
CHARGE DE AROEIRA ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
O cenário está montado para a tragédia nossa de cada dia: como lidar com a violência simbólica que não para de crescer?
Segurança Pública como guerra: origens do projeto
Dedicarei dois artigos ao tema da Segurança Pública no governo de São Paulo. A complexidade do tema e sua relevância eleitoral em 2026 exigem esse cuidado. Começarei recordando a origem do fenômeno, que antecede em muito a emergência das redes sociais, embora com elas tenha alcançado uma expansão inédita.
Conto com a sua leitura dos dois textos?
A estrutura
A extrema direita transnacional segue ao pé da letra uma cartilha feita sob medida para uma ordem política forjada pela onipresença do universo digital. Recordemos que dois mecanismos são dominantes na dinâmica das redes sociais.
De um lado, o contágio mimético é a respiração artificial das plataformas. O comportamento favorecido pela lógica do algoritmo implica na reiteração das primeiras interações mantidas pelo usuário. Posso ser mais claro: o fenômeno da multiplicação infinita de bolhas; mônadas cognitivas que mantêm centenas de milhões de pessoas reféns em todo o mundo contemporâneo, é decorrência da própria estrutura da operação do algoritmo, que tem a mímesis como móvel. Vale dizer, a o jogo da imitação é a essência desse procedimento.
(Num outro artigo tratarei da Teoria Mimética, tal como desenvolvido pelo pensador René Girard, que permite um entendimento radicalmente novo do momento presente.)
De outro lado, a multiplicação de bolhas não pode senão manter o sistema em tensão permanente, numa espiral que não conhece limites para sua expansão. A escalada de violência simbólica opera em duplo registro, numa perversidade de eficiência ímpar. Em primeiro lugar, o ruído provocado pela virulência dos intercâmbios que caracteriza o universo na ponta dos dedos favorece a monetização das plataformas, pois captura a atenção dos usuários. Em segundo lugar, a agressividade linguística reforça o pertencimento a grupos fechados, impermeáveis a fatores externos.
O cenário está montado para a tragédia nossa de cada dia: como lidar com a violência simbólica que não para de crescer? A cultura do cancelamento, ou seja, a sucessão vertiginosa de linchamentos virtuais é a ressurreição do meio mais arcaico encontrado pelo homo sapiens para enfrentar crises miméticas: o mecanismo do bode expiatório. Aqui, o nó górdio, a condição sine qua non: em momentos agudos, a solução adotada em crises de origem mimética é a contenção da violência de todos contra todos por meio de sua canalização contra uma única pessoa ou um grupo determinado. Numa fórmula elegante, a violência deixa de ser dispersa, pois agora é a violência de todos contra um: o bode expiatório.
Mais uma vez: a Teoria Mimética tem muito a dizer ao mundo contemporâneo. Aguardem.)
Bandido bom é bandido morto: antecedentes
Eis como os caminhos se encontram com potência inesperada: encarar a política de Segurança Pública como uma guerra civil não declarada reúne de forma poderosa o pior das redes sociais com o pior da formação social brasileira. Não se esqueça que a cultura do cancelamento é a outra face da celebração do “CPF cancelado” nos programas televisivos do “mundo cão”.
Aliás, o potencial dessa visão bélica do mundo sempre esteve associado à política no Brasil. “Bandido bom é bandido morto” é um lema cunhado em campanha eleitoral na década de 1980 pelo lendário delegado José Guilherme Godinho, mais conhecido como Sivuca. O policial tornou-se deputado estadual por várias legislaturas graças à difusão quase imediata de sua “proposta” para o caos da segurança pública: punitivismo rigoroso e desprezo pela pauta dos Direito Humanos.
Membro da “Scuderie Detetive Le Cocq”, Sivuca esteve envolvido na execução de Cara de Cavalo, cujo corpo assassinado ocupa o centro da célebre bandeira de Hélio Oiticica que carrega a frase “Seja marginal, seja herói”. Acusado de matar o delegado Milton Le Cocq d’Oliveira, ele foi morto em outubro de 1964. O episódio deu origem ao Esquadrão da Morte, formalmente criado em 1965. Ativo até o início dos anos 2000, o Esquadrão Le Cocq somente foi parado por uma decisão da Justiça Federal.
É isso mesmo que você leu: a Scuderie Le Cocq não se manteve sempre nas sombras; pelo contrário, chegou a formalizar suas atividades, numa distorção completa da ideia mesma de segurança pública:
A Scuderie Le Cocq foi fundada na ditadura militar no Rio de Janeiro, com o objetivo de vingar a morte do detetive Milton Le Cocq e de outros policiais. Seu símbolo é o mesmo dos esquadrões de morte: uma caveira, duas tíbias e as iniciais EM.
No Espírito Santo, chegou a ser formada por, pelo menos, 800 associados, entre policiais civis, militares, advogados, delegados de polícia, juízes, promotores, coronéis e políticos.[1]
É claro que o grupo se sentia autorizado pelo regime de exceção tornado regra, isto é, sem a longa noite da ditadura militar, a Scuderie Le Cocq jamais teria tido o grau de articulação de que disfrutou por décadas. Durante a campanha eleitoral do delegado Sivuca, a cidade do Rio de Janeiro teve seus postes colonizados por cartazes que afirmavam orgulhosamente, “Bandido bom é bandido morto”. Nesse contexto, a escolha do policial militar Guilherme Derrite para coordenar a Segurança Pública em São Paulo leva adiante o “modelo Sivuca”, agora exportado para a maior megalópole da América Latina. Em tal atmosfera de guerra civil, o fato de que o oficial das “Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar” (ROTA) tenha sido afastado por excesso de letalidade em nada o desmerece; na verdade, opera efeito oposto, tornando-se antes um sinal de distinção. Daí, numa repetição do êxito eleitoral do delegado Sivuca, Guilherme Derrite foi eleito deputado federal em 2018 e 2022, da última vez com o dobro dos votos da primeira candidatura.
Conhecemos outro exemplo similar oriundo do Rio de Janeiro, não é mesmo? Respire fundo: essa trajetória recorda a carreira de Jair Messias Bolsonaro. O governador carioca de São Paulo, Tarcísio de Freitas, portanto, não precisou ir muito longe para encontrar seu modelo na área da Segurança Pública e escolher seu secretário.
(Nem preciso mais lembrar: na próxima semana, concluo a longa série dedicada a dissecar o projeto de pinochetização representado pelo governador Tarcísio de Freitas.)
[1] Gabriela Ribeti. “Justiça Federal determina extinção da Scuderie Le Cocq”. Consultor Jurídico, 11 de dezembro de 2004: https://www.conjur.com.br/2004-dez-11/justica_federal_determina_extincao_scuderie_le_cocq/.
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)