados da justiça fiscal no IR (isenção para 10 milhões e acréscimo a uma minoria), o governo identificou que seriam atingidos pela taxação extra não mais que 141 mil pessoas. Percebe-se que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem um trabalho hercúleo pela frente.
Quanto você imagina, caro leitor, que é o número de pessoas que se beneficiam com o aumento dos juros? Se você, como eu, no momento, com a Selic nas alturas, aplica em fundos de investimento com DI (que rendem um pouco mais que a caderneta de poupança e têm liquidez imediata), estamos de um grupo médio que não pesa muito (nossa renda não passará de R$ 50 mil mensais). Mas os investidores contumazes que ainda jogam seus recursos de fundos de investimento multimercados, valendo-se das oscilações do câmbio, e mantêm recursos sediados em paraísos fiscais (entram assim na conta dos “investidores estrangeiros”; embora tenham passaporte brasileiro, estes, sim, ganham mais ainda com a escalada dos juros e as oscilações do câmbio, em marolas geradas por Trump. Essa era a minoria afetada pelo aumento do IOF.
O ‘Taxad’ tem T de Trump
O “Taxad”, jocosamente atribuído a Fernando Haddad pela Faria Lima, quando acabou, em 2023, com a isenção do IR para os bilionários fundos individuais de brasileiros e passou a tributar os fundos “off-shore” em paraísos fiscais, está sendo aplicado nos Estados Unidos por Donald Trump. Sua última ação foi taxar os produtos da União Europeia com imposto de 50% na alfândega.
O equilíbrio fiscal é a obsessão da Fazenda do ministro Fernando Haddad. Só que ele quer equilibrar os sacrifícios do ajuste fiscal. Ele anunciou cortes e contingenciamentos no OGU de R$ 31,3 bilhões, sendo R$ 10,4 bilhões em cortes e R$ 20,7 bilhões em contingenciamento de verbas. Mas a Faria Lima – ou seja, os porta-vozes do mercado financeiro – estrilou porque, em complemento aos cortes de gastos (que atingem em R$ 7 bilhões as emendas parlamentares), o governo cogitou aumentar o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para apanhar, de volta, parte dos ganhos dos aplicadores e do mercado financeiro com a alta dos juros.
O governo se acovardou e recuou.
O universo dos rentistas e do mercado financeiro vai ter um ganho extra de R$ 200 bilhões nos próximos 15 meses – as previsões são de que a Selic só comece a baixar no fim do primeiro trimestre de 2026. Depois do recuo do arcabouço inicial do IOF, prevê-se arrecadação extra de R$ 20,5 bilhões este ano e R$ 41 bilhões em 2026, pode garantir o equilíbrio do déficit primário (receitas menos despesas, sem contar os juros da dívida). Mas, não dá para fazer cosquinha no montante que o Tesouro terá de pagar a mais.
Por isso, a sina do ministro da Fazenda, para tornar o Orçamento e a estrutura tributária brasileira compatíveis com um regime de justiça fiscal, precisa incluir no processo a revisão dos mais de R$ 450 bilhões que o Fisco abre mão em isenções de impostos e em incentivos fiscais para determinados setores. Os empresários de gaveta que se amparam (bem ou mal) no Simples Nacional, gozam de R$ 104 bilhões de isenções de impostos. Os empresários da Zona Franca de Manaus, como as multinacionais de refrigerantes que lá produzem os “xaropes” de Coca-Cola, Mate Leão e Guaraná, deixam de recolher R$ 31,3 bilhões/ano. Coincidência, é o tamanho do sacrifício no OGU 2025.
Mas a Faria Lima não quer saber de sacrifícios, ou de ceder, sob a forma de impostos, um pouquinho das grossas espumas em que está surfando com as ondas gigantes dos juros do país. Para os porta-vozes do mercado financeiro, quem tem que apertar o cinto são os programas sociais do governo. Isso me lembra um velho personagem de Chico Anísio, o “Justo Veríssimo”. Por trás de um vasto bigode preto, dizia: “Tenho horror a pobre; quero que ele se exploda”.
Caso Americanas deu a pista do IOF
Com os juros mais altos das aplicações financeiras e a proliferação das “fintechs”, a concentração dos grandes bancos no crédito diminuiu e abriu uma cunha para atuação indireta de linhas de crédito com fundos de investimento especializados em carteiras de títulos que estavam isentos de IR na fonte, caso das Letras de Crédito do Agronegócio (CRA) e das Letras de Crédito Imobiliário (LCI). Pois a Fazenda quis buscar parte destes ganhos com maior taxação do IOF. O IOF, criado por Delfim Netto, é dos raros impostos não repartidos para os Estados e Municípios. Fica 100% no caixa da União. Na farra para conquistar votos à sua reeleição em 2022, Bolsonaro, além de elevar o Auxílio Emergencial para R$ 600 e dar mesadas de R$ 1 mil a caminhoneiros e taxistas, cortou impostos federais e o ICMS (dos estados e municípios) dos combustíveis, da energia elétrica e das comunicações. E ainda premiou o andar de cima, os milionários, com isenção de impostos de importação para jet skis e isenção de IOF para remessas de câmbio.
Por isso, Bolsonaro e família, ao ver o cerco do Supremo Tribunal Federal se fechando sobre a trama do golpe, aproveitou a oportunidade para tentar sair do “corner”, lembrando a isenção do IOF à Faria Lima e aos viajantes que torram o cartão de crédito na Disney. Chega a ser irônico, mas demonstrativo do ideário de Bolsonaro&cia, que o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, punha em prática. No início da gestão, Guedes criticou “a farra do câmbio do PT, quando até empregada doméstica ia à Disney” (bancada pelos patrões, para ficar com as crianças); no fim do governo, fez a isenção preferencial de impostos para os ricos, incluindo o fim do IOF no cartão de crédito gasto no exterior.
O fato é que o governo Lula se deixou acuar no episódio, certíssimo, da Instrução da Receita Federal – baixada em setembro de 2024 – de que a partir de 1º de janeiro de 2025 as “fintechs”, que operam Pix adoidado, teriam que seguir os passos das instituições financeiras regulares e informar movimentações acima de R$ 10 mil. Idem de seus cartões de crédito. Os escândalos de movimentação financeira nos subterrâneos do INSS e em centenas de casos de corrupção descobertos pela Polícia Federal têm o salvo conduto do trânsito doméstico com a falta de transparência nas operações com Pix via “fintechs”. O IOF na ponta das remessas para o exterior fecharia o cerco à sonegação e à evasão de divisas. Daí a grita de setores que seriam atingidos. Para eles é preciso operar com as porteiras escancaradas.
Margens de juros no país facilitam fraudes
As margens nos juros entre o Brasil (14,75% no piso da Selic) e os 4,50% fixados pelo Federal Reserve dos EUA) significam 10,25%. Isso induz uma farra do turismo financeiro de capitais estrangeiros (e de brasileiros que se escondem em paraísos fiscais) para aproveitar os ganhos financeiros recordes. A taxação do IOF buscaria parte do excesso de ganhos e ajudaria a estabilizar as cotações do dólar no país (sujeitas a fortes oscilações). O IOF maior, além de arrecadar mais (de forma quase indolor), ao elevar os custos financeiros de determinadas transações, dispensaria o mal maior da continuação da escalada da taxa Selic. Mas a Faria Lima quer tudo. Por ela, a Selic ia a 17%, desde que sem a contrapartida do IOF ou da taxação sobre os ganhos extras que asfixiariam as famílias e os setores produtivos.
Não se pense que o IOF seria capaz de fechar as brechas de desvios do capital. O caso do rombo bilionário (R$ 25 bilhões) de créditos não contabilizados nos balanços da Americanas, os chamados “riscos sacados” – os fornecedores faturavam as mercadorias com prazos de 60 até 120 dias, ao fim dos quais, se a conta não fosse paga, virava empréstimo bancário (não declarado) – mostra como o mercado é criativo. A nova legislação do IOF, desta vez, alcançou o “risco sacado”, prática já reconhecida pelo sistema financeiro (menos pelo balanço da Americanas). Mas, olho vivo. Logo surgirá outra ideia criativa para explorar as altas margens entre captação e aplicação de recursos no país. De preferência, sem transparência e o pagamento de impostos.
Petróleo no mar do Amapá
Após suspense de mais de dois anos por suposto impasse entre as exigências do Ibama para a Petrobras iniciar prospecções para ver se a bacia petrolífera no mar do Amapá tem reservas de petróleo em escala comercial, saiu a autorização, dia19, para a estatal iniciar trabalhos exploratórios. Houve muita grita dos ambientalistas, dizendo que é uma contradição com a realização da COP 30, em Belém, em novembro, a exploração de petróleo na Amazônia.
Mas é preciso botar os pingos nos iis e separar o joio do trigo. Para começo de conversa, a nova fronteira que a Petrobras quer explorar fica na Margem Equatorial, uma vasta área que vai da costa do Rio Grande do Norte até o Oiapoque (AP). E compreende várias subdivisões de bacias sedimentares. A última, ao norte, que vai do Pará, inclui a ilha de Marajó e termina na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, tem o nome de Foz do Amazonas.
Mas a distância efetiva da foz do rio Amazonas é de 500 quilômetros. As correntes marítimas da região e a vazão do rio Amazonas afastam o mais temido risco de um hipotético vazamento quando a região estiver sob intensa exploração – se os trabalhos iniciais da Petrobras comprovarem a viabilidade do poço exploratório em águas profundas do litoral do Amapá, a mais de 160 km da costa, em alto mar – como já está provado na Guiana (antiga possessão inglesa), que fez as maiores descobertas de petróleo desde a última década. Não se compara o caso do petróleo no mar do Amapá às restrições de Equador e Colômbia à exploração de petróleo em plena floresta Amazônica.
O que a Petrobras recebeu foi o aval do Ibama para o conceito do Plano de Proteção e Atendimento à Fauna Oleada (PPAF), apresentado pela companhia como parte do Plano de Emergência Individual (PEI), visando a obtenção da licença ambiental para perfuração de poço exploratório. Se forem encontradas reservas abundantes, em três anos a área vira nova bacia exploratória para valer. Isso exige sucessivas respostas ao aumento da escala exploratória. Mas o rigor do Ibama foi tal que queria que a Petrobras montasse, desde já, uma estrutura como se a área estivesse em plena e intensa produção.
Acalmem-se os ecologistas: as tecnologias e as precauções da indústria petrolífera evoluíram bastante depois das distantes tragédias do Exxon Valdez, no Alasca, no fim do século passado, e na mais recente explosão de uma plataforma americana no Golfo do México (rebatizado por Trump para “Golfo da América”). E a Petrobras é uma empresa com responsabilidade social e ambiental que domina a tecnologia em águas ultraprofundas. Não há registros de contaminação no litoral do Estado do Rio de Janeiro ou do norte de São Paulo pelas explorações na Bacia de Campos (desde 1975) e da Bacia de Santos (desde 2008). Há riscos maiores nos terminais de transbordo de óleo (São Sebastião-SP e na Baía de Guanabara) que na exploração em alto mar.
Os ecologistas precisam ficar atentos é em relação ao PL da flexibilização das leis ambientais, proposto pela bancada do agronegócio. Ele ameaça tornar, de direito, a ameaça, de fato, que fez o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles na fatídica reunião ministerial de abril de 2020, quando conclamou o Ministério a “aproveitar que a imprensa está ocupada com a Covid-19 para abrir a porteira e passar medidas de baciada” para driblar a fiscalização. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, tem mais que cerrar fileiras nesta frente de luta do que fazer do mar do Amapá um campo de batalha.
ILBERTO DE MENEZES CÔRTES” ( JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)