
CHARGE DE SPACCA
A Igreja está em crise há séculos, mas insiste em ditar moral. Machado de Assis zombava disso no XIX; hoje, o legado de Francisco revela: o problema não é o papa, mas o papado
Francisco
Com a morte do papa Francisco, tudo o que se discute é o seu legado, o significado do papado e da Igreja Católica, em crise permanente pelo menos desde o século XIX, a escolha do futuro pontífice, os rituais fúnebres, os hábitos humildes do falecido papa, seus momentos mais marcantes e por aí vai. Para uma instituição em crise e decadência há tanto tempo, é ainda muito poder de mobilização, de mexer com os afetos de tantas e tantas pessoas.
A bem da verdade, isso indica que a crise ainda não é tão intensa como se imagina, que possivelmente a mentalidade média ainda seja mais religiosa do que a classe média agnóstica imagina e que a astúcia da história ainda tem muito a nos revelar sobre essa instituição que alguns dizem ser uma das mais velhas do planeta.
Para o grosso das pessoas, morreu o vovô do mundo. E o luto, coletivo, é aquele que se sente por esses vovôs que viveram longas vidas produtivas: todos tristes por sua partida, alguns chorando mais enfaticamente, mas todos satisfeitos pela vida bem vivida, lembrando os feitos e as boas qualidades que o fizeram conhecido. São muitas as reportagens e muitos os filmes sobre ele, e também sobre outros papas.
As plataformas de streaming começam já a indicar os mais recentes e os mais antigos. Para mim, apareceram duas minisséries do começo dos anos 2000 sobre João XVIII, que assisti comovido pensando que Francisco era, na verdade, o resultado daquele Concílio e daquela nova abordagem em relação ao papado, cuja significação história, entre outras coisas, foi estabelecer uma função nova para a instituição num mundo em que, a rigor, o papa não tem poder nenhum.
Machado de Assis
Foi aí que me lembrei de procurar alguma referência na obra de Machado de Assis. Não foi preciso pensar muito para achar coisas interessantíssimas. A que primeiro vem na mente é sempre a do Dom Casmurro, mas vamos deixá-la para o final. O grosso da vida de nosso Bruxo (olha a heresia, menino!) foi vivida sob a reinado de Pio IX e Leão XIII. Aliás, a palavra reinado pode ser já uma diferenciação entre eles.
Quando Pio IX subiu ao trono de São Pedro, existiam ainda os Estados Papais, terras ali no centro da Itália onde o papa era, literalmente, o rei. Empossado em poder terreno, Pio IX foi o papa que o perdeu. Durante as guerras de unificação da Itália, contra as quais se opôs fortemente, ele acabou sendo vencido pelas tropas do Risorgimento.[i]
Daí surgiu a figura do Estado sem território e sem povo, sem Forças Armadas, sem poder terreno. O papa como um chefe de Estado sem Estado. Mas ainda existindo. O problema foi longo e só plenamente resolvido em sua versão atual lá pelos anos 1920 com o estabelecimento do Vaticano.
Para além disso, Pio IX foi o porrete da reação católica em todas as tendências próprias da modernidade burguesa do século XVIII e XIX. Sua encíclica Quanta Cura, junto do Syllabus de Erros, condenava, a rigor, toda a modernidade. Começando pelo racionalismo e pelo ateísmo e chegando até à separação entre Estado e Igreja, Pio IX faz a felicidade dos católicos conservadores de hoje e de todos os tempos.

A carta, publicada em 1864, quando Machado de Assis já atuava na imprensa, chegou ao país no ano seguinte, e foi devidamente comentada pelo nosso cronista, que debatia com frequência com o Cruzeiro do Brasil, jornal de matiz ultramontano.[ii]
Lá o nosso Machadinho liberal de início de carreira, combativo até não poder mais, solta a sua pena irônica ainda em desenvolvimento, em 7 de fevereiro de 1865: “Não levantarei mão das coisas do mundo político, sem dar os meus parabéns ao Cruzeiro do Brasil, cuja alma naturalmente nada agora de júbilo com a publicação da encíclica de Pio IX. Sinto não ter à mão o número de domingo, que ainda não li, mas que há de estar impagável, mais do que costuma. Não sei se tenho crédito no espírito do Cruzeiro do Brasil; tenha ou não tenha, não guardarei para mim uma profecia que me está a saltar da pena: Pio IX há de ser canonizado um dia”.
“Os papas, de certo tempo para cá, entraram mais raramente para a lista dos santos. Todos os primeiros pontífices, entretanto, gozam dessa honra. Será uma espécie de censura póstuma? Não quero investigar este ponto. Insisto, porém, na crença de que Pio IX há de receber a coroa dos eleitos. É principalmente aos bispos de Roma que se aplicam estas palavras: muitos serão os chamados e poucos os escolhidos. Que o santo padre merece da parte dos fiéis mais do que respeito, adoração, isso é o que me parece incontestável”.
“No meio dos perigos que o cercam, tendo contra si as potências, ameaçado de perder os últimos pedaços de terra, o débil velho não se assusta; toma friamente a pena e lança contra o espírito moderno a mais peremptória condenação. É positivamente arriscar a tiara. Não sei que farão os nossos bispos com a encíclica. A encíclica é a condenação dos princípios fundamentais da nossa organização política. Quero crer que estenderão um véu sobre esse documento (…)”.[iii]
Trata-se exatamente de Quanta Cura. Em 21 de fevereiro do mesmo ano, comentando as políticas do Imperador Maximiliano, Machado já havia relacionado explicitamente vinculação liberal e afastamento do papa: “Cremos que ele sinceramente deseja fazer um governo liberal e plantar uma era de prosperidade no México. A modificação do gabinete mexicano e o rompimento com o núncio do papa são os recentes sintomas da disposição liberal de Maximiliano”[iv].
Ser liberal é, de um lado, plantar uma era de prosperidade e, de outro, romper com o núncio do papa, que passa a representar o atraso e o contrário da prosperidade. Machado e Pio IX estão em lados opostos. Nosso autor é abertamente liberal[v], e questiona não apenas o papa no que se refere à aplicação prática de sua encíclica, como também ridiculariza com a piada sobre a canonização a própria santidade suposta dos que se sentam à cadeira de São Pedro.
O não terem sido canonizados os últimos papas é o rebaixamento contra sua prerrogativa de poder divino, que, ironicamente, Pio IX teria, dada sua coragem. Apesar da coragem do “débil velho”, o final é explícito: o poder discursivo do papa, por mais católico e mais pio que seja o país, não pode exercer poder num mundo que simplesmente mudou.
O que farão os bispos brasileiros com uma tal carta? O Estado todo está baseado nos princípios que Sua Santidade condena explicitamente, o que torna sua condenação inócua e sem sentido prático. A pergunta revela o tino materialista do jovem escritor, que, reza a lenda, teria sido educado por um padre e negado a extrema unção na hora da morte. Afirmações de princípio precisam estar vinculadas a forças sociais realmente existentes; caso contrário, são apenas afirmações de princípio inócuas.
O ter se alterado o mundo de forma tão profunda faz com que as afirmações de Pio IX sejam exatamente e apenas isto: afirmações de princípio. O poder das palavras individuais, por mais fortes que sejam as posições de seus enunciadores, não é suficiente para encaminhar a ordem das cosias no plano do real. A realidade existe para além das palavras, e aí reside a força materialista do pequeno comentário de nosso cronista.
Estranhamente, é daí que vem tanto a força quanto a fraqueza das condenações: é que, embora o movimento do século XIX seja o das convicções liberais vitoriosas, esse é apenas um movimento que, em si, continha um bom quinhão de reação, dentro da qual a católica, com certeza, era fortíssima. O poder da encíclica vinha do fato de que, vista no seu tempo e não nos dias de hoje, quando todos os dados já foram jogados, ela representava um discurso que estava, de fato, vinculado a práticas sociais reais. Os ultramontanos eram uma força política, que foi perdendo espaço com o tempo, mas que estava lá, era viva e podia muito bem ter vencido.
Machado de Assis capta o movimento contraditório da história com sua pergunta de inspiração materialista: as palavras precisam de solo real para vingarem e ter validade e é exatamente desse solo real que se movia no sentido oposto ao do papa que estava, de um lado, a inocuidade daquelas palavras (as estruturas de poder de tipo liberal estavam amplamente difundidas) e sua força (havia disputa em torno de todas as questões que o papa decidiu condenar). É, de fato, “arriscar a tiara”, nos diz o cronista de 1865: apostar suas fichas no jogo da história. Uma história que, ao mesmo tempo, atribui sentido de disputa às palavras do papa que perdeu seu poder terreno e as tira qualquer prerrogativa de verdadeiramente vencer o jogo no qual se meteu.
Esses problemas parecem ser ridicularizados também num conto de 1884, intitulado Ex cathedra. O texto aparentemente não é sobre o papa, não fosse seu título e a estrutura de seu enredo. Um velho chamado Fulgêncio enlouquece de tanto ler pelos idos de 1873. A referência mais óbvia é o Quixote, que também é um velho que enlouquece pelo mesmo motivo e sai pelo mundo como cavaleiro andante. Mas a loucura de Fulgêncio é diferente: ela não o move para dentro do mundo e para suas contradições, mas o deixa encastelado em sua chácara na Tijuca, onde vive “do escrito, do impresso, do doutrinal, do abstrato, dos princípios e das fórmulas”.
O narrador prossegue: “Com o tempo chegou, não já à superstição, mas à alucinação da teoria. Uma de suas máximas era, que a liberdade não morre onde restar uma folha de papel para decretá-la; e um dia, acordando com a ideia de melhorar a condição dos turcos, redigiu uma constituição, que mandou de presente ao ministro inglês, em Petrópolis. De outra ocasião, meteu-se a estudar nos livros a anatomia dos olhos, para verificar se realmente eles podiam ver, e concluiu que sim”.[vi]
A piada está pronta: um sujeito que acredita que tudo aquilo que está escrito vale permanentemente como realidade. Daí, a liberdade não pode nunca morrer desde que haja uma folha para decretá-la. O mundo por decretos. Ora, esse é exatamente o mundo da infalibilidade papal, que é defina por seus ensinamentos… ex cathedra.
Não apenas o título do texto nos leva para o universo do papado, especificamente o do papado de Pio IX, que havia sido o responsável pelo Concílio Vaticano Primeiro, onde a famigerada infalibilidade foi instituída oficialmente pelos idos de 1870, como também a primeira loucura do velho foi ter instituído que seu nome seria “Fulgencius”, num latinismo típico da Igreja Romana. Basta nos lembrar que a inscrição do túmulo do Papa Francisco será “Franciscus” para que a piada de Machado de Assis ganhe toda a sua atualidade.
Bom, até o momento, o personagem é uma espécie de papa rebaixado que acredita piamente na sua própria infalibilidade. Mas o parafuso dá uma volta quando notamos o conteúdo de seus decretos ex cathedra: a liberdade, valor eminentemente liberal, e o estudo científico da anatomia. O conto estabelece um cruzamento entre esses dois campos semânticos aparentemente distanciados: de um lado, a crença religiosa na palavra escrita infalível que revela os segredos divinos e, de outro, os hábitos científicos de um século que tomou ciência como sinônimo de progresso e, no mesmo ato, congelou em positivismos estéreis a capacidade da pesquisa científica.
Daí a necessidade de que se prove, pelo estudo nos livros, a capacidade dos olhos de ver, fato obviamente atestado pelo cotidiano. Mas a lógica piedosa de sua concepção sobre a ciência o faz cair no ridículo: os olhos só podem ver se assim decretarem, ex cathedra, os livros de anatomia. O que existe é o que está provado pela letra do texto, ao invés da letra do texto ser responsável por comprovar sua capacidade explicativa do real por meio da razão.
Assim podemos inverter também a lógica para um ensinamento religioso qualquer: os casamentos só existem quando devidamente realizados pelos padres católicos de acordo com o sacramento litúrgico romano adequado. Se não for realizado, ele não existe, embora as pessoas vivam juntas, dividam sua vida, se amem, tenham filhos etc. A palavra escrita se apostasia da realidade e toma seu lugar num raciocínio que o conto trata de levar às raias do absurdo. Critica, de um lado, a ideia da infalibilidade papal: assim é porque assim disse o papa; e, de outro lado, os hábitos de um cientificismo que tem pouco de espírito científico: assim é porque os livros de ciência o determinaram.
Mas não é apenas pelo nome e pelo título que a relação com o papado está estabelecida. No centro do enredo está a ideia de Fulgêncio de que a afilhada que vive com ele, Caetaninha, deve se casar com o sobrinho que chega depois do falecimento de seu irmão. Tendo decidido que eles devem se casar, ele toma a decisão de que o amor deve ser ensinado “com lógica”: “(…) primeiro os alicerces, depois as paredes, depois o teto… em vez de começar pelo teto… Dia virá em que se aprenda a amar como se aprende a ler… Nesse dia…”.[vii]
Em vez de uma ideologia amorosa romântica, outra de teor científico. E aí o velho Fulgencius resolve fazer exatamente o que faz um papa em seu Magistério, dentro do qual ele tem a infalibilidade para emitir juízos ex cathedra, isto é, direto da cadeira de São Pedro: resolve ensinar os jovens o que é o amor cientificamente concebido. No exercício de seu Magisterium, no entanto, ele precisa primeiro colocar as bases e provar a existência do universo, até chegar na existência do homem e da mulher para, depois, falar sobre o amor.
Tudo precisa ser devidamente demonstrado e ensinado, numa fixação quase tomista. Aí vem a sabedoria do velho Machado de Assis: o amor, concebido em suas bases, o desejo sexual, existe para além dos ensinamentos de nosso pontífice da Tijuca. Os jovens se apaixonam e o conto termina com a vitória da realidade sobre a pedantice e a ciência religiosamente concebida:
Enquanto ele dizia isto, e fechava a porta, alguma coisa ressoava do lado da varanda – um trovão de beijos, segundo disseram as lagartas da chácara; mas, para as lagartas qualquer pequeno rumor vale um trovão. Quanto aos autores do ruído nada positivo se sabe. Parece que um maribondo, vendo Caetaninha e Raimundo unidos nessa ocasião, concluiu da coincidência para a consequência, e entendeu que eram eles; mas um velho gafanhoto demonstrou a inanidade do fundamento, alegando que ouvira muitos beijos, outrora, em lugares onde nem Raimundo nem Caetaninha pusera os pés.
Convenhamos que este outro argumento não prestava para nada; mas, tal é o prestígio de um bom caráter, que o gafanhoto foi aclamado como tendo ainda uma vez defendido a verdade e a razão. E daí pode ser que fosse assim mesmo. Mas um trovão de beijos? Suponhamos dois; suponhamos três ou quatro.[viii]
O que o velho não vê e não entende as lagartas estão carecas de saber. A natureza, no fim, prevalece, junto do tino materialista de nosso autor. Ora, trata-se, exatamente, de uma tirada cômica contra uma concepção descolada da realidade que se materializa pelas relações que o autor deixa muito claras com o universo da Igreja, especificamente com a Igreja de Pio IX e sua infalibilidade.
O dogma religioso vinculado ao ultramontanismo do século se torna motivo de chacota junto da mentalidade secular que dele não consegue se diferenciar. Pode o papa afirmar em seu Syllabus que a prerrogativa do exercício do poder terreno lhe está garantida por Deus; pode o papa afirmar que a separação entre a Igreja e o Estado é um erro dos novos tempos: pode ele afirmar qualquer coisa, porque a lógica da realidade, e disso sabem as lagartas e os gafanhotos, não se encaminha pelo que se diz, mas pelos alicerces materiais do mundo. Não é o papa dizer que o casamento só é válido quando devidamente performado pelos sacerdotes que torna inexistentes os casamentos não sacramentados dessa maneira. As pessoas continuam se casando.
A matéria precede a consciência, ensina-nos nosso materialista tupiniquim do Segundo Reinado. A consciência, responderão outros, tem também seu peso material e Deus continua a existir enquanto os homens acreditarem que ele existe. Homossexuais continuarão a ser mais discriminados a depender das frases do papa do que eles seriam se o pontífice mudasse a doutrina da Igreja, diriam ainda esses mesmos outros. E estarão certos: o que o papa diz ou deixa de dizer é relevante, mas só o é na medida em que, na lógica material do mundo, suas falas são entendidas como as de alguém numa posição de liderança espiritual. Quem dá infalibilidade ao papa somos nós e não a prerrogativa divina.
Note-se, de passagem, que a imagem da Igreja e do papado como instituições descoladas do real e operando numa espécie de mundo mágico só seu é tão entranhada na obra de nosso autor que, a bem da verdade, o conto, que leva o título de nítida inspiração religiosa, não é sobre o problema religioso, mas toma a Igreja como ponto de comparação para o porrete da pena irônica sobre os hábitos científicos de seu tempo. O assunto do conto, digamos assim, não é a Igreja, mas a ciência, sendo a primeira apenas o termo comparativo que ridiculariza. A Igreja é, por excelência, ridícula. Na estrutura do conto, seu ridículo não precisa nem ser mostrado, ele vale por si e pode simplesmente ser aplicado à ciência, de quem, aparentemente, espera-se mais.
Francisco de novo
Os comentários parecem nos levar para o centro das discussões mais quentes quando nos lembramos do Papa Francisco. O que podem, na prática, posições conservadoras ou progressistas vindas de um Vaticano inerentemente conservador? Agora a luta parece definitivamente perdida para a Igreja. Só parece, porque as astúcias da história estão aí para nos fazer a todos de paspalhões apressados.
A condenação católica à homossexualidade, por exemplo, soa, em sociedades ocidentais de tipo liberal, um equívoco histórico da instituição que vai cavando sua própria cova. O não se autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo num tempo em que isso se transformou em prática cotidiana cada vez mais aceita e protegida não apenas pelas instituições civis como também por uma consciência coletiva que se aprimora com o tempo é, da parte da Igreja, querer imitar os ensinamos do papa Fulgencius. Decretar a imoralidade das práticas homossexuais e imaginar que, com isso, altera-se alguma coisa numa realidade que encontra suas regras morais em outros lugares que não a Igreja merece ser mesmo ridicularizado.
Mas aqui vem a astúcia da história, que pode colocar areia no meu otimismo: a condenação ainda fala fundo em setores expressivos da sociedade, vide o reacionarismo do fim do mundo que temos visto se alastrar[ix]. Ao manter a condenação, a Igreja marca uma posição, aparentemente despropositada, mas que a história pode revelar proveitosa para sua própria sobrevivência. Como no caso da Quanta Cura há duas formas de olhar a questão: é inefetiva a condenação porque o mundo mudou, mas, ao marcar posição, ela se posiciona no conjunto de problemas de nosso tempo.
A astúcia dá mais uma volta: os conservadores de plantão ou a Igreja condenarem as práticas homossexuais não fazem com que elas não existam. Não acabam com elas como se Jesus descesse à mansão dos mortos e, de uma vez por todas, vencesse a morte e os homossexuais. Não conseguem mais alterar os novos circuitos por meio dos quais a moralidade se processa, como o fim dos poderes terrenos do papa estavam permanentemente sacramentados pelas revoluções burguesas.
Os homossexuais continuam lá existindo, só que com camadas mais intensas de violência (assim como a batalha pela separação entre Estado e Igreja ficava mais difícil com as condenações de Pio IX), que são cada vez mais condenadas pela nova moralidade que se vai consolidando (como os princípios políticos modernos continuavam a consolidar-se apesar de Quanta Cura). É um movimento complexo que tenta pegar a realidade enquanto ela se move, e, para isso, é necessário o tal tino materialista.
A pergunta, no entanto, que os trechos do Bruxo colocam é a seguinte: precisamos mesmo da validação da Igreja para existirmos? Continuamos a existir para além da sanção ou condenação da Igreja. A consciência moral vai evoluindo sem ela. Ninguém acredita de verdade em inferno, ninguém está esperando o céu se abrir e Jesus voltar para acabar com o mundo. Nenhum de nós acredita que vai pro inferno porque praticamos atos de sodomia, como se dizia antigamente.
Por que diabos vamos considerar como importante o que diz o papa sobre o assunto? Por que comemoramos tanto as falas supostamente progressistas do papa, que representa em última instância uma autoridade institucional, se sua validação não importa mais? Não seria melhor ignorar e afirmar a precedência do real sobre o discursivo? Investir em outras formas de moralidade religiosa que se distanciam da Igreja de forma definitiva?
Pode-se dizer que, na forma como as coisas estão dispostas no nosso mundo concreto, a condenação institucional representa mais violência, ou, pelo menos, validação de uma instância de autoridade que justifica a violência. Mas o conto nos leva para um outro nível: a conversa não deveria ter como objetivo minar, na verdade, o poder da instituição? Não seria mais proveitoso dizer que a instituição simplesmente não importa? Miná-la, ignorá-la, destruí-la em última instância? O mais importante não seria abolir de vez o papado como instituição mais do que caduca do que ficar comemorando a vinda de um papa progressista? Não seria o papa intrinsecamente conservador? O essencial não seria ridicularizar uma instituição que se considera na prerrogativa de ditar uma moral universalmente válida do alto de sua relação com Deus?
Detalhe importante: o fim da Igreja como instituição não significa o fim da fé nem da igreja como comunidade de fieis. Para usar os termos de Leonardo Boff: o fim da Igreja como poder não é o seu fim como carisma[x]. E o fim de uma instituição como papado não é o fim de lideranças religiosas e morais que com projeção local, nacional ou global que podem, sim, ter uma influência positiva nos grandes debates civilizatórios.
O trunfo do Papa Francisco, me parece, foi ter sido uma personalidade desse outro tipo, influindo pelo magistério e pelo exemplo que lhe dava autoridade moral nas grandes discussões de nosso tempo, sem abolir, no entanto, esse outro aspecto da posição que ocupou. Estava para além de suas capacidades fazê-lo, é verdade, mas está na nossa centrar o debate não no progressismo ou conservadorismo do papa, mas na caducidade do papado.
Diga-se, de passagem, que a Igreja como instituição tem muita dificuldade em mudar seus posicionamentos, seja lá sobre o que for. E isso por um motivo justo: seu poder está baseado, sempre esteve, em ensinamentos que se pretendem divinos e, portanto, inalteráveis. A pergunta é até que ponto seu carisma também está vinculado a isso. Ela própria como instituição muda, porque até os representes de Deus na terra estão sujeitos à história, mas, em seu discurso, ela não pode mudar.
Olhem o imbróglio: São Paulo (o verdadeiro e o falso) é categórico na condenação da homossexualidade, e da sexualidade no geral, o que torna difícil de engolir, do ponto de vista estrito dos ensinamentos morais do texto que se considera sagrado, de inspiração divina, que a homossexualidade esteja dentro das práticas aceitáveis. O Jesus dos Evangelhos diz abertamente contra o divórcio. Como a Igreja não vai considerar o divórcio um problema?
O desafio, no fundo, eu acho que é separar o ensinamento propriamente religioso do de ordem moral[xi]. É a solução mais bonita: mantenhamos o sentido humanista metafórico dos Evangelhos e vamos relativizar a moral que eles implicam porque, no fim das contas, foram escritos numa sociedade muito diferente da nossa. Mas, ao mesmo tempo, ela não pode, como instituição, fazer uma coisa dessas, porque seu poder está baseado, em larga medida, na imagem de reguladora moral da vida. Fazê-lo é perder poder, ou, no mínimo, mergulhar num abismo em que seu lugar no mundo é uma incógnita.
FELIPE DE FREITAS GONÇALVES ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
*Filipe de Freitas Gonçalves é doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Notas
[i] Em artigo publicado na Machado de Assis em Linha, Felipe Pereira Rissato descobriu uma contribuição de Machado ao jornal O Cosmopolita, em que nosso autor comemora, em 20 de setembro de 1884, a unificação da Itália numa pequena nota, que diz assim: “Cada cousa tem o seu tempo. O que estava no coração de todo italiano, o que Maquiavel insinuava aos Médicis, só se pôde fazer neste século, depois que a Itália aprendeu duramente na escola da servidão. A melhor liberdade é a que mais custa”. Como se vê, as convicções liberais do nosso autor continuaram vivas depois de 1881 e se manifestavam a favor da unificação o que, em nosso contexto, significa oposição às pretensões do papa. O autor se refere, ainda, a um poema publicado por Machado no Correio Mercantil, em 10 de fevereiro de 1859, no mesmo número em que se inicia a publicação do importantíssimo “O jornal e o livro”, a publicação de um poema em que nosso jovem escritor comemorava os movimentos de unificação da Itália, relacionado à independência da Grécia e ao movimento que se entrevia na Polônia. O refrão é cantante e empolgado, de sabor militar: “Pálida Itália — ressuscita agora./ O ardor nos peitos – na esperança a fé!”. O artigo de Felipe Pereira pode ser conferido aqui: Machado de Assis no jornal Cosmopolita. O poema em sua íntegra pode ser consultado no site da Hemeroteca.
[ii] No artigo “Machado de Assis e a liberdade religiosa”, José Almeida Júnior comenta a posição de nosso autor em relação às questões religiosas, especialmente sobre a necessidade de liberdade religiosa e de separação entre Estado e Igreja, mostrando claramente que, nestes anos iniciais de combate ideológico na fileira liberal, o conservadorismo católico foi um dos inimigos escolhidos por Machado.
[iii] Machado de Assis, Ao acaso, 7 de fevereiro de 1865. In: Obra Completa de Machado de Assis. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2015, v. 4, p. 233-34. A partir de agora, como todas as citações serão feitas a partir dessa edição, resume-se a referência para OCMA, mantendo a indicação inicial da obra específica e do volume e da página em que a citação se encontra.
[iv] Machado de Assis, Ao acaso, 21 de fevereiro de 1865. In: OCMA, v. 4, p. 237.
[v] Estou escolhendo como objeto textos do início da carreira de nosso autor, quando ele incorporava a fé política no liberalismo, e alguns de sua maturidade, depois da publicação do Brás Cubas, quando sua visão supostamente cética do mundo já havia se afirmado. Sobre essas escolhas, dois esclarecimentos: no meio da obra de Machado (os primeiros romances, especialmente Helena, e os dois primeiros livros de contos), parece haver uma visão mais condescendente com a vida religiosa. O ambiente é mais abafado, mais resignado aos ditames do mundo (embora procurando neles entrever alterações necessárias) e, por isso, o tom religioso cai como uma luva. Não vou me preocupar com esse miolo, ficando apenas com o liberal de 20 anos e o escritor maduro de 50 anos. Segunda observação importante é que vejo, ainda no Machado maduro, embora de forma muito mais matizada do que na juventude, o mesmo ideal liberal de antes. O problema é complicado demais para ser desenvolvido em nota de rodapé, mas basta dizer que toda a sátira construída pelo autor em sua maturidade só é inteligível se considerarmos a modernidade liberal como paradigma. Um paradigma imperfeito, é verdade, mas, ainda assim, um paradigma. Não é porque Machado consiga ver com clareza as impropriedades do nosso liberalismo (e de seu paradigma lá no Norte) que seu horizonte não seja a efetivação de uma sociedade plenamente modernizada.