
CHARGE DE FERNANDO BRUM
Estas colunas são escritas por um agnóstico preocupado em entender sua longa jornada para se tornar um crente.Autoritários não gostam disso.A prática do jornalismo profissional e crítico é um pilar fundamental da democracia. É por isso que incomoda aqueles que se acham donos da verdade.Hoje mais do que nunca
Na coluna anterior da edição especial da PERFIL em homenagem ao Papa após sua morte, tentando entender a metáfora do céu, perguntei onde Francisco estava agora. Refleti sobre o pai que morreu pela psicanálise, mais vivo do que nunca, introjetado em nós. E com otimismo epistêmico conjecturei que o corpo de Bergoglio permaneceu em Roma, mas Francisco agora está entre todos os argentinos, mesmo aqueles que o denegriram, porque sem sua presença carnal, suas ideias permanecem mais poderosas do que nunca.
Durante a reportagem que Francisco queria que fosse o mais longo da história, perguntei-lhe repetidamente sobre as contradições entre a ciência e a Bíblia, e na terceira vez que perguntei sobre o inferno, ele reclamou: “O inferno de novo!” mas acrescentou uma explicação quase freudiana: está dentro de nós; então também seu paraíso ou céu. Ele disse literalmente: “O inferno não é um lugar, mas um estado, há pessoas que vivem no inferno continuamente.”
Hoje vamos nos concentrar em outro tópico complexo: o Espírito Santo e sua relação com o que os agnósticos consideram os conceitos de destino e fatalidade. Não posso deixar de me perguntar como esse homem comum, Jorge Bergogoglio, nascido no fim do mundo, se tornou papa. E o que é mais importante, ele se tornou algo ainda maior que um papa, um líder moral mundial no estilo de Gandhi (humilde e modesto, defensor dos rejeitados, reconciliador e reformador ao mesmo tempo).
Tanto no hinduísmo quanto no catolicismo, o conceito de livre-arbítrio coexiste com o de predestinação. A noção de destino como potencial: temos diferentes destinos possíveis e somos moralmente responsáveis pelas decisões que tomamos (e suas consequências: carma). Não como em outros movimentos religiosos em que Deus decretou tudo o que nos acontecerá. Santo Tomás de Aquino afirmava que “Deus, estando fora do tempo, conhece as nossas livres escolhas sem necessariamente determiná-las”.
Embora a sorte, diferentemente do destino, fosse algo aleatório em antigas religiões politeístas, como a dos antigos gregos, a sorte seria aleatória, mas não arbitrária, pois seria resultado da vontade dos deuses a quem era concedida. Fortuna era a deusa romana da sorte e Tyche a deusa grega da sorte.
Para os católicos, o Espírito Santo não substitui o livre-arbítrio, ele o complementa. E situações adversas da vida podem fazer parte do processo de ascensão espiritual do ser humano. “O Espírito Santo não anula a liberdade de escolha, mas a enriquece e a fortalece.” O destino não seria algo rígido: “O Espírito Santo não força nem controla a vontade humana, mas a move e a persuade, guiando-a para a verdade e a santidade”.
Desde o início do papado de Francisco, eu me perguntava por que até mesmo a expressão em seu rosto havia mudado, da carranca predominantemente sombria que ele tinha quando era arcebispo de Buenos Aires para o sorriso eterno que ele tinha em Roma. Em Buenos Aires ele sofreu, contou à melhor e mais próxima amiga de Bergoglio, a jornalista Alicia Barrios, na Rádio Perfil (veja bit.ly/mejor-amiga-francisco). Os bispos sempre me disseram que era o Espírito Santo. Não apenas o sorriso, mas a transformação de um homem normal – repito – naquele guia espiritual universal a quem o mundo hoje se detém para prestar homenagem.
“Quando um raio de luz incide sobre eles, eles se tornam resplandecentes e espalham outro brilho por conta própria. Assim, as almas que carregam o Espírito, iluminadas pelo Espírito, tornam-se espirituais e irradiam graça aos outros”, afirma a doutrina católica.
O próprio Francisco contou inúmeras vezes que durante o conclave, quando os votos estavam sendo lidos e tudo indicava que ele seria eleito papa, o cardeal ao seu lado lhe disse: “Não se preocupe, o Espírito Santo o guiará”. Mas será que é assim tão “fácil”? O papa eleito se torna um homem sábio, como disse Lacan, porque o hábito faz o monge?
Para a Igreja Católica, é a pessoa que “deve seguir a parte do caminho que está em seu poder seguir, que consiste em purificar a alma”, enquanto do lado divino ela é provida da ajuda do Espírito Santo.
Isso, desculpem-me se parece blasfêmia, me lembra de um famoso e bem-sucedido jogador de golfe argentino que teria dito que “quanto mais treinava, mais sorte tinha”. Nos meus relatórios, costumo perguntar a pessoas bem-sucedidas se elas acreditam em sorte, e a maioria delas responde que sim, assim como quando perguntei aos ganhadores do Prêmio Nobel se eles acreditavam em Deus, a maioria deles também respondeu que sim.
A etimologia da palavra espírito vem de ar, daí o sopro dado pelos ventos favoráveis, o “sopro de Deus”. A morte de Francisco coincidiu com o 80º aniversário da libertação de Auschwitz, e vale lembrar que o judaísmo também inclui o Espírito Santo, que se aproxima de algumas almas “para transmitir certas disposições que as aperfeiçoam”. Segundo Isaías, existem sete dons: temor a Deus, sabedoria, entendimento, conselho, piedade, fortaleza e conhecimento.
Supostamente, foi isso que aconteceu com Jesus quando ele foi batizado no Rio Jordão por João Batista: “No momento do batismo, o Espírito Santo desceu sobre Jesus na forma de uma pomba”, o símbolo da foto clássica do Vaticano de Francisco com uma pomba pousada em sua mão na Praça de São Pedro.
“O Espírito Santo, quando habita numa pessoa, purifica-a elevando-lhe a condição moral. Nesse sentido, a pessoa é ‘santificada’ pela Sua ação.”
Também sem determinismo, para Hegel, o pai da dialética moderna, na Fenomenologia do Espírito, o conceito de livre-arbítrio coexiste com o de predestinação, havendo uma ascensão e purificação da matéria tornada consciência no que chamamos de história. A “astúcia da razão” (outra forma do Espírito Santo?) que leva as sociedades a escolherem os corpos adequados para que a evolução continue seu curso, mesmo os negativos, que só podem ser compreendidos a posteriori.
Talvez aquele papa argentino eleito fosse o corpo que a Igreja — e o mundo — precisava para seguir seu curso. Como disse Albert Einstein, parece que “Deus não joga dados”.
JORGE FONTEVECCHIA ” JORNAL PERFIL” ( ARGENTINA)