
Considerações a partir do livro “L’avventura d’un povero Cristiano”, de Ignazio Silone.
1.
Embora não haja unanimidade a respeito do assunto, alguns críticos literários identificaram como sendo do Papa Celestino V a alma daquele que, por covardia, “no alto estando / se viu grã renúncia praticar”, a que Dante Alighieri aludia no III canto do “Inferno”. Os defensores dessa interpretação alegam que a abdicação de Celestino V do Papado abriu caminho ao cardeal Benedetto Caetani, que ocupou o trono de Pedro sob o nome de Bonifácio VIII. Propugnador ferrenho da soberania eclesiástica, à qual pretendia submeter o poder temporal de reis e príncipes, o cardeal Caetani, depois de eleito Papa, apoiou a vitória da facção guelfa dos Negros sobre a dos Brancos. Esse acontecimento levou ao exílio, em 1302, o autor de A divina comédia, que colocou Bonifácio VIII entre os simoníacos, no XIX canto do “Inferno”.[1]
Ao contrário do cardeal Caetani – para quem o poder eclesiástico era plenitudo potestatis, isto é, pleno, ilimitado, por emanar diretamente de Deus –, Celestino V (um monge beneditino, em sua origem, que levou uma vida eremítica) acreditava na christianitas, ou seja, na comunhão dos fiéis como base da comunidade católica. Duas visões opostas sobre o papel da Igreja, mas ambas anacrônicas, pois ainda ligadas a concepções medievais, num período em que começava a anunciar-se a formação das nações modernas, com o velho mundo feudal encaminhando-se para o ocaso ao defrontar-se com novas aspirações sociais e novos valores culturais, como afirmou Ignazio Silone em L’avventura d’un povero cristiano [A aventura de um pobre cristão].
Celestino V e Bonifácio VIII são o protagonista e o antagonista da penúltima obra narrativa do escritor italiano (1900-1978), lançada em 1968. Livro difícil de ser classificado, L’avventura d’un povero cristiano divide-se em duas partes – uma, mais ensaística; outra, dialógica –, seguidas de notas explicativas sobre personagens e fatos focalizados.
Na primeira parte, intitulada “Quel che rimane” [O que resta][2], o autor explicita como e por que iniciou sua pesquisa, fala dos caminhos que percorreu nas pegadas de Frei Pietro Angeleri (ou Pietro del Morrone, futuro Papa Celestino V), refere-se às bibliotecas públicas e conventuais que frequentou para documentar-se sobre a utopia dos que pregavam a volta às origens do cristianismo, explicita sua postura diante da Igreja, da qual se afastou sem abjurar sua fé, em virtude da ideologia desta enquanto instituição: “Não mais, portanto, a mensagem do Pai para os filhos, todos os filhos, límpida luz natural descoberta ao nascer, bem comum, verdade universal, evidente, irresistível para qualquer inteligência em boa fé; mas produto histórico complexo, fruto de uma determinada cultura, ou antes, amálgama de várias culturas, elaboração milenar de uma comunidade fechada, em permanente labuta interna e lutando e concorrendo com outras. Em suma, considerando-a com benevolência: uma nobríssima, uma veneranda superestrutura. Mas como fica o pobre Cristo numa superestrutura?”.[3]
A segunda é formada pela reconstituição do penúltimo ano de vida de Pietro Angeleri, ou antes, dos períodos imediatamente anterior e posterior a seu pontificado e dos cinco meses (5 de julho–13 de dezembro de 1294) em que foi Papa. É nesta parte, intitulada “L’avventura d’un povero cristiano”, que a narrativa cede lugar à escrita teatral.
Transformada em peça, encenada pelo diretor de cinema Valerio Zurlini, entre 3 e 9 de agosto de 1969, durante a XXIII Festa del Teatro em San Miniato (Toscana) e publicada em 12 de setembro daquele mesmo ano pela revista Il dramma, a obra propunha, segundo Giammario Sgattoni, “‘a costumeira história’ de Silone, o seu lembrar a nós que ‘Deus criou as almas, não as instituições’, e quando estas oprimem e traem, todo homem honesto está empenhado em abrir caminho à verdade”.
L’avventura d’un povero cristiano, em que os contrastes morais e intelectuais entre as pessoas têm um peso maior do que o cenário histórico, era o segundo texto teatral do autor, o qual já havia escrito Ed egli si nascose [E ele escondeu-se], publicado na Suíça em 1944, que pode ser considerado um prenúncio da peça posterior.[4]
2.
O drama, que integra a obra narrativa, compõe-se de três “tempos”, como os designa o autor: denominação apropriada, pois a história, para concentrar-se nos momentos cruciais, procede por elipses temporais, sendo os demais fatos recuperados nos diálogos. Cada ato é formado por quadros e cenas, as quais recebem um título que funciona como um resumo dos acontecimentos narrados pela peça.
O primeiro ato desenrola-se na região montanhosa dos Abruzos e divide-se em dois quadros. O primeiro quadro, que se subdivide em sete cenas,[5] passa-se em Sulmona, em maio de 1294, e relata a viagem dos freis Ludovico, Berardo, Tommaso e Clementino até aquela pequena cidade, onde contam encontrar-se com Pietro del Morrone. Os frades são acolhidos pelo tecelão Matteo e sua filha Concetta, os quais são admoestados por um guarda e pelo cura, Dom Costantino, sobre a hospitalidade oferecida, uma vez que, na época, muitos religiosos eram procurados pelos tribunais eclesiásticos por sua insubordinação à autoridade da Igreja.
Dentre estes rebeldes estava Pietro da Fossombrone, que Pietro Angeleri esperava rever quando vai ao encontro dos quatro franciscanos observantes.[6] Conhecido mais tarde como Angelo Clareno, Pietro da Fossombrone era um dos divulgadores do “autêntico pensamento de São Francisco”, isto é, da observância da pobreza absoluta, no qual os cardeais da Cúria romana “viam um perigo para seus privilégios e os de suas famílias”, latifundiárias, usurárias e ávidas por maiores riquezas, como pondera Frei Ludovico.
A intervenção de Pietro del Morrone evita que o bailio[7] cobre do tecelão o pagamento (com juros) de algumas gamelas de favas oferecidas a sua filha pela empregada do barão. Antes da chegada do frei ermitão, os presentes estavam lembrando que, desde a morte do Papa Nicolau IV, em 1292, o trono de Pedro continuava vacante, pois o conclave dos cardeais – reunido em Roma, Rieti (Lácio) e Perúgia (Úmbria), desde então – não conseguia chegar a um consenso, dividido e dominado como estava por duas grandes famílias: os Colonna (gibelinos) e os Orsini (guelfos).
Subdividido em duas cenas,[8] o segundo quadro tem como cenário a Ermida de Santo Onofre. Estamos no mês de julho, e com a conclusão do conclave, considerada “milagrosa”, depois de vinte e sete meses de dissídio entre os Colonna, os Orsini e os Caetani, Pietro Angeleri foi eleito Papa e será coroado na basílica de Santa Maria di Collemaggio, em Áquila (Abruzos), como ele determinou.[9]
O que pesou na sua escolha, na verdade, foi a intervenção do cardeal Caetani e de Carlos II, soberano do Reino de Nápoles. Apesar de suas dúvidas, para não pecar de covardia e para não descrer na ajuda do Espírito Santo, Frei Pietro aceita o cargo, na esperança de que a Santa Sé possa voltar a ser um “um centro de paz e de fraternidade”.
O segundo ato, dividido em onze cenas,[10] passa-se em outubro de 1294, num castelo de Nápoles, cidade que Celestino V escolheu como sede de seu Papado, por ser contrário ao luxo da Cúria romana e às funções de chefe do estado pontifício. É o momento central da peça, o do embate entre duas concepções de Igreja.
O entusiasmo da população é grande, mas é grande também o escárnio dos que não entendem a simplicidade e a falta de sede de poder de Pedro Celestino. O Papa está decepcionado com as ordens religiosas mais pobres, às quais concedeu muitos privilégios, pois estas pedem cada vez mais e já não parecem almejar, como ele, “aquela volta ao modo de viver cristão, à pobreza e à simplicidade evangélica”. Ao receber os sacerdotes, pede-lhes que, ao pregar, escolham vocábulos simples, pois “a palavra de Deus se dirige a todas as criaturas e, particularmente, aos mais humildes”, recordando-lhes, ainda, que sirvam de exemplo a suas comunidades, porque o cristianismo se expressa antes por como se vive do que pelo que se diz.
A ingenuidade e a inexperiência de Pietro Angeleri nas intrigas palacianas da Igreja haviam-no levado a assinar documentos cujo conteúdo nem sempre entendia, uma vez que seu latim se limita ao da missa e das Sagradas Escrituras.
Arrependido dos erros cometidos e vendo-se perdido no emaranhado dos problemas a serem resolvidos, pede conselho a Benedetto Caetani, embora ciente de que, para este, a supremacia política da Santa Sé é tudo, enquanto para ele é nada, uma vez que continua ligado ao Pai Nosso e ao Evangelho: “Nas parábolas de Evangelho, o senhor sabe disso tanto quanto eu, as relações entre os homens são sempre pessoais e diretas. Há sempre um pai com os filhos e os criados; o dono do vinhedo com os vinhateiros; o pastor com as ovelhas e os cordeiros, e assim por diante; nunca há relações indiretas e anônimas, ou fingidas, ou então, como o senhor diz, convencionais. Por isso, peço-lhe desculpa se eu não sei conceber relações cristãs que não sejam relações pessoais; quero dizer, não relações de coisas, mas de almas”.
O Cardeal Caetani, que já havia lhe sugerido aceitar as convenções do estado pontifício, pois: “Nenhuma grande administração política, militar ou religiosa pode ser governada como uma família ou uma pequena comunidade. Há uma diferença enorme. Toda grande administração, para funcionar regularmente, precisa de certa dose de fingimento, sem a qual seria o caos” –, diante da candura do Papa rebate que “a Igreja, em seu conjunto, agora é uma potência, aliás, a mais alta das potências, e deve regular-se como tal. Não se governa com o Pai Nosso”.
A falta de ambição de Celestino V, que poderá acarretar sérias consequências para a Igreja, preocupa o cardeal, o qual, no entanto, vê com bons olhos seu afastamento de Carlos II, depois que o Papa se recusa a abençoar o exército real prestes a partir para a guerra. O ajudante do rei havia tentado dissuadi-lo, lembrando-lhe que “o trono e o altar” sempre se auxiliaram mutuamente: “a Igreja pode precisar do braço secular contra as heresias. Por outro lado, nenhum estado seria capaz de manter a ordem pública se os súditos parassem de ter um sacro terror do inferno, e essa função, obviamente cabe à Igreja”.
Cada vez mais saudoso de sua vida eremítica, Pedro Celestino reluta em receber Benedetto Caetani, que já está confabulando para tornar-se o próximo Papa e exulta com a insinuação de que o pontífice poderá renunciar a seu mandato. No dia da abdicação, o Cardeal Caetani manda avisar Celestino V de que o consistório[11] não se oporá a seu ato, embora esteja preocupado com os bispos franceses que poderiam não aceitar a decisão, o que levaria a Igreja a ter dois Papas: o atual (mesmo contra sua vontade) e o escolhido pelo novo conclave.
Oferece-lhe sua casa em Anagni, pois “um ermitão pode até dormir debaixo das pontes, não um Papa e nem mesmo um ex-Papa”, mas os frades leais a Pietro Angeleri têm outros planos. Populares pedem ao sumo pontífice que não os abandone, mas este sabe que o povo pode ser manipulado e leva adiante seu propósito: pronuncia a fórmula da abdicação, despe-se dos símbolos do poder eclesiástico (o anel, a mitra, a estola e o manto) e torna a vestir o modesto hábito dos eremitas. Conforme explica Frei Ludovico a um coroinha, sua renúncia “não é uma fuga, é um ato de coragem, um gesto de lealdade para consigo mesmo e para com os outros”. A aventura de Pietro del Morrone, no entanto, ainda não havia terminado.
3.
O terceiro ato desenrola-se em três espaços diferentes. O primeiro quadro, que se divide em três cenas,[12] leva-nos de volta a Sulmona, em janeiro de 1295. Pedro Celestino, procurado tanto pelos agentes de Bonifácio VIII quanto pelos franceses, está escondido no fundo de um despenhadeiro quase inacessível, na companhia de alguns de seus fiéis seguidores. Um falso peregrino chega ao abrigo e, consequentemente, os que ajudaram o ex-Papa Celestino em sua fuga são detidos. Na prisão, onde aguardam a presença do teólogo inquisidor, o bailio pede a Frei Bartolomeo que tente avisar o ermitão do perigo que corre.
No quadro seguinte, dividido em duas cenas,[13] passamos para Vieste, uma cidadezinha localizada no promontório de Gargano (Apúlia), de onde Pedro Celestino tentará em vão alcançar a Grécia via mar. Apesar de todas as precauções, seu esconderijo havia sido descoberto. Ao saber que está prestes a ser capturado, Pietro Angeleri rende-se no dia 16 de maio de 1295 e é levado para Cápua (Campânia) pelo condestável[14] do Reino de Nápoles, sendo depois entregue à Igreja.
O terceiro quadro desenvolve-se em duas cenas,[15] no Lácio, e nele, assistimos à última conversa entre o novo Papa e seu antecessor, em que ambos reafirmam o próprio ponto de vista sobre o papel da Igreja. Estamos no Palácio dos Caetani em Anagni, cidade natal de Bonifácio VIII, antes de Pedro Celestino ser levado para a prisão no topo do penedo de Fumone, onde falecerá em 19 de maio de 1296. Naquela fortaleza, “as celas dos prisioneiros tinham apenas o tamanho de um túmulo, nelas se entrava agachados e não havia janelas”, como lembra Frei Tommaso a outros seguidores de Celestino, os quais, reunidos na cidadezinha para excogitar o meio de salvá-lo, se desesperam ao saber de seu triste fim.
L’avventura d’un povero cristiano, aparentemente, foge às características das obras ficcionais silonianas – que versam sobre fascismo, Segunda Guerra Mundial e pós-guerra –, por não tratar de um assunto contemporâneo. A “metáfora histórica”, no entanto, serve ao escritor para continuar a focalizar a temática que lhe era cara: “a condição do homem na engrenagem do mundo atual”, conforme declaração transcrita por Claudio Marabini. Por isso, não importa o período em foco, pois sua atenção, como de costume, está voltada para os que lutam a fim de que a voz da própria consciência não se cale diante do poder, de qualquer poder, seja ele laico ou eclesiástico.
Para Ignazio Silone, existem duas igrejas: a católica e o partido comunista, cuja estrutura fechada não diferia muito da primeira. Se Pedro Celestino refutava a pompa da Cúria romana, preconizando “o desapego às coisas vãs do mundo” e a volta às origens do cristianismo, fiel, portanto, “à pura ‘substância moral’ e ao amor pelos pobres” (nas palavras de Marabini), era para que fosse superado, como lembra Frei Ludovico a Dom Costantino, na parte inicial da peça, “o abismo cavado pela degeneração de sua Igreja e pela traição ao espírito de São Francisco da parte de muitos que a ele se reportam.
A traição tornou-se possível graças à ajuda do Papa, dos bispos e dos padres”. O autor, por sua vez, contestava o dogma comunista, recusando o totalitarismo leninista-stalinista, por sentir-se, segundo Alessandro Bresolin, “a serviço do homem e não da engrenagem”. Embora estivesse dentre os fundadores do Partido Comunista da Itália, em 1921, e tenha sido uma peça-chave de seu aparato (chegando a ser o braço direito de Palmiro Togliatti), dele foi expulso dez anos depois.[16]
Considerando-se “socialista sem carteirinha e cristão sem igrejas” (conforme registrado por Alessandro Bresolin),[17] o escritor continua fiel ao socialismo, entendido não como “tecnocracia”, mas antes enquanto “antropocracia”, o que evidencia a “evolução libertária de seu pensamento”, na opinião de Alessandro Bresolin. A respeito disso, vale assinalar que, na peça, os franciscanos defendem a “sancta nichilitate” (como a denominou Jacopone da Todi[18]), ou seja, a anarquia, um “modo de viver juntos, segundo a caridade e não segundo as leis”.[19]
Para Ignazio Silone, o socialismo, em seu sentido lato, era um “movimento de emancipação confiado tão-somente à ação direta dos trabalhadores, em contraste com o Socialismo estatólatra e paternalista”, como escreveu na carta de 1950. Por isso, ao defender uma “terceira frente” internacional, que se opusesse tanto ao modelo comunista da União Soviética quanto ao esquema capitalista dos Estados Unidos, repudiava os grandes movimentos de massa, como transparece em L’avventura d’un povero cristiano, na voz de Frei Ludovico: “Uma grande comunidade é uma máquina perigosa, quase diabólica, mesmo para os que fazem parte dela. A experiência mostra que a grande comunidade gera espontaneamente aspirações de poder, vontade, jamais de todo saciada, de sucessos e triunfos. Com o nobre objetivo de servir de incremento para a comunidade, são aceitos constantes compromissos e acomodamentos. […] À medida que a comunidade se expande, torna-se, portanto, fatal que ela se pareça com a sociedade que a circunda”.
Ao transformarem a política em espetáculo, os grandes movimentos de massa, nada mais haviam feito do que repetir a estrutura do Partido Nacional Fascista (conforme Bresolin) e, nesse aspecto, católicos e comunistas se equivaliam, pois privilegiavam o bem-estar material em detrimento de outros valores, na opinião de Ignazio Silone (Cronache della steppa [Crônicas da estepe]): “Igreja e Partido Comunista, no campo, são dois vasos comunicantes. […] A principal concorrência entre essas duas grandes instituições se dá, no plano local, na base de diversões e brindes. […] Isso demonstra a confiança depositada por esses padres na graça divina e por esses comunistas na consciência de classe do proletariado. Mas, considerar esses católicos crentes e esses comunistas ateus é apenas uma maneira de dizer convencional, sem mais fundamento algum: estes ferozes antagonistas políticos, se refletirmos bem, são feitos da mesma matéria, são movidos pelos mesmos instintos, têm as mesmas aspirações, acreditam nos mesmos valores, sonham com a mesma coisa: vencer na loteria esportiva, ser rico sem trabalhar”.
Recusando etiquetas como “direita” e “esquerda”, que considera arbitrárias, Ignazio Silone – em textos como La missione del socialismo [A missão do socialismo], Un’opinione sul romanzo (la necessità di testimoniare) [Uma opinião sobre o romance (a necessidade de testemunhar)] e Scrittori, società, Stato [Escritores, sociedade, Estado] – bate-se pela liberdade de testemunhar, isto é, de poder contar as coisas como elas são, sem amarras ideológicas, ciente da marginalização que um artista ou um cientista poderia sofrer ao abraçar a causa da humanidade e não a de um Estado ou de um partido: “Colocar-se a serviço do Estado terrorista significa, para um escritor, estar fora ou contra a sociedade. Para um escritor não existe traição pior. […] Nenhuma razão de Estado pode identificar-se alguma vez com a causa do homem. Temos que nos ocupar do homem e de seus problemas. Mas estes mudam conforme as situações históricas”.
Por isso a incitação à desobediência, que perpassa a diatribe dos freis Ludovico, Berardo e Tommaso contra os argumentos do pároco de Sulmona: “Mas como você pode afirmar que se deve obedecer sempre à autoridade? E se a autoridade comete um erro? […] É escandaloso que um cristão coloque a obediência na frente da verdade. […] Quando a traição é patente, deve-se continuar a obedecer? […] O dever de desobedecer aos superiores que traem é sagrado, é o mais cristão dos deveres. A consciência está acima da obediência. […] como se pode recusar um princípio justo apenas por medo das consequências?”.
Ignazio Silone, como Celestino V, não teve medo das consequências, sofrendo uma “longa, metódica e vergonhosa perseguição” (como anota Gianni Corbi) e sendo achincalhado pelos comunistas,[20] mesmo depois de sua “excomunhão” por causa do inconformismo de suas opiniões, em contraste com as dos companheiros, que se dobravam cada vez mais às diretrizes stalinistas impostas pelo partido. Como escreve em “Scrittori, società, Stato”: “O partido revolucionário que, para o êxito da revolução, elimina a liberdade dos adversários e dos próprios membros, ao fazer isso sufoca as forças criadoras das grandes massas proletárias e condena o novo regime a tornar-se cada vez mais tirânico, favorecendo a formação de novos privilégios”.
Se Pietro Angeleri foi posteriormente canonizado, por ter fundado a Ordem dos Celestinos, e santificado, sendo sua festa comemorada no dia 27 de julho, Secondino Tranquilli (verdadeiro nome do escritor) foi reabilitado em 1990 pela esquerda, que considerou sua expulsão um erro trágico e reconheceu que ele estava certo ao colocar a verdade acima do partido.
Apesar de zonas de sombra detectadas em sua vida,[21] a estatura moral de Ignazio Silone junto à opinião pública da Itália parece não ter sido atingida, uma vez que seu nome tem sido evocado mesmo em acontecimentos políticos mais recentes que abalaram o país.[22] Suas ideias libertárias continuam sendo vistas como um baluarte em defesa da autonomia da consciência.
MARIAROSARIA FABRIS ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros textos, de “A breve estação de uma nova sociedade e sua representação cinematográfica”, que integra o volume Itália do pós-guerra em diálogo (Editora Comunità).
Publicado originalmente nos Anais do XXVII Simpósio Nacional de História da ANPUH.
