CONSEQUÊNCIAS DO TARIFAÇO DE DONALD TRUMP

CHARGE DE KIKA CASTRO

A estratégia protecionista e a dívida estadunidense podem acelerar o colapso do sistema dólar-dívida que sustenta o capitalismo há 70 anos

Nas últimas semanas os diversos analistas econômicos se debruçaram sobre a racionalidade ou não das medidas tarifárias tomadas pelo mandatário da Casa Branca. Parcela considerável das análises são críticas ou, pelo menos, bastante céticas sobre o grau de certeza nas repercussões objetivadas que as referidas medidas terão sobre a economia estadunidense.

O processo de desindustrialização estadunidense, “last motive” do tarifaço, foi uma consequência de um conjunto complexo de fatores, porém um dos aspectos importantes foi a condição única da economia estadunidense de poder se autofinanciar e manter um duplo déficit (comercial e fiscal) durante um longo período graças ao padrão dólar/dívida pública sem precedentes na história do capitalismo e que já perdura por mais de setenta anos.

Neste texto abordamos a lógica da dívida pública dos EUA sob uma interpretação marxista e adiantamos algumas hipóteses sobre às consequências do tarifaço de Donald Trump.[i]

Dívida nos olhos dos outros é refresco

Na atualidade, a dívida pública estadunidense absorve a maioria dos “fundos líquidos” internacionais. No final de 1997, os títulos do Tesouro americano em poder de “investidores” estrangeiros totalizavam US$ 1,23 trilhão ou quase 36% do estoque em poder do setor privado (US$ 3,4 trilhões), sendo os maiores detentores o Japão, a China, o Reino Unido e a Alemanha.

Segundo a Securities Industry and Financial Markets Association (SIFMA) em 2010 o volume diário de títulos do Tesouro estadunidense negociados chegou a US$ 500 bilhões, sendo que 75% do estoque de títulos agora está em poder de investidores estrangeiros (US$ 3,3 trilhões), a China detendo US$ 1,1 trilhão e o Japão US$ 800 bilhões são os maiores detentores de títulos. Em 2024 a dívida pública federal bruta alcança um volume total de 28,4 trilhões de dólares e já representa mais de 80% do PIB (Produto Interno Bruto, ver figura abaixo).[ii]

Os Bancos Centrais da China e Japão têm acumulado uma grande quantidade de títulos estadunidenses, como parte de suas estratégias de manutenção de um “dólar forte” diante de suas respectivas moedas, o que até aqui foi interessante para suas exportações.

Essa forma de financiamento do déficit governamental estadunidense teve efeito de conter “tensões inflacionárias” e, vis-à-vis, manteve as condições de crédito ao consumidor americano em termos extremamente favoráveis durante as últimas quatro décadas, de 1990 a metade da década de 2020 (Stiglitz, 2010; Varoufakis, 2017), porém ao que tudo indica parece que esse modelo baseado em uma moeda fiduciária lastreada em títulos do governo estadunidense se esgotou, bem vamos estabelecer algumas hipóteses.

Figura: média de 10 anos da dívida pública mobiliária federal – EUA (em % PIB).
Fonte: http://www.usgovernmentspending.com

O que Karl Marx nos diria sobre esse quadro

A análise das relações de endividamento e reorganização da economia estadunidense têm que considerar as condições específicas da acumulação de capital mundial, tomando-se tanto os circuitos nacionais (internos) de acumulação quanto os variados circuitos integrados na economia internacional.

Karl Marx considerava que umas das formas centrais do capital, enquanto valor que se valoriza, é a chamada forma capital de empréstimo, uma massa crescente de riqueza que se destina a ser um tipo muito específico de mercadoria, uma “mercadoria-capital”, ou seja, um valor monetário que se destina a ser vendido ou alugado, gerando um filhote específico: o juro. Essa forma de capital que faz com que a imaginação de muitos analistas acharem que o dinheiro pode se multiplicar espontaneamente, sem passar pelo “mundo malcheiroso” da produção de mercadorias e da exploração da força de trabalho.

É válido, como observava Marx (1981) para a economia inglesa do século XIX, que os capitalistas-monetários isoladamente vislumbrem o juro como um componente “autônomo” do processo reprodutivo geral da economia, porém é “naturalmente insensato generalizar essa possibilidade e estendê-la ao capital todo da sociedade, como o fazem alguns economistas vulgares”.

Karl Marx já alertava para insensatez da percepção que considera a possibilidade de “dinheiro dar em árvore como peras na parreira”, sendo que o circuito monetário e a forma dinheiro são dependentes do circuito reprodutivo econômico e da forma mercadoria, algo que curiosamente tanto os economistas keynesianos e neoclássicos parecem não entender, sendo que esse longo período da “pax americana” baseada no dólar ofuscou mais ainda a compreensão dos economistas e, daí decorrente, dos chamados formadores de política econômica.

Os circuitos reprodutivos de acumulação integrados alimentam os dois circuitos de circulação monetária estabelecidos por Marx,[iii] requerendo os títulos de renda permanentemente novos inputs de mais-valia, de tal maneira que a economia global se desenvolve distribuída em diversos circuitos nacionais de reprodução e centros de absorção de capital de empréstimo, cujo epicentro é, ou era, o Estado norte-americano, pelo lado da absorção de capital de empréstimo, e as economias asiáticas, especialmente a China, o Japão e a Índia, pelo lado reprodutivo da mais-valia.

Pode-se pensar, em termos mundiais, que os circuitos de acumulação regionais ou nacionais funcionem como “capitalistas isolados” que alimentam um determinado fluxo permanente de capital de empréstimo, parcialmente absorvido por um contrafluxo de dívida pública da nação hegemônica, ou seja, a dívida pública funciona absorvendo capital de empréstimo e possibilitando o prolongamento das fases de ascensão dos ciclos de acumulação localizados. Contudo, no limite, a continuidade de alimentação integrada desses circuitos levará à uma crise de superprodução de capitais em termos globais.

Ilustrativamente podemos conceber os fluxos econômicos entre os EUA e a China/Japão (bloco asiático) como estruturados dos seguintes momentos simplificados:

(i) Os DI e DII reprodutivos[iv] daqueles países vendem aos EUA, constituindo o déficit comercial dessa potência. A produção bélica estadunidense requer uma troca permanente com os departamentos reprodutivos daquelas nações e, obviamente, também internos, o que leva às novas necessidades de trocas, principalmente em função da sobrecarga deste DII não reprodutivo (bens bélicos e bens de luxo) sobre os departamentos reprodutivos internos.

(ii) Esse déficit comercial possibilita o acúmulo de capital-dinheiro (superávits reais) em mãos de capitalistas monetários (e Estados) asiáticos (e também europeus em parte).

(iii) A dívida pública estadunidense absorve esse capital de empréstimo e alimenta o circuito internacional de crédito com uma crescente massa de títulos públicos. No curto prazo o circuito se fecha enquanto se mantiver a dinâmica de acumulação asiática, porém com uma crescente instabilidade monetária internacional.[v]

Brunhoff (2005) tem interpretação semelhante. Segundo ela, como “a maioria dos novos países capitalistas asiáticos, ela [a China] aplica seus excedentes em dólares em bônus do Tesouro norte-americano, o que contribui para fechar o circuito do crédito internacional norte-americano”. Porém a “dívida estadunidense e a precipitação dos Estados Unidos na aventura iraquiana aumentaram cada uma a sua maneira, a instabilidade monetária internacional”.

Há, portanto, plena integração entre os circuitos de acumulação asiáticos e a dívida pública estadunidense, porém o sistema tende a crescente instabilidade conforme aumenta a dependência da punção de mais-valia de um único grande ponto reprodutivo (China), e se enfraquece a capacidade fiscal da economia central (EUA).

Diversos autores têm defendido em relação ao caso estadunidense uma especificidade sui generis, qual seja a possibilidade de um crescimento indefinido da dívida pública daquele país, em função de que sua dívida ao ser nomeada em dólar, e na medida em que o FED pode controlar a taxa de juros e, em última instância, imprimir dólares, não haveria limites para os seus recorrentes déficits em transações correntes.

Serrano (2004), por exemplo, afirma que, “ao contrário dos outros países onde a maior parte (quando não o total) dos passivos externos é denominada em outras moedas, os EUA detêm a prerrogativa de reduzir o serviço financeiro de sua dívida externa meramente através de uma redução das taxas de juros domésticas”. Do mesmo modo raciocina Wray (2003). Segundo esse autor, o governo estadunidense poderia vender títulos para estrangeiros desde “que estes títulos sejam denominados em moeda fiduciária interna”. Neste caso, “eles não implicarão quaisquer ‘riscos’ além daqueles que os títulos mantidos internamente”.

Parece-nos que essas análises são parcialmente equivocadas, podendo ser feitas as seguintes observações à luz da percepção marxista: (a) O limite para o endividamento do Estado é dado, principalmente, pela capacidade de expansão da carga fiscal, que naturalmente depende do crescimento interno da economia como consequência de maiores taxas de acumulação nos departamentos reprodutores internos dela[vi]. Claro está que uma crescente sobrecarga financeira sobre esses departamentos, acompanhada de uma relação crescente de absorção de renda líquida por parte da dívida pública e sua posterior dissipação em gastos improdutivos, poderá, em um determinado período, minar as condições reprodutivas nacionais.

(b) Na medida em que o capitalismo é um sistema global cuja capacidade de expansão se regula pela existência de sistemas nacionais integrados e parcialmente dependentes entre si,[vii] pode-se estabelecer uma restrição dada pelo poder político e militar da nação devedora em relação aos credores externos. Contudo esse poder político e militar será tal como no aspecto anterior, minado, na medida em que as condições reprodutivas (econômicas) que sustentam essa ordem entrem em crise.

A superprodução de capital é o aspecto acionador das crises capitalistas, gerando o declínio da taxa média de lucro e a crescente necessidade de crédito monetário para fazer frente às dívidas vincendas e aos empréstimos em descoberto por parte dos capitalistas. A superprodução necessariamente acarreta a desvalorização de capital-mercadoria e a perda da capacidade de meio de pagamento do dinheiro de crédito em circulação. Diante das dívidas vincendas e do questionamento da validade de parcela das notas de crédito, exige-se um crescente uso das reservas do Banco Central e, no limite, a maior intervenção deste organismo.

Três aspectos da dinâmica da dívida pública da economia central capitalista (até aqui os EUA) em momentos de crise podem ser assinalados: (i) atua absorvendo capital de empréstimo excessivo, neste caso específico tem atuação anticíclica; (ii) uma possível crescente necessidade por parte do Estado de recursos força a uma oferta crescente de títulos públicos no mercado primário, o que configura um fator a mais pela demanda de capitais de empréstimo. Neste segmento do ciclo de negócios a dívida pública é um componente a mais na pressão sobre a taxa de juro; (iii) concomitantemente, a crescente necessidade de capital monetário por parte dos capitalistas em geral os leva a desfazer-se de uma massa crescente de títulos de capital fictício no mercado secundário.

A grande oferta de títulos, considerando o mercado primário e o secundário, produz um declínio no seu preço de face e conduz principalmente a uma redistribuição e concentração de valores nas mãos de um segmento de capitalistas em detrimento do segmento anterior.

Em tempos de crise no mercado monetário, os títulos públicos experimentam uma dupla depreciação: primeiro, porque o juro sobe e, segundo, porque se lançam em massa no mercado, para serem convertidos em dinheiro (notas do banco central). Num momento de crise, configura-se uma relação crítica entre a atuação da política fiscal e a da política monetária e, mais do que nunca, o Estado tem que agir como órgão de classe, convergindo sua atuação conforme os interesses dos setores da burguesia de maior poder financeiro.

Pode-se observar que, em geral, em termos do financiamento do déficit fiscal, há um claro agravamento em função da impossibilidade de aumento da carga fiscal, dadas as condições de financiamento das empresas, a inadimplência e a massa crescente de títulos de crédito protestados.

Por outro lado, a situação do mercado financeiro pressiona a taxa de juro a elevar-se, atuando a política monetária no mercado aberto pela descompressão do mercado monetário, adquirindo títulos e ofertando notas do Banco Central (FED) a fim de reduzir a taxa de juro e aliviar os custos de financiamento das empresas.

Contudo isso é no limite impossibilitado pela ausência de reservas monetárias que são sempre, ou principalmente, reservas fiscais. A solução é via mercado externo, ou pela entrada de capital de empréstimo externo, por meio da venda de títulos da dívida pública no mercado internacional, aumentando a dívida externa, mas aliviando no curto prazo a crise monetária, ou pela entrada de dinheiro via balança comercial.

A depender da gravidade da crise, a oferta de títulos públicos no mercado secundário se soma à oferta de títulos no mercado primário, pressionando o preço dos mesmos para baixo e, paralelamente à sua depreciação, a crescente centralização dos mesmos em mãos de credores externos. Marx (1981) observa que, após a crise, “os títulos [públicos] retornam ao nível anterior”, contudo a sua depreciação atuou “poderosamente no sentido de centralizar a riqueza financeira”.

A dívida pública absorve capital de empréstimo como condição funcional do sistema, diminuindo o maior fluxo (overacumulation) de capital, o que evita o declínio da taxa de juros de curto prazo e o possível aumento da especulação com títulos de crédito diversos. A forma como isso é feito, através de emissão de títulos de curto e longo prazo, acaba conferindo nova flexibilidade ao sistema de crédito, aumentando a massa de capital fictício na economia, o que fundamenta novos problemas, além de alimentar a desproporção entre departamentos (não reprodutivo, parte do DII e reprodutivos, DI e parte do DII) para financiamento dos gastos estatais.

Duas teses possíveis

(a) A primeira tese constitui que em relação à dívida pública estadunidense, que o seu limite como grande absorvedor de excedentes de capital de empréstimo internacional está dado pela pressão fiscal futura sobre sua base reprodutiva, ao mesmo tempo em que as condições de domínio bélico e de manutenção do padrão de preços internos pressionam por novas demandas por capital de empréstimo.

Por outro lado, somente é cabível supor o refinanciamento da sua dívida pública mantidas as condições de crescimento de economias e a completa adesão destas economias ao princípio de financiamento dos EUA, e, neste limite, sustentando o frágil equilíbrio do capitalismo internacional deste primeiro quartel do século XXI. O atual processo em curso, cujas medidas de Donald Trump são somente a ponta de um iceberg, encerram esta lógica histórica do longo ciclo capitalista iniciado em finais dos anos 1970.

(b) A segunda tese é mais concreta e refere-se ao estabelecimento de uma crise econômica de grau diferenciado em relação àquelas que o capitalismo do pós-segunda guerra até aqui vivenciou, inclusive a de 2008 e novamente nos utilizaremos do velho cientista e revolucionário de Trier. Marx (2013) observa que a função do dinheiro como meio de pagamento no mercado internacional apresenta a característica que em momentos de crise comercial como a que agora nos avizinhamos, o “dinheiro não se apresenta como meio de circulação”, mas necessita se apresentar como “mercadoria absoluta”, ou seja, como ouro, estabelecendo uma crise mais profunda que àquelas que até aqui vivenciamos.

A crise comercial que se avizinha a partir da tentativa de ajuste econômico via tarifas pode produzir uma crise monetária de novo tipo e mais profunda que aquelas que tivemos até aqui. Repetindo Marx devemos bradar ao Donald Trump: “Hic Rhodus, hic salta!”.[viii]

JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista: uma abordagem marxista (Editora CRV).

Referências


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