O LIVRO BRANCO E A MILITARIZAÇÃO DA EUROPA

CHARGE DE KIN

Se o mundo civilizado não atar as mãos destes selvagens, eles nos conduzirão à Terceira Guerra Mundial

Uma ameaça fundamental

A Europa enfrenta uma ameaça aguda e crescente. A única forma de garantir a paz é estar preparados para dissuadir aqueles que querem nos prejudicar. Chegou o momento da Europa rearmar-se. Estas são algumas das conclusões do Livro branco conjunto sobre a preparação da defesa europeia 2030, publicado em Bruxelas em 19 de março passado.

Livro branco apresenta um plano de rearmamento da Europa. Para isso, abriram-se as portas para o endividamento dos países europeus através da chamada “Cláusula de Escape”, que permite aos países ultrapassarem os limites do déficit e da dívida estabelecidos nas regras europeias, caso estejam envolvidos investimentos relacionados com a indústria militar.

Mudanças no entorno estratégico

De acordo com o Livro branco, o equilíbrio político que emergiu após o fim da Segunda Guerra Mundial e a conclusão da Guerra Fria “foi seriamente alterado”. Por um lado, argumentam que os “Estados autoritários”, como a China, procuram impor “sua autoridade e controle sobre nossa economia e sociedade”.

Por outro, destacam que a Rússia “deixou claro que continua em guerra com o Ocidente” e “continuará sendo uma ameaça fundamental para a segurança da Europa num futuro previsível”. Caso se permita que a Rússia atinja seus objetivos na Ucrânia, argumentam, “suas ambições territoriais se estenderão ainda mais”. Afirmações que o presidente russo Vladimir Putin tem rejeitado repetidamente.

Aumentar os gastos com defesa

Os gastos com a defesa dos Estados-membros da União Europeia aumentaram mais de 31% desde 2021, atingindo 326 bilhões de euros em 2024. No início de março, a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, anunciou o plano “ReArm Europe”, que prevê um gasto de cerca de 800 bilhões de euros para a defesa do bloco.

A proposta não foi acolhida unanimemente. Em 26 de março, Gregorio Sorgi e Giovanna Faggionato publicaram no Politico (uma publicação originalmente sediada na Virgínia, e vendida em 2021 para a alemã Axel Springer) que os países do sul da Europa – França, Itália e Espanha – tinham manifestado preocupação com as consequências econômicas do aumento da dívida, tendo em vista suas já elevadas dívidas e déficits orçamentários.

“Alguns países têm sérias dúvidas sobre a possibilidade de endividar-se nesses níveis”, diz o artigo, citando “um diplomata sênior da União Europeia” em Bruxelas. Em vez de assumirem novas dívidas, propõem a emissão de bônus de defesa, colocados pela UE no mercado de capitais, para financiar estes investimentos. Uma proposta à qual países como a Alemanha e a Holanda tradicionalmente se opuseram.

Apoio militar à Ucrânia

Livro branco não prevê qualquer iniciativa diplomática. Alinhado com a visão militarista da nova Comissão Europeia, na qual os beligerantes países bálticos lideram as comissões de relações exteriores e de defesa, propõe que os Estados-membros cheguem rapidamente a um acordo sobre uma ambiciosa iniciativa de apoio militar à Ucrânia, treinando e equipando suas forças armadas e fornecendo-lhes munição de artilharia e defesa aérea. A Ucrânia tornou-se o principal laboratório mundial de defesa e inovação tecnológica, diz o documento.

Desde fevereiro de 2022, a Europa concedeu à Ucrânia cerca de 50 bilhões de euros em apoio militar e pretende melhorar sua capacidade de defesa através do que chamou de “estratégia porco-espinho”, para dissuadir qualquer possível novo ataque. Mísseis (incluindo os de ataque profundo de precisão), aviões não tripulados e pelo menos dois milhões de projéteis de artilharia de grande calibre por ano são prioridades compartilhadas pela Ucrânia e pelos Estados-membros da União Europeia, que também pretendem treinar e equipar as brigadas ucranianas e apoiar a regeneração de seus batalhões.

Esforços que visam, entre outras coisas, preencher o espaço deixado por uma mudança na política norte-americana, que, desde 2022, tem sustentado a guerra na Ucrânia, como demonstrado pela reportagem do New York Times, “The partnership: the secret history of the war in Ukraine” [“A parceria: a história secreta da guerra na Ucrânia”], publicada em 29 de março. Entretanto, apesar das tensões com Washington, a Europa reconhece que uma forte ligação transatlântica continua sendo crucial para sua defesa. A OTAN é a pedra angular dessa defesa.

Para além da Europa

O documento propõe um compromisso ambicioso em matéria de segurança e defesa “com todos os países europeus afins, os países da ampliação e os países vizinhos (incluindo Albânia, Islândia, Montenegro, República da Moldávia, Macedônia do Norte e Suíça)”, assim como a continuação das conversas sobre uma Associação de Segurança e Defesa com a Índia. A ideia é que a União Europeia explore, além disso, “oportunidades de cooperação industrial no campo da defesa com os parceiros do Indo-Pacífico, em particular o Japão e a República da Coreia, com os quais se concluíram Associações de Segurança e Defesa em novembro passado, além da Austrália e da Nova Zelândia”.

A guerra em grande escala da Rússia contra a Ucrânia tem repercussões para além da Europa, diz o Livro branco. As ameaças híbridas e os ciberataques não respeitam fronteiras. Nem a segurança no espaço ou no mar.

Militarização da indústria, um bom negócio

Um mercado de equipamentos de defesa verdadeiramente funcional em toda a União Europeia seria um dos maiores mercados nacionais de defesa do mundo, defende o Livro branco. O aumento do investimento no setor da defesa teria efeitos positivos em toda a economia. A reativação da indústria da defesa em grande escala exigirá que a indústria atraia e forme muitos talentos, incluindo técnicos, engenheiros e peritos especializados.

A reconstrução da defesa europeia exigirá um investimento massivo durante um período prolongado, tanto público como privado, para repor os equipamentos militares dos Estados-membros e aumentar a capacidade de produção industrial da defesa europeia. O Banco Europeu de Investimento tem um papel decisivo a desempenhar no financiamento destes programas. Seu Plano de Ação de Segurança e Defesa foi um primeiro passo nesta direção, mas sua aplicação deve ser acelerada.

Mas não basta aumentar o investimento público em defesa. As empresas europeias, incluindo as pequenas e médias, devem ter um melhor acesso ao capital. A proposta é que, para o período 2023-2027, o Fundo Europeu de Defesa (EDF) financie as PME com até 840 milhões de euros e que o Programa Europeu para a Indústria da Defesa (EDIP) crie um Fundo para Acelerar a Transformação da Cadeia de Abastecimento da Defesa (FAST).

A Europa prepara-se para as guerras

“A União Europeia é, e continua sendo, um projeto de paz”, podemos ler quase no final do Livro branco. A Europa deve tomar decisões audazes, acrescentam, e construir uma União de Defesa que garanta a paz em nosso continente através da unidade e da força.

Em Bruxelas, diz-se que a Comissão Europeia “se transformou num Ministério da Defesa”, afirma a jornalista Gloria Rodríguez, do jornal espanhol El País, num artigo publicado de Bruxelas. A agenda atual é eloquente, afirma. “O Livro branco, que define as ameaças que a União Europeia enfrenta, complementa o ReArm Europe, o plano mais ambicioso até aqui para reforçar os exércitos e a indústria de defesa da Europa”, apresentado por Ursula von der Layen há duas semanas.

Para Dmitry Peskov, porta-voz da presidência russa, os principais sinais vindos de Bruxelas e das capitais europeias referem-se atualmente a planos para militarizar a Europa. Moscou não recebeu sinais de Bruxelas que indiquem o desejo de procurar uma solução política para o conflito ucraniano, afirmou.

Necessitam justificar-se

Os Estados-membros da União Europeia escolheram a ex-primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas – uma das vozes mais beligerantes contra a Rússia – como representante de sua política externa porque queriam uma líder para tempos de guerra, afirmam os jornalistas do Politico Niicholas Vinocur e Jacopo Barigazzi, citando fontes europeias. “Se você a ouve”, diz uma voz europeia crítica de Kallas, citada pelo Politico, “parece que estamos em guerra com a Rússia, o que não é a linha oficial da União Europeia”.

Mas outros aprovam, como a primeira-ministra dinamarquesa – outra voz particularmente beligerante – ou um diplomata europeu, não identificado pelos autores do artigo, que está “muito satisfeito” com o estilo de Kaja Kallas.

O ódio aos russos foi expresso pelo presidente ucraniano numa entrevista ao jornal conservador francês Le Figaro. Um “sentimento apropriado” em tempos de guerra, disse ele, que o ajuda a se manter na frente da luta.

Um sentimento que provavelmente contribuiu para o fracasso dos acordos de Minsk, negociados antes da guerra em 2014 e 2015 e boicotados pela Ucrânia, França e Alemanha. Estes acordos pretendiam dar garantias às populações russas das Repúblicas de Donetsk e Lugansk. Os combates no leste da Ucrânia, entre os separatistas e as forças ucranianas, já tinham ceifado cerca de 14 mil vidas antes da invasão russa, segundo a BBC, e deixado mais de um milhão de pessoas deslocadas.

Nesse clima, o ministro espanhol das relações exteriores, José Manuel Albares, pediu para que não alarmassem desnecessariamente as pessoas. “Ninguém está se preparando para a guerra”, disse. Referia-se ao “kit de sobrevivência” proposto por von der Layen, que duraria pelo menos 72 horas em caso de emergência. O mesmo José Manuel Albares que, numa reunião de seis países europeus em Madrid, na segunda-feira, 31 de março, propôs, sem obter apoio, a utilização dos fundos russos congelados em bancos europeus para ajudar a Ucrânia.

“Eles precisam justificar-se”, disse o presidente russo Vladimir Putin, comentando a proposta do kit. “É por isso que assustam sua população com uma hipotética ‘ameaça russa’”. “Dizer que vamos atacar a Europa depois da Ucrânia é um completo disparate. É uma intimidação de sua própria população”.

Guerras do futuro?

O colega de Kaja Kallas na Comissão, o ex-primeiro-ministro lituano Andrius Kubilius, agora responsável pela recém-criada pasta da Defesa, que também é a favor de uma política agressiva em relação a Moscou, disse que “se a Europa quer evitara guerra, tem que estar preparada para ela”. As prioridades do Livro branco, destacou, são aumentar os gastos com defesa, pensando “não apenas nas guerras atuais, mas também nas do futuro”. “Vladimir Putin não se deterá lendo o Livro branco”, acrescentou. Só o fará “se o utilizarmos para criar drones muito reais, tanques, artilharia… para nossa defesa”. Para o presidente finlandês, o também conservador Alexander Stubb, a única forma de deter Moscou é “armar a Ucrânia até os dentes”.

E, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha envia tropas para o estrangeiro. Trata-se de uma brigada instalada na Lituânia, a 10 km da fronteira com a Bielorrússia. Quando estiver totalmente operacional, em 2027, contará com cerca de 5.000 efetivos militares e civis.

Tanto Kaja Kallas como Andrius Kubilius são cidadãos de dois países bálticos – a Estônia e a Lituânia – que são particularmente agressivos contra a Rússia. É seguro dizer que foi precisamente por isso que foram nomeados para estes cargos. Acontece que a Estônia, com cerca de 1,4 milhão de habitantes, e a Lituânia, com cerca de 2,9 milhões, são apenas um bairro de qualquer grande cidade da América Latina com tal população. A área metropolitana do México ou de São Paulo tem cerca de 8 milhões de habitantes.

Por isso, não é de estranhar que funcionários europeus, que poderiam ser como que presidentes de bairros destas cidades, tenham em suas mãos a definição de políticas que podem levar o mundo a uma nova guerra de dimensões catastróficas. Se o mundo civilizado não atar as mãos destes selvagens, eles nos conduzirão à Terceira Guerra Mundial.

GILBERTO LOPES ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de The end of democracy: a dialogue between Tocqueville and Marx (Editora Dialética) [https://amzn.to/3YcRv8E]


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