
A sorte da democracia brasileira é que, na ponta fascista, estavam pessoas de baixo nível político e intelectual.
A idade me permitiu assistir às Marchas com Deus, Família e Propriedade, que chegaram a Poços de Caldas através do Padre Patrick Peyton e seu bordão “família que reza unida permanece unida”.
Imigrante irlandês, ele foi trazido ao Brasil pelos irmãos Grace, católicos irlandeses-americanos donos de linhas de navio e da representação da Caterpillar no Brasil.
Quando completei 14 anos, dois meses após o golpe, ainda era lacerdista, influência de um avô udenista e amigo de Carlos Lacerda. Mudei pouco tempo depois, quando a polícia passou a espancar estudantes em uma passeata em São Paulo.
Minha intuição, de menino-rapaz de 14 anos, era de que o novo regime não podia ser do bem.
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Desde os 12 anos, nas Semanas do Estudante, eu debatia com os comunistas do Colégio Pelicano, os Furtados, o Gerinho. Depois, saíamos de lá para um bar, eles bebendo cerveja e eu bebendo guaraná.
Nosso sonho, aliás, era convidar Carlos Lacerda e Leonel Brizola para um debate na nossa Semana.
Quando veio o golpe, tudo mudou. Apareceu a figura execrável do “dedo duro”, delatando nossos amigos-adversários comunistas. Depois, delataram Sebastião Trindade – um comunista eletricista que semanalmente ia à casa de meus avós, para trocar informação sobre santos com minha avó Martina. E também o Zé Caé, filho do dono da funerária, um rinoceronte de força e um doce de amigo: no período em que meu avô ficou doente, ele esperava todo final de noite, quando minhas tias fechavam o Bar e Restaurante Serigy, para acompanhá-las até em casa, a meros dois quarteirões de distância.
A vida da cidade virou de ponta cabeça. O Marechal Juarez Távora, amigo da minha família, distribuiu armamentos para meio mundo, através da Cooperativa dos Cafeicultores. Até o dr. Fabrino, médico boêmio, foi apanhado com metralhadoras no porta-mala do carro e interrogado pelo delegado. Bastou dizer que tinha sido presenteado por Juarez, para ser solto.
Depois, no secundário, em São João da Boa Vista, fui denunciado ao 2o Exército por ter organizado um grupo de teatro que encenou a peça “Liberdade, Liberdade”, delatado por Acácio Vaz de Lima, um membro do CCC que estudava na Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

Mesmo assim, no interior, sofríamos apenas os ecos da ditadura. No tiro de guerra, o Sargento Meyer – um carioca transferido para Poços – gostava de contar que, no Rio, montavam uma bateria de escola de samba, batendo em pratos e panelas, para abafar os gritos dos prisioneiros torturados.

Nas grandes cidades, instalara-se o terror: prisões arbitrárias, torturas, mortes, censura, sob os gritos histéricos de uma opinião pública e jornalística que ainda não acordara para o pesadelo fascista.
Todo o período anterior a 1964 foi de preparação. Meu avô me mandava exemplares do Ação Democrática, revista do IBAD, com discursos contra os comunistas, contra as estatais, contra a corrupção, tudo semelhante ao período mensalão-impeachment.
A ditadura da década de 2010
Esse mesmo clima eu vi formando-se na década de 2010, depois que Joaquim Barbosa encantou-se com a capa da Veja – sobre o menino pobre que salvou o Brasil – e deixou de ser o maior exemplo para se tornar a mancha mais vergonhosa da história do Supremo Tribunal Federal pós-Constituinte.
Nesse período, de reação indignada contra o arbítrio, fui intimado três vezes na Polícia Federal, em inquéritos destinados a identificar dissidentes na corporação. Alguma semelhança com o pós-64? Dois delegados, aliás, tiveram problemas de saúde e foram afastados da PF, meramente por discordarem de métodos ilegais.
Algumas vezes fui ameaçado fisicamente, as duas em padarias de Higienópolis, por direitistas enfurecidos, estimulados pelo jornalismo de esgoto que se organizara em defesa da ditadura próxima.
Não pense nas bestas feras da direita, que passaram a povoar os jornais, em sua demanda por jornalismo de ódio. Jornalistas do sistema caíram de cabeça no jogo do ódio.
Enquanto alimentavam o monstro, calavam-se, assim como toda a imprensa, ante um período de abusos jurídicos típico das ditaduras, que se espalhou por todos os poros da República. Fechavam os olhos aos abusos, à perseguição e a própria ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) montava uma força tarefa para auxiliar nas investigações.
A ditadura do Judiciário
Em todo período, fui colecionando os principais abusos e, com eles, montei um mapa da mente.
Alguns dos crimes contra a democracia, devidamente anotados:
- Juiz federal que proibiu cultos africanos.
- Promotora que montou uma denúncia contra 75 alunos da USP.
- Desembargadores do TRF-4 que manipularam sentenças contra Lula.
- Juíza que intimou um cientista de reputação internacional, por ter participado de um seminário sobre poderes medicinais da maconha.
- Juiz que proibiu debates em universidades.
- Promotor que fez uma série de denúncias falsas contra Haddad.
- Delegada, juiz e procurador responsáveis pelo suicídio do ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina.
- Juiz que multou passeatas.
- Juiz da vara de execuções que quase matou Genoíno, ao proibir sua saída do presídio para se tratar em uma clínica cardiológica, após ter sofrido uma cirurgia complexa em São Paulo.
- Juiz e Procurador que denunciaram Lula pela licitação FX, fechada no governo Dilma, e cuja decisão pelo Gripen foi do brigadeiro comandante da Aeronáutica.
- Procurador que ordenou a condução coercitiva de dezenas de funcionários do BNDES.
- Juiz e Procurador que ordenaram o fechamento do Instituto Lula.
- Juíza e Delegado responsáveis pela condução coercitiva de reitor e professores da Universidade Federal de Minas Gerais.
- Delegado que algemou pés e mãos do ex-governador Sérgio Cabral Filho.
- Juiz que ordenou o desligamento de água e luz de escola ocupada por alunos do ensino médio.
- Juiz e Procurador que tentaram apreender passaporte de Lula.
- Juíza e Promotor que arruinaram a vida de estudantes, acusados falsamente no episódio em que se envolveu um espião do Exército.
- Juiz e Procuradora que denunciaram o Museu do Trabalhador.
- Juíza que autorizou escuta que chegava até o Palácio do Planalto, a pretexto de grampear o telefone de presos da Papuda.
- Presidente de vários Tribunais Regionais Eleitorais, que autorizaram a invasão de universidades por policiais militares, na véspera das eleições de 2018.
- Delegado que invadiu a casa de filho de Lula, tendo como álibi uma denúncia anônima.
- Delegado que invadiu Instituto Florestan Fernandes, do MST.
E muito mais. Jamais foram apurados os atentados contra o Instituto Lula e contra o ônibus que transportava uma comitiva de Lula no Rio Grande do Sul.
Tudo isso se enquadra na psicologia de massa do fascismo, nas análises sobre a banalização do mal. Criado o clima, só os caráteres mais fortes resistem. Os demais se curvam aos seus interesses, ao espaço público conquistado e tratarão de aderir, para não correr riscos. Entram no embalo e passam a normalizar todas as práticas imorais.
A sorte da democracia brasileira é que, na ponta fascista, estavam pessoas de baixo nível político e intelectual. Houvesse um Golbery no grupo, a esta altura teríamos ingressado irreversivelmente no período AI-5. Todos os demais personagens reagiram da mesma maneira em 1994 a 2014.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)