MORRE O MENINO DEUS

CHARGE DE REP ” PÁGINA 12″ ( ARGENTINA)

Soube da morte de nosso senhor jesus cristo ainda infante.

A descoberta se deu na paróquia de São Sebastião, quando iniciei meus estudos eclesiásticos na primeira comunhão.

Até então, cria que Jesus era, somente, aquele cara pregado numa cruz.

Acreditava, na minha inocente criancice, que ali o mestre sempre tinha estado.

Cria, seria mais claro, que cruz e jesus fossem uma coisa só, um e outro até rimavam.

Foi assim que o mostraram.

Mamãe, por exemplo, usava uma cruz no pescoço, sem cristo, mas eu sabia que ele estaria lá em algum momento.

Talvez tivesse descido pra descansar um pouco, eu imaginava.

Vi essa cruz sem Cristo diversas vezes, na porta da igreja mesmo tinha uma enorme, branca, lustrosa. Dava vontade de se deitar nela.

No cemitério, quando fui ao enterro de minha bisavó, eu vi uma porção delas.

Mas também vi muitas cruzes com o crucificado.

Dentro da igreja tinha uma, no altar.

Na minha casa, as folhinhas de calendário pregadas nas paredes, também mostravam um cristo pregado na cruz, de braços abertos, exibindo a cabeça de um prego em cada palma de mão.

Passei a gostar de olhar pras cruzes sem Jesuzes.

Sim, se digo Jesuzes não o faço por mal, é que o via assim, plural.

É que em cada cruz que eu via parecia que havia um tipo de Jesus.

Mais tarde, mamãe me explicou que o nosso senhor era um só e que as dessemelhanças que eu notara em sua cara era, em verdade, capricho da interpretação do artista; quando não, era mera falta de habilidade do artesão.

Entristecia-me vê-lo magro, triste, com sangue escorrendo dos espinhos que lhe rasgavam a testa.

Não me parecia um filho de deus.

Então, passei a orar, de joelhos ao pé da cama, para uma cruz sem Jesus. Mas não orava pra cruz, isso é certo, era em Jesus que eu mirava.

e de tanto olhá-la, saquei, veja que sagacidade, que as cruzes que não tinham Jesuzes também não tinham marcas de buracos de pregos.

O que me fez crer que talvez existissem cruzes sem Jesuzes e que, por isso mesmo, podia-se concluir que primeiro veio a cruz, depois é que veio Jesus.

Foi na primeira comunhão, lá pelos seis anos de idade, que me disseram que o cristo já havia sido menino, e que tinha sido gente como a gente.

Ao chegar em casa, corri pra bíblia e pedi pra minha mãe ler para mim alguma peraltice do menino jesus.

Queria saber do que ele brincava, se jogava bola, se fazia mágicas, se brincava de esconder com os coleguinhas…

Mamãe disse que o evangelho da infância de Jesus havia sido abolido da bíblia e que nada sabíamos, e jamais saberíamos, sobre sua adolescência também.

A bíblia, percebi, era uma fábula de adultos.

Bem, tornei-me coroinha, confessei meus pecados, que nessa época já eram muitos, vestiram-me com uma alva batina de seda e fizeram de mim um pequeno souvenir de padre.

Tive o privilégio indescritível de saborear, ou melhor, consagrar, a hóstia e o vinho.

Nesse eucarístico rito iniciático, tive o meu primeiro contato com o corpo e o sangue de cristo.

Ensinaram-me algumas disciplinas litúrgicas, como não acenar pros coleguinhas durante a missa e, quando sentado, não cruzar as pernas; quando de pé, não cruzar os braços.

Pronto, na missa de domingo lá estava eu: um padrinho.

Entrei no presbitério na companhia dos sacerdotes; durante a missa, toquei sineta, servi vinho e água, segurei o livro, orei e chorei.

Dizem que foi numa sexta-feira como essa que os caras deram uma surra no mestre, fizeram-no caminhar pelas ruas carregando nas costas uma cruz que lhe pregariam nas costas.

Cuspiram nele, xingaram sua mãe e, ao pôr do sol, penduraram seu corpo esquálido no madeiro.

Viveu como um homem e como um homem morreu.

Nasceu em Belém, na Palestina.

E morreu como hoje morrem os palestinos: a infância apagada, a juventude incerta; a morte, cruel, sempre presente, no passado e no futuro.   

Os mesmos inimigos.

Palavra da salvação.

LELÊ TELES ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

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