A LUTA POR DIREITOS POLÍTICOS: O PAPEL DA GREVE DE FOME NO BRASIL

Um protesto silencioso e radical, a greve de fome é uma ferramenta política historicamente ligada aos oprimidos no Brasil

Ao longo da história, as greves de fome têm sido utilizadas como uma importante ferramenta da luta por direitos políticos. Considerada um mecanismo de resistência pacífica, já foram utilizadas por diversos líderes de movimentos sociais pelo mundo como forma de pressionar governos e instituições ou atrair o olhar da opinião pública para uma causa ou ideia.

Durante a luta por independência na Índia, Mahatma Gandhi chegou a realizar greves de fome para pressionar as autoridades coloniais britânicas. Ele acreditava no jejum como ferramenta política e enxergava na prática uma forma não violenta de desobediência civil.

A greve de fome como meio de luta por direitos políticos choca justamente por colocar em risco — voluntariamente — algo cujo instinto humano é a preservação: a vida. Por isso, ela é vista como uma potente forma de afirmação de poder. Ainda que a liberdade tenha dado lugar à opressão e os direitos tenham sido deixados de lado, essa ação reafirma a autoridade do indivíduo sobre o próprio corpo.

Atos como esse ganham relevância porque, muitas vezes, evidenciam situações de opressão, injustiça e desigualdade. Afinal, quando alguém coloca a própria vida em risco por uma causa, se torna quase impossível fechar os olhos.

No Brasil, a greve de fome se tornou uma prática adotada em contextos de violações de direitos políticos, usada principalmente por grupos marginalizados e perseguidos, tendo desempenhado um papel fundamental em diversos momentos da história.

As greves de fome e a violação de direitos políticos na ditadura

Em 1962, antes da ditadura militar, um grupo de trabalhadores da Companhia de Cimento Portland de Perus, na capital paulista, deflagrou uma greve e paralisou as atividades da indústria. O objetivo era reivindicar melhores condições de trabalho e o pagamento de salários atrasados. Ao todo, foram sete anos de paralisação, entre piquetes, manifestações, abaixo-assinados e greves de fome.

O episódio mostra que o jejum imposto a si mesmo como forma de pressão política, é também uma ferramenta histórica de luta dos oprimidos.

No contexto da ditadura militar brasileira, quando a repressão política e a perseguição a opositores eram normas, as greves de fome também se faziam presente. Se por um lado o Estado brasileiro se dava o direito de prender, torturar e matar quem ousasse se levantar contra o regime, no cárcere, aqueles cujos direitos haviam sido violados não tinham muitos recursos de pressão — a não ser o próprio corpo.

A ditadura militar brasileira foi responsável pela perseguição, tortura, assassinato ou violação de direitos políticos de milhares de pessoas. Foto: Evandro Teixeira

A ditadura militar brasileira foi responsável pela perseguição, tortura, assassinato ou violação de direitos políticos de milhares de pessoas. Foto: Evandro Teixeira

A greve de fome dos presos do MR-8

Em 1969, uma greve de fome foi organizada por membros do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), presos após o sequestro do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick. Detidos nos centros de tortura da Ilha das Flores e no Presídio Naval, ambos no Rio de Janeiro, eles tinham como objetivo a liberação de visitas aos detidos. O protesto foi encerrado após a reivindicação ser atendida.

A greve de fome de 1972

Até 1972, os presos políticos eram concentrados no Presídio Tiradentes, na capital paulista. No entanto, após uma ofensiva do Estado, os detentos foram remanejados para diferentes penitenciárias. A ideia era reduzir a possibilidade de mobilização dos detidos, que faziam denúncias sobre as violências do sistema repressivo e carcerário.

Em resposta a essa tentativa de desarticulação foi deflagrada uma greve de fome. Dezenas de presos aderiram ao protesto, que se espalhou por diversos presídios do estado.

À época, detido na Penitenciária do Estado — que mais tarde foi rebatizada e se tornou o Complexo Penitenciário do Carandiru — o publicitário Manoel Cyrillo foi um dos que aderiu à greve de fome. Ao portal Holofote, ele relembrou: “foi uma greve de fome total. Não bebíamos nem água. Nos debilitamos muito, muito, muito. Emagrecemos fantasticamente”.

Mantimentos levados pelas famílias dos presos políticos em greve de fome em 1972. Foto: reprodução

Mantimentos levados pelas famílias dos presos políticos em greve de fome em 1972. Foto: reprodução

Preso pela ditadura e uma figura central na luta por direitos políticos no Brasil, Frei Betto participou de uma greve de fome em 1972. Dois anos antes, ele já havia ficado seis dias sem comer enquanto estava detido no Presídio Tiradentes. Mas a segunda greve foi ainda mais longa: 36 dias.

Detido junto a um grupo de outros frades e leigos — todos presos políticos — em uma Penitenciária de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, os grevistas tinham como objetivo impedir a transferência de novos prisioneiros e exigiam que os detidos em razão da militância política deveriam ser concentrados em uma única carceragem.

Na ocasião, o então bispo Dom Paulo Evaristo Arns — que mais tarde se tornaria Arcebispo de São Paulo — interveio em nome dos presos, mediando a relação entre aqueles que faziam greve de fome como forma de retomar os direitos políticos e as autoridades militares.

Greve de Fome Nacional dos Presos Políticos

No fim da década de 1970, o Brasil vivenciava o início do período de abertura lenta e gradual da ditadura militar. No entanto, a censura, a repressão e a violação de direitos políticos ainda marcavam o regime. Nesse contexto, ocorreu uma das mais emblemáticas greves de fome da história brasileira: a Greve de Fome Nacional dos Presos Políticos em defesa da anistia.

A campanha pela anistia já ocupava algum espaço no debate público, principalmente por mobilizar familiares de presos e desaparecidos, militantes e setores progressistas da sociedade. Em junho de 1979, o então ditador, João Baptista Figueiredo, apresentou um projeto de Lei da Anistia sem prever o anistiamento daqueles que foram presos por se oporem à ditadura.

Dentro dos presídios, onde a violência e o isolamento eram regras, os presos políticos decidiram que fariam seus anseios ecoarem e deflagraram uma greve de fome pela anistia ampla, geral e irrestrita. Mais uma vez, usando o corpo como ferramenta de luta capaz de atravessar os muros das cadeias e alcançar a opinião pública.

O movimento se iniciou em 22 de julho de 1979 e rapidamente se espalhou por diversas penitenciárias do país, atraindo a atenção da imprensa e de políticos.

Um grupo de parlamentares liderado pelo senador Teotônio Vilela (MDB-AL) visitou os grevistas em diversos presídios. Em um discurso, transcrito pelo Arquivo do Senado, afirmou: “com a minha sensibilidade de criatura humana, [fiquei estarrecido] ao tomar conhecimento da debilidade total daqueles presos, em pleno estado de ruína, sacrificados em nome de um ideal”.

O movimento em defesa da anistia ampla, geral e irrestrita foi uma marca dos anos finais da ditadura militar no Brasil. Foto: Acervo CSBH/FPA

O movimento em defesa da anistia ampla, geral e irrestrita foi uma marca dos anos finais da ditadura militar no Brasil. Foto: Acervo CSBH/FPA

A greve durou mais de 30 dias e só foi encerrada em 22 de agosto de 1979, com a aprovação da chamada Lei da Anistia. Embora o texto aprovado tenha sido alvo de críticas por também contemplar agentes do regime acusados de tortura e violações de direitos humanos, a mobilização foi decisiva para a libertação de presos políticos

A Greve de Fome Nacional entrou para a história como um dos últimos grandes atos de resistência coletiva durante o regime militar, reafirmando o poder da mobilização e da resistência.

Lula e a greve de fome

Em 1980, após ser preso por liderar uma greve de 41 dias no ABC Paulista, o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva — que mais tarde viria a ser eleito presidente do Brasil em três ocasiões — iniciou uma greve de fome que durou três dias e só foi suspensa após decisão do Sindicato dos Metalúrgicos.

As greves de fome no Brasil democrático

Mesmo após o fim da ditadura militar, as greves de fome seguiram presentes na história política brasileira. Em tempos de normalidade democrática, o ato de renunciar voluntariamente à alimentação para pressionar autoridades e denunciar injustiças manteve sua força simbólica e relevância na luta por direitos políticos.

Em 2007, o bispo Dom Luiz Cappio, da Diocese de Barra (BA), protagonizou uma das greves de fome mais conhecidas da história recente do Brasil. A ação foi um protesto contra o projeto de transposição das águas do rio São Francisco.

Dom Cappio, que dedicava seu trabalho pastoral às comunidades ribeirinhas e sertanejas, considerava a obra um risco ambiental e social para a população pobre da região, alegando que ela privilegiaria grandes empreendimentos e não resolveria o problema da seca para quem mais precisava. O movimento durou mais de 20 dias.

Já em 2010, o deputado Domingues Dutra (PT-MA) protagonizou uma greve de fome no plenário da Câmara dos Deputados junto ao líder camponês Manoel da Conceição. Na época, eles protestavam contra a decisão do diretório nacional do Partido dos Trabalhadores de apoiar a reeleição de Roseana Sarney para o governo do Maranhão.

A greve acabou após um acordo permitir que uma ala do partido tivesse liberdade para apoiar o candidato do PCdoB, Flávio Dino — atual ministro do Supremo Tribunal Federal.

Em 2017, um grupo composto por membros da Igreja, do Movimento dos Pequenos Agricultores, do MST e da Central Única dos Trabalhadores, protagonizou uma greve de fome de dez dias contra a reforma da Previdência. O protesto foi encerrado após o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciar o adiamento da votação para o ano seguinte.

Em 2017, um grupo composto por membros de diversos movimentos sociais realizou uma greve de fome contra a aprovação da Reforma da Previdência. Foto: Adi Spezia

Em 2017, um grupo composto por membros de diversos movimentos sociais realizou uma greve de fome contra a aprovação da Reforma da Previdência. Foto: Adi Spezia

Em abril de 2025, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) ficou oito dias em greve de fome, em protesto à decisão do Conselho de Ética da Câmara que aprovou a cassação do seu mandato. A medida foi motivada por uma acusação de quebra de decoro parlamentar, após um episódio em que o parlamentar teria reagido a provocações e agredido um manifestante de extrema-direita que havia ofendido sua mãe, então doente e em estado terminal.

O movimento contra a cassação ganhou o apoio de diversos setores da sociedade, que consideraram a medida desproporcional e apontaram o processo como uma tentativa de silenciar Glauber Braga, reconhecido por seu perfil combativo frente à extrema-direita. A greve de fome foi encerrada após um acordo com o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que determinou a suspensão do processo por 60 dias.

Greve de fome: um ato radical de denúncia

O poder da greve de fome está também em seu caráter simbólico — afinal, ela costuma ser a última arma daqueles que não têm armas. Ao abdicar da alimentação, o indivíduo transforma o próprio corpo em instrumento de resistência, amplificando a luta por direitos políticos, sociais e combatendo injustiças.

Da Índia colonial ao Brasil do século 21, essa prática permanece historicamente ligada às classes oprimidas — trabalhadores explorados, presos políticos, camponeses sem terra e militantes perseguidos.

Por isso, esse recurso sempre teve um papel fundamental em momentos de violação de direitos políticos e repressão. Mais do que um protesto, a greve de fome é uma declaração extrema de humanidade diante da desumanização.

E é por isso que a greve de fome impacta tanto quem a testemunha. Porque ela expõe, de forma crua, até onde um ser humano é capaz de ir quando a dignidade é negada.

Se por um lado ela coloca o sujeito em um estado de fragilidade física, por outro ela reafirma a força moral de quem, sem outras formas de se fazer ouvir, transforma um gesto pacífico e silencioso em um grito por dignidade.

IAGO FILGUEIRAS ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)

*Estagiário sob supervisão de Leila Cangussu

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