
A morte do eminente professor Evanildo Bechara encerra o ciclo de excelentes professores de Português de minha geração.
Nunca tive o prazer de ser seu aluno direto, mas recorri sempre a seus livros e tive a honra de participar de uma banca examinadora de ingresso do Instituto Rio Branco, juntamente com o professor Rocha Lima, já lá se vão mais de 50 anos.
A prova de português do Rio Branco era, e ainda é, a mais difícil do concurso de ingresso no Itamaraty e sempre ceifava mais da metade dos candidatos. No meu tempo, a banca examinadora era composta por dois catedráticos e um diplomata. No final dos anos 60, fui designado para dela participar e me caberia especificamente julgar o conteúdo da redação. Não posso esconder minha honra e ao mesmo tempo meu temor de participar de tanta responsabilidade ao lado de Bechara e Rocha Lima que, diga-se de passagem, me acolheram e ouviram meus comentários com grande fidalguia. E não esqueço o ambiente fraterno com que desenvolvemos nossa tarefa.
Foram também dias em que me enriqueci humanamente diante da seriedade e da competência daqueles dois catedráticos, ambos do Pedro II e do Instituto de Educação, escolas públicas de excelência, hoje, convenhamos, raras no Rio de Janeiro.
A qualidade dos candidatos era igualmente acima da média. Quase todos alunos, durante anos, de professores como Othon Moacir Garcia, Fabio Freixieiro, Adriano da Gama Khouri. Othon Garcia havia sido meu professor e de quem até hoje me lembro quando introduzo uma adversativa numa frase como “não só” que deve ser sempre seguida “de mas também”, excluindo-se qualquer outra alternativa. Pecado capital.
Othon Garcia, figura humana inesquecível, dava aulas em sua casa no Cosme Velho e nunca, mesmo depois de anos de trabalho, nos deixava sair sem uma correção meticulosa de redações que achávamos impecáveis. Deixou-nos um clássico da arte de bem escrever “Português em Prosa Moderna”, que recomendo sem a menor hesitação.
Evanildo Bechara, a par de sua imensa cultura, era generoso em suas correções, aceitando galicismos que faziam Rocha Lima imprecar contra a pouca riqueza vocabular dos candidatos. Eram aulas notáveis, ,seguidas de comentários irônicos, os eventuais impasses dos dois professores ao atribuírem a uma prova a nota 50, a mais baixa para aprovação, e um raríssimo 80. A mim cabia acrescentar um máximo de 20 pontos pelo conteúdo. Salvei a “vida” de alguns.
O domínio do Português era acompanhado de fluência em inglês e francês, provas igualmente difíceis porque exigiam excelente conhecimento de gramática. As questões de Gramática francesa eram um pavor. O acordo do particípio passado, uma engenharia barroca. Sobrevivemos. Nesta área, o professor André Selon era incontestavelmente o mais reverenciado e procurado. Suas aulas particulares num pequeno apartamento na rua Canning, em Copacabana, eram em grupo de seis alunos. Selon abria o editorial do JB na época e mandava passar para o francês sem ajuda de dicionário. Em inglês, quem dava as coordenadas era o professor Mullholand, inglês e diretor da Cultura inglesa, dono de um gato angorá que assistia a aula com um infindo olhar de comiseração diante dos candidatos. Se bem me lembro, quando fui candidato, assisti a aulas em companhia de meu saudoso amigo Clodoaldo Hugueney. Com Selon, tive aulas juntamente com Roberto Abdenur, amigo da vida toda.
Recordo esses tempos com nostalgia, porque me lembram tempos em que nos movia a todos um sentimento comum de entrar no serviço público brasileiro para participar do projeto de um Brasil melhor. As aulas de História do Brasil com Manuel Maurício de Albuquerque, de Geografia com Arthur Weiss, nos abriram horizontes de brasilidade que formou uma geração que atuou dos anos 60 até os anos 2OOO. Tempos com os altos e baixos que todos conhecemos.
Impossível não recordar nomes como os de Luiz Felipe Lampreia, Sebastião do Rego Barros, Samuel Pinheiro Guimarães que já nos deixaram após uma vida profissional que honra a diplomacia brasileira. Isto sem mencionar os que ainda estão, com maior ou menor ênfase, nos brindando com sua inteligência, como Celso Amorim, Ronaldo Sardenberg, Jório Dauster, José Viegas, Miguel Darcy de Oliveira, José Bustani, um pianista que nunca desafinou. Num plano ainda mais anterior, Rubens Ricupero e Proença Rosa. E meus mestres: George Alvares Maciel, Álvaro Alencar e Gilberto Velloso a quem devo o pouco que sei sobre Diplomacia multilateral. Mais do que chefes, irmãos. Roberto de Abreu Sodré me distinguiu com sua amizade e confiança.
Porém, de minha geração, nome que jamais se poderá esquecer é o de Celso Ortega Terra, que morreu no Haiti ao salvar numa enchente uma cidadã haitiana que se afogava. Antes, pouco tempo antes, quase foi expulso do Itamaraty por ter-se recusado a escrever uma exposição de motivos favorável ao envio de tropas brasileiras à República Dominicana, a pedido do governo americano, ao então governo brasileiro em 1964.
ADEMHAR MARADIAN ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)
* Embaixador aposentado.
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