UM PRIMEIRO – MINISTRO EMPENHADISSIMO EM NEM SEQUER DISFARÇAR

CHARGE DE HENRI

Quando um primeiro-ministro em campanha acusa a TV pública de “ser muito insistente” e estar “empenhadíssima”, isso é impulso — e de algo que, num país que ainda agora festejou meio século de imprensa livre, devia ter consequências.

“Valeu a pena, insistir na teimosia de manter a empresa familiar e levar o país para eleições?” 

A pergunta foi feita em Espinho, o lugar do crime, a Luís Montenegro enquanto líder da coligação governamental que concorre de novo a eleições. A resposta começou com um sorriso e um comentário sarcástico — “O senhor não tem mais nenhuma pergunta para me fazer todos os dias” — mas acabou com o olhar furioso assestado no jornalista: “A RTP… A RTP está empenhadíssima”. 

Ante o esclarecimento, pelo repórter da RTP presente, de que a pergunta fora feita pela SIC, Montenegro não desarmou: “Então é SIC, pronto. Mas eu vi aqui o microfone da RTP, que tem sido mais insistente.” E acrescentou ainda: “Eu não sei, querem fazer as mesmas perguntas que faziam há dois meses ou três atrás?”

É certo que a pergunta da SIC foi provocatória, mas não é menos certo que, como disse o repórter desse canal a meio da ira do primeiro-ministro, este nunca respondeu realmente às perguntas que importam, e são muitas (só têm aumentado, na proporção da direta da ausência de esclarecimentos, desde que pela primeira vez, em fevereiro, ouvimos falar da Spinumviva) sobre a empresa que criou em 2021 — quando se preparava para, pela segunda vez, disputar o PSD a Rui Rio —, as empresas com as quais a dita tem contratos, os proventos que daí advieram para a sua esfera financeira enquanto primeiro-ministro e os conflitos de interesses que a situação obviamente implica. Foi aliás, como toda a gente sabe, a sua recusa em esclarecer — evidenciada no facto de ter apenas há poucos dias, e em segredo, prestado à Entidade para a Transparência informações sobre as entidades às quais tinha, nos últimos três anos antes de ser PM, prestado serviços, esclarecimentos esses que deveria ter dado logo que tomou posse, em abril de 2024 — que resultou no ato eleitoral que terá lugar no próximo domingo.

Não é pois, nesta altura do campeonato, a sua impante, exibicionista até, determinação de opacidade a merecer nota nesta reação de Montenegro. Toda a gente sabe que se acha no direito de não responder e de se vitimizar por haver quem queira saber — e os que consideram isso aceitável e normal, desejável quiçá, já não vão decerto mudar de ideias. 

Não: o que aqui não se pode, não se deve, deixar passar é a forma como Luís Montenegro, cujo Governo já pôs a hipótese de retirar toda a publicidade à RTP, fazendo-a depender apenas da subvenção pública, não se exime de, perante o país e a escassos dias de umas legislativas, admoestar a televisão do Estado por ser “insistente”, insinuando mesmo que está “empenhadíssima” — ou seja, que tem um empenho especial, uma dedicação ou ardor particulares, em atacá-lo.

Não é a primeira vez que Montenegro demonstra a sua insatisfação com a cobertura jornalística de certos órgãos — já o fez por exemplo em relação ao Expresso, o jornal que revelou a existência de um contrato da sua “empresa familiar” com a detentora de casinos Solverde; chegámos até ao ponto de ouvir um deputado do PSD aventar que o Ministério Público podia ir vasculhar nos telefones de jornalistas do Expresso e deputados para descobrir quem tinha “passado” ao semanário a notícia sobre os esclarecimentos mais recentes do PM à Entidade da Transparência —, mas o total à-vontade com que caustica a TV pública, imputando-lhe, em bloco, um desígnio contra si, deveria fazer tocar campainhas. Sobretudo na casa daqueles — tantos deles no PSD, a começar por Paulo Rangel — que andaram anos a bradar contra o que descreviam como tentativas de controlo da comunicação social.

FERNANDA CÂNCIO ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *