
José Carlos de Vasconcelos, com Rui Pimenta e Hernâni Santos, na impressão da primeira edição de O Jornal
O Jornal de 1980, o ano das eleições presidenciais Ramalho Eanes–Soares Carneiro,é um exemplo de seriedade, profundidade e isenção informativa
O Jornal foi, além de tudo o mais, a concretização de uma espécie de sonho só realizável pela anterior concretização de um outro sonho ainda muito maior: o 25 de Abril e com ele a conquista da liberdade. Os jornalistas dignos desse nome foram vítimas diretas da instituição que, com a polícia política, constituiu o principal suporte da tirania: a censura à Imprensa. Abolida esta e todas as limitações à liberdade, embora surgindo problemas decorrentes de uma demagógica conceção de intervenção direta nos conteúdos jornalísticos dos trabalhadores não jornalistas das respetivas empresas, num clima propício a ousar a realização do antes impossível ou mesmo utópico, era chegado o momento: fazer um jornal que fosse propriedade dos próprios jornalistas. O que pressupunha constituir uma empresa que lhes pertencesse, forma de garantir a sua total autonomia e independência de qualquer poder. Foi isto que se visou, e conseguiu, com a constituição da Projornal para editar O Jornal – e logo se veria que mais
O texto antecedente, de Luís Almeida Martins (LAM), conta, factualmente, como foi. A opção por uma sociedade por quotas, e não uma cooperativa, deveu-se só a razões de operacionalidade. Houve quem comparasse o que se fez ao então mais avançado exemplo para garantir os direitos dos jornalistas: a “sociedade de redatores” do Le Monde. Mas pertencer a empresa aos seus jornalistas representou ir muito mais longe, foi único – e não só em Portugal…
Essa liberdade inteira de tentar fazer um jornalismo criativo, inovador, independente, num jornal concebido e dirigido, em todas as vertentes, só por nós, terá sido o que mais nos uniu. Sendo um posicionamento cívico democrático, inequivocamente comprometido com a Revolução de Abril um natural pressuposto (e havendo notória diversidade de posições políticas dos fundadores, nenhum tinha filiação partidária).
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Adiante, O Jornal está na rua. E é um êxito. Começando com um grafismo muito austero, vai evoluindo para manchetes com grandes títulos que em plena agitação revolucionária dão muito que falar. Com especial talento para os fazer, o Manuel Beça Múrias, um excelente jornalista e repórter. Como o Joaquim Letria, que logo no n.º 3 nos dá uma bela reportagem em Moçambique e uma entrevista com o alto-comissário, almirante Vítor Crespo. Este nº 3 de O Jornal é, aliás, exemplo de qualidade, diversidade e pluralismo: na página 2 temos uma entrevista com Otelo Saraiva de Carvalho e um texto de João de Freitas Branco sobre cultura; na página 3 uma crónica de José Gomes Ferreira sobre o Congresso de Escritores, e um artigo de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a Constituinte; e ainda a coluna, os Cadernos, de Fernando Namora. À frente, além do mais, um texto meu a defender “a unidade do essencial” no interior do MFA e das forças políticas progressistas – defesa que foi uma constante d’O Jornal, inclusive nas tais manchetes de capa –, e o cartoon do João Abel Manta.

João Abel era, com os seus extraordinários desenhos, uma das nossas marcas distintivas. Fazia-os para o Diário de Notícias quando eu estava na sua direção – e para a chefia de redação levei o Beça e o Silva Pinto, importantes primeiros impulsionadores do projeto d’O Jornal, e o Silva Costa, que nele entraria mais tarde. Pedi ao João Abel, e nem era preciso pedir, mudou-se connosco, como o Namora, o Zé Gomes e outros, a que viriam juntar-se o Abelaira, os Eduardos, Lourenço e Prado Coelho, e muitos mais: a qualidade e a diversidade de colunistas e cronistas sempre caracterizou O Jornal, como mais tarde a VISÃO.
A informação e a opinião do “jornal de jornalistas”, aberto e atento a todos os partidos, mas considerado mais próximo do MFA, desde o início foi influente e teve um generalizado reconhecimento. Também desde logo nos distinguimos por, de par com o semanário, ou como sua extensão, publicarmos uma série de Cadernos O Jornal, em formato e papel de revista, por exemplo, com entrevistas aos principais dirigentes do MFA e dos partidos. E alguns Guias, como o sobre as eleições legislativas de 1976.
Já em 1981 apareceram as Edições O Jornal, em que publicámos dezenas de grandes escritores (ver texto de LAM). Ao fim de 17 anos sem publicar, o José Cardoso Pires tinha um novo romance, achei que era ótimo para começarmos: com A Balada da Praia dos Cães, que venceu, por unanimidade do júri, o regressado Grande Prémio da APE, num ano de excelente produção literária, incluindo Memorial do Convento, de José Saramago. Ao lado da ficção e da poesia criámos outras coleções, de crónicas, reportagens, memórias, autobiografias, documentos, ensaios. Além de abrir três livrarias, duas em Lisboa e uma em Coimbra.
Nesse mesmo ano de 1981 começou a sair o JL, a quem davam seis meses de vida e ainda hoje “resiste”. Antes já lançáramos outras novas publicações – tudo diferente e nosso, isto é, não eram “licença” em Portugal de um título estrangeiro. Com destaque para o Se7e, que chegou a ser recordista de vendas; que aquando do então muito popular Festival da Canção reunia para o comentar um avultado número de conhecidos artista e jornalistas – jurados s também dos prémios que atribuía, os Setes d’Ouro. E a sua primeira “festa” encheu o Campo Pequeno, um assinalável êxito, com atuações do brasileiro Paulinho da Viola e de um novo grupo português que aí se lançou: os Trovante.
Neste domínio das iniciativas destaco, inovadoras e singulares, duas séries de Conferências Democráticas de O Jornal, ambas viradas para o futuro do País: Portugal, Anos 80 – O Quê, e Portugal, Horizonte Anos 2000. Nelas tiveram as intervenções de fundo os presidentes Mário Soares e Jorge Sampaio, e os principais líderes partidários – além de Soares, nas primeiras, Sousa Franco (quando substituiu Sá Carneiro), Álvaro Cunhal e Freitas do Amaral. Realizaram-se nos Teatros Roma e S. Luiz, repletos, inclusive nos corredores, com gente de pé ou sentada no chão – e entre esta, ainda de bigode, vê-se numa foto o então dirigente do PS, hoje secretário-geral da ONU, António Guterres… As Relações Portugal-África foram tema também de um alargado debate que promovemos entre estudiosos e políticos.
Por esta breve memória de parte do que fizemos se perceberá porque a partir de certa altura tivesse passado a falar de um “projeto jornalístico, cívico e cultural”. De facto, além da Projornal/O Jornal ter sido, desde o 25 de Abril até, pelo menos, os primeiros anos da década de 1980 o mais dinâmico e inovador grupo de comunicação social, distinguiu-se por essa tripla dimensão.
Dimensão durante muitos anos bem visível nas páginas do próprio jornal, mormente nos dias “escaldantes” do PREC e na transição dos anos 70 para os 80. Fizemos uma cobertura única de vários importantes acontecimentos – graças também, além dos já referidos, a magníficos jornalistas/repórteres como Cáceres Monteiro, de escrita absolutamente ímpar como Fernando Assis Pacheco, contadores de histórias como Afonso Praça, etc., etc. O Jornal de 1980, o ano das eleições presidenciais Ramalho Eanes-Soares Carneiro, é um exemplo de seriedade, profundidade e isenção informativa, por um lado, sem prejuízo de, por outro, ao nível opinativo – e nesse caso até em editorial: independência não é neutralidade – de considerar melhor para o País um dos candidatos, Eanes. E sem prejuízo de, mesmo ao nível opinativo, se praticar o pluralismo: por exemplo, um artigo de página inteira de apoio a Soares Carneiro, do Adelino Amaro da Costa, nº 2 do CDS e nosso colaborador de sempre.
Decerto não por acaso foi nesse ano que ultrapassámos o Expresso e passámos a ser, segundo a Marktest, o jornal português (semanal ou diário) de maior expansão. A evolução posterior conheceu várias fases e sofreu, designadamente, as consequências de o poder do dinheiro ter voltado a ser cada vez mais determinante/dominante na comunicação social. E nós, grupo de O Jornal, propriedade de jornalistas, tendo êxito e sendo rentável, mas nunca tendo tido uma gestão empresarial especializada, não devíamos nem queríamos dever nada a ninguém, mas não tínhamos “dinheiro” para os investimentos necessários para novos projetos. Entre eles destaco os de um diário “popular”, tabloide, mas não de crimes e escândalos, e um diário de referência, O Mundo, antes da existência de O Público: tivemos registado o título e assegurado o exclusivo de Le Monde.
É certo que bastante longe do apogeu e perante uma “concorrência” mais forte, ainda que não numa perspetiva apenas jornalística, mas, repito, sem dívidas; com metade da TSF-Rádio Jornal, que fundámos com uma cooperativa de profissionais, e mais duas estações de rádio, no Porto e em Lisboa; em segunda posição, após o grupo de Pinto Balsemão, no projeto inicial, uma sociedade em cascata, do que seria a SIC; com sete “instalações”, mais de 2000 m², na Avenida da Liberdade e na paralela Rodrigues Sampaio, o que nesse tempo de “trespasses” representava um avultado valor – decidiu-se procurar um parceiro que tivesse dinheiro, know-how, mormente em gestão e tecnologia, e respeitasse a continuação da nossa autonomia editorial.
Daí para a frente é toda uma outra longa, e por vezes não linear, história. Para o que agora interessa, além do que LAM escreve atrás, recordo que, quando fomos a Lausanne falar com ele, o Pierre Lamunière nos disse que rádio e televisão é coisa que não queriam. Quanto ao que pretendíamos fazer na imprensa, depois veríamos. Acabaram, embora sempre amigos e simpáticos, por arrastar, impedindo que se fizesse alguma coisa – exceto, no final, um diário popular, mas nada correspondente ao projeto que eu apresentara, como diretor de edições (só transitório, forçado, presidente da administração…). Diário que foi o flop que levou à venda do belo edifício da Praça do Marquês de Pombal, o “centro” de Lisboa, e à associação da Edipress com os grupos Impresa e Abril.
Bom, mas quanto a O Jornal houve convergência/concordância entre os suíços e nós para o transformar, ou melhor: substituir, por uma revista. Que mantivesse os valores profissionais, éticos e deontológicos, de O Jornal, mas com uma nítida modernização, renovação de quadros (houve uma espécie de concurso, com 650 candidatos iniciais), grande campanha de lançamento e de assinaturas. O lançamento mostrou o geral reconhecimento do que O Jornal representou e o respeito que por ele se mantinha, e mostrou a esperança/confiança no que a VISÃO seria. De facto, estiveram presentes praticamente todas as principais figuras do Estado, a começar pelo Presidente Mário Soares, e das diversas forças políticas. Além de escritores, artistas, sindicalistas, empresários – por exemplo, Amália Rodrigues e Jorge Amado, o que muito impressionou os nossos amigos suíços.
Um jornal que sabe acabar assim é porque tem visão, como se escreveu. E hoje, quando se assinalam os 50 anos de O Jornal, creio que se pode e deve dizer, com propriedade: felizmente há VISÃO. E espero,
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELLOS ” REVISTA VISÃO” ( PORTUGAL).