Noel Rosa no traço de Lan Imagem: cpdoc@jb.com.br
Noel Rosa foi um dos mais produtivos compositores brasileiros das primeiras décadas do século 20. Entre os anos de 1929, quando compôs o primeiro grande samba, “Com que roupa?” (gravado em 1930 e sucesso absoluto no Carnaval de 1931) e 1937, quando morreu, construiu o conjunto de obras mais inspirado e admirado da música brasileira.
Aldir Blanc produziu intensamente a partir de meados dos anos 1970 e durante as duas primeiras décadas do século 20. Teve mais tempo para criar e ser fiel ao maior legado do Poeta da Vila: a crônica de costumes servindo de fonte de inspiração para a construção de obras-primas. E mais: da Vila também foi, pois embora nascido no Estácio, buscou a vida inteira o seu tesouro escondido na caverna da infância inesquecível, passada à sombra de goiabeiras na Rua dos Artistas (como contou, lindamente, nas crônicas reunidas no pequeno grande volume chamado “Vida Isabel – inventário de infância”).
Aldir Blanc Foto: Adhemar Veneziano
Quis o destino que o dia 4 de maio registrasse no calendário a morte dos dois poetaços da Vila (Aldir, em 2020, vítima da terrível epidemia que varreu o planeta e matou tantos brasileiros – aquela mesma que o então presidente de plantão chamou de gripezinha; Noel, em 1937, vítima da tuberculose, doença que não frequentava os cabarés da Lapa nem os salões do café Nice, mas que era a vedete do momento).
Os dois gigantes enalteceram o bairro que não quer abafar ninguém ou suas mais românticas e poética ruas e arredores e tiveram ainda outra coincidência em suas trajetórias: ambos estudaram Medicina e ambos trocaram a vocação, com jaleco e bisturi, pelo chamado da música e das letras.
O amor (com direito a suas emoções, traições, desesperos, transcendências, alegrias, utopias e contratempos), o desamor, o botequim, o futebol, as crenças, descrenças e nuances estiveram presentes nos versos dos dois criadores imortais como se eles tivessem combinado, como se separados por pelo menos uma geração (um nasceu em 1910, o outro em 1946), falassem a mesmíssima língua; e falavam, é claro: a transcendental língua dos gênios.
Numa época em que uma simples tuberculose matava, Noel Rosa bebeu muito sereno – sempre acompanhado de um bom traçado, um conhaque e a cervejinha de fé – e descuidou do peito. Num tempo em que o desprezo pela vida se tornou padrão nos destinos e na saúde dos brasileiros, Aldir Blanc foi impedido de continuar bebendo sua poesia e a transformando em esperança equilibrista. O primeiro está aqui, cento e tantos anos depois de nascido. O segundo também, cinco anos após sua partida.
E para todo o sempre, sempre estarão.
LUIS PIMENTEL ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)