
CHARGE DE ALLAN SIEBER
Do mercantilismo ao capitalismo de plataforma: como a violência colonial, inovações financeiras e revoluções industriais moldaram o sistema capitalista, sem superar sua essência exploratória
A revolução bancária tem início com a fundação do primeiro banco em 1406. A revolução financeira surge com a criação da primeira sociedade aberta e bolsa de valores em 1602 na Holanda com a Companhia das Índias Orientais. Ocorreu no século anterior à revolução industrial, quando se configurou o capitalismo com contratação de trabalhadores “livres”, para vender sua força de trabalho, por detentores de capital para pagar o assalariamento.
É necessária uma análise histórico-sistêmica e crítica da gênese do capitalismo para verificar como esse macrossistema emerge (e se altera) ao longo do tempo por interações de diversos componentes. Exige integrar instituições financeiras, expansão colonial, mudanças políticas e transformações nas formas de produção.
O capitalismo não surge em um único momento, mas se configura como sistema histórico a partir de múltiplas transições interconectadas, ao longo da modernidade europeia (séculos XV–XVIII). É possível distinguir quatro momentos principais.
O primeiro, denominado de “acumulação primitiva” (ou originária) situa-se entre os séculos XV e XVII. Passa por um processo de expropriação de terras (“cercamentos” na Inglaterra), destruição de formas comunais e mercantis anteriores. Com um mercado de endividamento público, há financiamento estatal e bancário-privado das navegações e das conquistas coloniais – incluindo escravidão e saque de metais preciosos na América para a monetização europeia.
A expansão da dívida pública se relaciona ao surgimento de bancos (1406, Siena; depois Gênova, Amsterdã, Londres), após o extermínio dos cavaleiros Templários, protetores da fortuna de contribuições religiosas e credores de reis caloteiros, e à formação dos mercados de capitais como a Bolsa de Valores de Amsterdã no início do século XVII.
Portanto, nesse período, há a formação do proletariado despossuído (nem escravo nem subordinado a senhores feudais) e do capital comercial-financeiro com expansão dos comerciantes nas cidades, os burgueses.
Karl Marx, no volume I de O capital, define esse processo como a “acumulação primitiva”. O capital não nasce da troca “livre”, mas sim de um ato violento de expropriação fundadora de um sistema socioeconômico e financeiro.
Logo emerge a revolução comercial e a formação do capitalismo mercantil. Consolida-se no século XVII com a Companhia das Índias Orientais (VOC) e outras empresas colonizadoras como formas proto-corporativas de capital financeiro.
Há a expansão de crédito, “seguros” marítimos, câmbio e circuitos financeiros intercontinentais. O Estado-nação moderno (absolutista) foi agente ativo em guerras comerciais, protecionismo (mercantilismo), dívida pública e instituições de regulação.
A revolução industrial só ocorre na virada do século XVIII para o XIX. Marca a transição para o capitalismo industrial, baseado na produção fabril, mecanização e nova divisão social do trabalho. Consolida-se a relação salarial como forma dominante de exploração. Ocorre a emergência da burguesia industrial e do capital produtivo, articulado a uma infraestrutura bancária e financeira consolidada nos séculos anteriores.
Em consequência, a institucionalização do capitalismo moderno depende da constituição de sistemas nacionais de crédito, supervisão de Bancos Centrais, moedas fiduciárias e mercados globais de dívida pública. A expansão colonial e imperialista se deu com apoio de instrumentos financeiros como prerrequisitos indispensáveis. Consolida a economia-mundo capitalista com metrópoles financeiras como Londres e Amsterdã.
A acumulação primitiva ou prévia foi uma pré-condição estrutural do capitalismo. A expansão colonial, a escravidão, o saque de recursos agrícolas e minerais das Américas e a violência fundadora sobre os corpos dos escravos e os territórios não são exceções ao capitalismo: são seu ponto de partida.
Sistemas de crédito e dívida financiavam as frotas coloniais. A prata de Potosí, no Peru, alimentava o sistema monetário europeu. O ouro de Minas Gerais monetizou a revolução industrial inglesa via Portugal. O tráfico atlântico de escravizados movimentava capitais entre Europa, África e Américas. O Estado absolutista foi o grande organizador da acumulação inicial, antes da hegemonia do mercado “livre”.
2.
Com essa breve síntese crítica tentamos responder à questão-chave: quando e como se configura o sistema capitalista?
O capitalismo se configura entre os séculos XV e XVIII como um sistema mundial, articulando: expropriação violenta de terras e pessoas; inovação financeira e contábil (bancos, dívida, ações, seguros); expansão imperialista e escravista; organização estatal da acumulação; e, só mais tarde, a produção fabril como núcleo da valorização do capital.
Foi resultante de um processo sistêmico, passando por diversas fases seculares para a constituição histórica do capitalismo. Conectou formas de capital (mercantil, financeiro, industrial), instituições e eventos-chave (como a fundação da Companhia das Índias Orientais, os cercamentos ou a Revolução Industrial).
Se a re-evolução do sistema capitalista foi (e é) processual, ele gradualmente se altera através de acumulação de capital financeiro e imobiliário por mais pessoas, conquistas da cidadania e inovações tecnológicas. Atualmente, observa-se o aumento da produtividade, propiciada pela 4a. Revolução Industrial, ser argumentada como favorável à luta social pela diminuição da jornada de trabalho semanal, o aumento do trabalho remoto e do trabalho por conta própria etc.
Quando se alterarão as forças produtivas e as relações de produção a ponto de caracterizar outro sistema socioeconômico e financeiro?
Essa pergunta propõe uma reflexão profunda sobre a dialética histórica entre continuidade e ruptura no capitalismo. Centra-se na hipótese de suas mutações contemporâneas – tecnológicas, laborais, organizacionais – estarem gestando um novo modo de produção ou, ao menos, um regime de acumulação qualitativamente distinto, além de um novo modo de vida mais sustentável.
Cabe estruturar a resposta de forma sistêmica. Para tanto, articulemos o plano material das forças produtivas, o plano social das relações de produção, e o plano institucional-ideológico do modo de regulação.
A re-evolução do capitalismo é processual, mas haverá mutação interna ou ruptura súbita? Sim, há mutações profundas. Mas ainda insuficientes para caracterizar um novo sistema. Historicamente, o capitalismo se transformou sem deixar de ser capitalismo.
Fase / Regime | Características dominantes |
Capitalismo mercantil (século XVI–XVIII) | Acumulação via comércio, escravidão e monopólios coloniais |
Capitalismo industrial (século XIX) | Produção fabril, exploração direta do trabalho assalariado |
Capitalismo fordista-keynesiano (século XX) | Produção em massa, consumo de massa, Estado social, sindicatos fortes |
Capitalismo financeirizado/neoliberal (fim do século XX–XXI) | Globalização produtiva, dominação do capital financeiro, precarização do trabalho |
A 4ª Revolução Industrial (Inteligência Artificial, robótica, big data, digitalização) reconfigura as forças produtivas, mas ainda o sistema opera sob a lógica da valorização do capital nos mercados de bens e serviços e de capital, da extração de mais-valor dos assalariados e da propriedade privada dos meios de produção e das plataformas.
Alterações nas forças produtivas contemporâneas têm potencial de basear uma ruptura e/ou uma gestação de novo sistema produtivo, financeiro e de vida socioeconômica. Por exemplo, são fatores de mutação sistêmica hoje a automação e a inteligência artificial capazes de substituírem trabalho vivo por algoritmos — ameaça à base trabalhista da mais-valia. Outra inovação é a plataformização do trabalho: Uber, iFood, Amazon Mechanical Turk — trabalho sem vínculos formais, disperso, mediado por algoritmos.
Amazon Mechanical Turk (MTurk) é um serviço de crowdsourcing onde empresas e pesquisadores contratam trabalhadores (crowdworkers) remotos para realizar tarefas cuja tecnologia ainda não pode automatizar. Estes trabalhadores, conhecidos como turkers, executam micro-tarefas (HITs – Human Intelligence Tasks) exigentes de julgamento e inteligência humana, como transcrição, etiquetagem de imagens e pesquisa – e são pagos por essas tarefas.
Costumeiramente, é usado para treinar modelos de Inteligência Artificial, porque os dados rotulados por humanos ajudam as máquinas a aprender. Empresas e pesquisadores criam e postam tarefas (HITs) no MTurk. Trabalhadores (turkers) acessam a plataforma e escolhem as tarefas de seu interesse, executando-as e recebendo remuneração pelas tarefas concluídas, com as taxas variando de acordo com a complexidade da tarefa.
Junta-se ao trabalho remoto (home-office) e aos trabalhadores por conta própria. Há um aparente aumento da autonomia, mas com novos mecanismos de controle digital. Também surgem inovações financeiras e moedas digitais: descentralização monetária, crédito por fintechs, bancos digitais e criptoativos.
Esses fenômenos deslocam a forma clássica da exploração do trabalho, mas não a anulam. Em vez da fábrica, o “capitalismo de plataformas” explora dados, tempo, atenção e vida cotidiana.
As relações de produção ainda não mudaram radical e totalmente. Apesar das mutações tecnológicas, as relações fundamentais do capitalismo permanecem:
A propriedade privada dos meios de produção predomina, inclusive sobre dados e infraestrutura digital A subordinação do trabalho ao capital persiste via novas formas: autônomos precarizados, freelancers. A valorização do capital como lógica sistêmica ainda é o eixo da acumulação, inclusive com Inteligência Artificial e big data.
Logo, a mudança das formas não anula a substância – o trabalho ainda é explorado, embora em novas formas. Talvez estejamos em transição a outro sistema, mas ainda é indeterminado.
Há disputas em aberto como entre utopias cibernéticas e colaborativas: movimentos por renda básica, open source, cooperativas de plataforma, economia solidária. Riscos distópicos ameaçam: vigilância algorítmica, hiperconcentração de poder nas big techs, dissolução de direitos sociais.
Várias inovações institucionais estão em via de serem implementadas como digitalização do Estado, moedas públicas (CBDC) digitais, regulação da Inteligência Artificial e do trabalho remoto. Se a mutação atual será uma transição para outro modo de produção ou uma nova intensificação do capitalismo depende de disputas políticas, sociais e epistemológicas em curso.
O capitalismo contemporâneo, sob a 4ª Revolução Industrial, transforma profundamente as formas da produção, do trabalho e do controle social, mas mantém suas relações estruturais de exploração e acumulação. Ainda não há ruptura sistêmica plena, mas sim um capitalismo mutante, instável e ambíguo, cujos desdobramentos dependem das lutas sociais, da crítica teórica e da imaginação política.
Em um esquema visual sistêmico, no infográfico abaixo, elaborado por Inteligência Artificial, encontra-se a comparação entre as diferentes formas históricas do capitalismo e suas forças produtivas, relações sociais e regimes institucionais.
FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]