O OCIDENTE NÃO ESTÁ CEGO, MAS PERDEU A CAPACIDADE DE ENXERGAR

CHARGE DE REP ” PÁGINA 12/ ARGENTINA”

Boaventura de Sousa Santos dialoga com Jeffrey Sachs e afirma que a razão adormecida impede o Ocidente de ver o mundo como ele é

Tenho escrito repetidamente sobre a sociedade de transição em que vivemos. Sempre que o faço, lembro da célebre frase de Gramsci: o velho ainda não morreu por completo, o novo ainda não se impôs totalmente, e esse entretempo é fértil em fenômenos mórbidos — que alguns chegaram a traduzir como monstros. Diante do que acontece hoje no mundo, começo a duvidar se o conceito de transição ainda serve para descrever nosso tempo. Cada vez mais, creio que, se precisarmos recorrer a expressões emblemáticas e concisas da nossa condição histórica, a mais adequada talvez seja a gravura de Goya, de 1799: El sueño de la razón produce monstruos — o sono da razão produz monstros. Em vez da metáfora do movimento, a metáfora da condição.

Desde o início da guerra na Ucrânia, tenho encontrado grande convergência com as análises de Jeffrey Sachs (JS), com quem inclusive troquei correspondência sobre nossos pontos de aproximação. Em um artigo publicado em 11 de abril no portal OtherNews, intitulado “Giving Birth to the New International Order” (https://www.other-news.info/giving-birth-to-the-new-international-order/), JS recorre à ideia de transição para caracterizar a passagem de um mundo unipolar — sob domínio ocidental desde o século XV (e, nos últimos cem anos, liderado pelos Estados Unidos) — para um mundo multipolar, centrado na Ásia, na África e na América Latina. Sua proposta para viabilizar essa transição é a ascensão da Índia, que ele compara favoravelmente à China, culminando em sua entrada como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

Não discordo da proposta de JS, embora ela venha num momento dramático da democracia indiana, marcada pela ascensão do hinduísmo político, que relega mais de 20% da população — os muçulmanos — à condição de cidadãos de segunda classe. Divergimos, no entanto, quanto ao peso dessa proposta. JS parte de duas premissas que, infelizmente, não se sustentam: a de que a ONU ainda opera com alguma eficácia, e a de que vivemos uma ordem mundial unipolar.

JS parece manter, talvez de forma desesperada, alguma fé no papel internacional da ONU. Mas como sustentar essa crença após o genocídio em Gaza, transmitido ao vivo para o mundo por mais de um ano? Como confiar na ONU depois de todas as mentiras toleradas nos Balcãs, no Iraque, na Síria, na Líbia, no Iêmen, no Afeganistão, na Ucrânia? É trágico constatar dois fatos: primeiro, todas essas mentiras foram denunciadas com credibilidade no momento em que circularam; segundo, quem as denunciou sofreu represálias — silenciamento, deportações, perseguições midiáticas e judiciais. Anos depois, essas mentiras foram admitidas como tais, frequentemente pelas próprias agências que as propagaram, como The New York Times ou The Washington Post, e pela imensa câmara de eco que os meios de comunicação hegemônicos do mundo reproduzem. Nunca se pediu desculpas a quem estava certo quando dizer a verdade era proibido, tampouco se indenizou os povos destruídos por atos de agressão sustentados em mentiras. Alguém ainda lembra que a Líbia tinha um dos melhores sistemas públicos de saúde do mundo?

Quanto à segunda premissa — a da ordem unipolar —, é mais plausível dizer que vivemos uma desordem mundial, na qual o país mais poderoso é também o maior promotor dessa desordem. Existia ordem unipolar quando, por exemplo, Narendra Modi foi proibido de entrar nos EUA, em 2005, devido a violações de direitos humanos no massacre de muçulmanos em Gujarat, em 2002. Mas ela existe hoje, quando um criminoso de guerra é aplaudido de pé pelo Congresso norte-americano? É crível tudo o que se diz atualmente sobre a China, se há apenas cinco anos os discursos eram radicalmente diferentes? Como sustentar a ideia de uma ordem democrática contra autocracias, quando os maiores aliados do país que se autoproclama defensor da democracia são ditadores?

A doutrina dominante na política dos EUA — desde o 11 de Setembro — baseia-se na ideia de dominação imperial, e não de ordem internacional. Está tudo exposto no Project for the New American Century (http://newamericancentury.org/) e na Doutrina Wolfowitz (https://www.archives.gov/files/declassification/iscap/pdf/2008-003-docs1-12.pdf): os EUA devem agir unilateralmente sempre que não puderem conduzir ações coletivas. Isso não é princípio de ordem, é princípio de caos.

A sociologia das ausências: o sono da razão – Mesmo com toda a lucidez de JS, sua análise produz duas ausências — realidades que, embora existentes, são tratadas como inexistentes e, por isso, não entram nos diagnósticos nem nas soluções. Essas ausências não derivam de má-fé, mas dos pressupostos epistemológicos do pensamento hegemônico — do sono da razão. O maior problema do Ocidente talvez não seja o estado ao qual levou o mundo, mas sim o epistemicídio que perpetrou: destruiu ativamente saberes e experiências para impor sua dominação e minar resistências. Essa destruição afetou corpos e modos de vida, mas também formas de conhecimento, sabedorias e éticas, maneiras de se relacionar com a natureza, com os mortos, com o tempo e com o espaço. Isso gerou uma cegueira peculiar: olhar sem ver, explicar sem entender, observar sem perceber que também se está sendo observado.

Entre muitas, destaco duas ausências fundamentais: o diferente/inútil fora da lógica amigo/inimigo; e o princípio do viver e deixar viver, além da ordem e da desordem.

O diferente e o inútil – Colonialismo e capitalismo são formas gêmeas de dominação moderna, ambas baseadas em hierarquias: superior/inferior, proprietário/não proprietário. O inferior só é assim do ponto de vista do superior. O proprietário define o que tem valor, e tudo o mais torna-se irrelevante ou inexistente. Essas lógicas geraram dois modelos principais de relação: útil/inútil e amigo/inimigo — o primeiro teorizado por Jeremy Bentham, o segundo por Carl Schmitt.

O pensamento colonial-capitalista ocidental deseducou sistematicamente os humanos a reconhecer o valor do diferente e do inútil, que não cabem nessas lógicas. Quando não ignorados, esses elementos foram relegados à esfera da arte, tratados como supérfluos, portadores de uma aura de desnecessário.

Viver e deixar viver – As lógicas hierárquicas do colonialismo e do capitalismo moldaram, desde o século XV, as definições de vida e morte. Apenas a vida dos superiores e dos proprietários era digna de proteção. Como a maioria da população mundial não era nem uma coisa nem outra, a modernidade foi marcada pelo espetáculo da morte. Não só de humanos subalternizados, mas também de toda forma de vida — natureza incluída. A morte de rios, florestas e montanhas foi justificada teológica, ética, científica e economicamente. Isso nos trouxe ao colapso ecológico atual. O massacre em Gaza é apenas o episódio mais recente — e abjeto — de uma longa história de limpeza etno-sócio-natural de humanos e não-humanos.

Não há como esperar que uma nova ordem mundial — seja unipolar ou multipolar — faça valer o princípio do “viver e deixar viver”, se continuar apoiada nos mesmos alicerces epistêmicos e éticos da ordem anterior.

Conclusão – A mudança de um mundo unipolar para um mundo multipolar não é boa nem má em si. A verdadeira alternativa civilizatória está em ampliar os espaços para a diferença e a inutilidade — a diferença como diversidade; a inutilidade como outra forma de utilidade. É preciso valorizar o valor da vida, o que só se alcança por meio do viver e do deixar viver.

Tenho dúvidas de que o pensamento ocidental — depois de cinco séculos de condicionamento cultural, epistêmico e ético — seja capaz de conceber ou participar com protagonismo na criação do mundo multipolar. Ele jamais saberá ser “uno entre pares”. Os valores do diferente, do inútil, do viver e do deixar viver são mais presentes nos saberes originários das regiões nas quais JS deposita esperança — Ásia, África e América Latina — do que no pensamento ocidental dominante. Isso, no entanto, não é garantia de nada, já que o pensamento ocidental impregnou, sobretudo, as elites dessas regiões — elites que provavelmente estarão à frente da construção do novo (velho) mundo multipolar.

Por isso, acredito que as classes exploradas e oprimidas desses territórios são as que mais têm a contribuir na resistência ao epistemicídio multissecular. Fá-lo-ão se souberem recorrer às suas experiências históricas — experiências que sempre oscilaram entre a guerra e a revolução. Hoje, quando caminhamos sonâmbulos rumo a uma Terceira Guerra Mundial (se é que ela já não começou), talvez seja hora de repensar os conceitos de revolução e libertação. Só assim a razão poderá despertar do sono em que foi lançada pelo capitalismo e pelo colonialismo.

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS ” BLOG BRASIL 247″ ( PORTUGAL / BRASIL)

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