QUANDO, ENFIM, CHEGUEI A BEIT RABAY

Vivi minha infância e adolescência em um universo muito cosmopolita numa Salvador, graças a Deus, bastante provinciana, porém, marcadamente, erudita. Sou filho de um casamento multicultural. Meu pai, Don Albino, era um espanhol, galego da aldeia de Xunqueiras, na Província de Pontevedra, e de mãe de origem libanesa, Dona Nelly, que passou a os primeiros anos de sua vida entre o País dos Cedros, em Zahlè, maior cidade cristã do Oriente Médio, e o Egito, no coração do bairro art-déco de Heliópolis, no Cairo. 

Meus irmãos e eu crescemos escutando os relatos de nossa casa, a Villa de Xunqueiras, a cerca de 20 quilômetros de Vigo, erguida em meio vários terrenos, com suas preciosas galerias envidraçadas, e um extenso gramado em declive no qual era mantida um pequeno rebanho de porcos e carneiros. E ouvindo, também, as mágicas histórias da zahliota Beit Rabay, ou seja, em árabe, Casa dos Rabay – sobrenome de raiz húngara de meu avô materno Aziz Josef. O casarão de três andares ocupa um quarteirão inteiro, no bairro de Santa Bárbara, no centro da cidade das uvas e dos poetas, onde, no seu amplo pátio interno, pernoitavam, ainda na década de 1930, os camelos trazidos pelos mercadores que vinham do Cáucaso, conduzindo carneiros para Beirute.

Minha mãe nos contava que adorava ver, ao entardecer, a chegada dos camelos – esses animais não eram habituais no nevado Mont Liban, que abraça Zahlè, diante do Vale do Bekaa, quase na fronteira com a Síria. A Espanha de meu pai Albino e o Líbano de minha mãe Nelly tinham, em comum o fato de terem sofrido, ambos, duríssimas guerras civis no século XX.

Permaneci dois meses em Beirute, cobrindo o conflito no Líbano, enviado da revista semanal Istoé, durante o recrudescimento dos confrontos, em 1982, quando, para além do envolvimento de libaneses, muçulmanos e cristãos, entraram em cena, diretamente, Israel, sob as ordens do General Ariel Sharon (1928 – 2014), a Síria, do ditador Hafez el-Assad (1930 – 2000), a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), comandada pelo egípcio Yasser Arafat  (1929 – 2004), assim como brigadas de iraquianos, líbios e mesmo de alemães pro-palestinos vinculados ao grupo terrorista de extrema-esquerda Baeder-Meinhof.

Eu sonhava então, ir a Zahlè conhecer Beit Rabay. Já havia visitado e me hospedado diversas vezes na casa de Xunqueiras desde os anos 1970.  Mas, em plena guerra, era excessivamente arriscado me deslocar até o Vale do Bekaa, que estava controlado por tropas sírias e palestinas. Só logrei visitar Beit Rabay, enfim, mais de 60 dias depois do término dos combates, no comecinho de janeiro de 1991, com ajuda do queridíssimo amigo Tony Kaddissi, um dos valorosos dirigentes das Forces Libanaises, e o apoio de Richard Jereissati, heroico chefe da resistência dos cristãos zahliotas.

A guerra havia acabado, mas o clima ainda era de muita tensão. Cheguei a Beit Rabay, construída no século XIX, acompanhado por um comando à paisana das Forces Libanaises numa velha Mercedes-Benz. Foi emocionante. Reencontrei grande parte da família de minha mãe e fui levado às margens do Rio al-Bardawni, que corta a cidade, descendo do Monte Líbano, para um inesquecível almoço libanês… Com quibe, cru, frito e assado, e tabule, criações da gastronomia zahliota, bem como todas as delícias da cuisine dos Cedros. Ilustra a coluna uma foto na qual apareço à beira do al-Bardawni por ocasião daquele banquete.

Só declinei, à mesa, quando uma de minhas tias, ofereceu-me um prato muito típico – o fígado de carneiro cru. Perguntou-me, surpresa, se minha mãe não havia me ensinado a apreciar a iguaria. Respondi que sim, entretanto, frito e acebolado. Cru, nunca.   

ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)   

Albino Castro é jornalista e historiador

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