
1964: um general
A história brasileira é marcada por continuidades perturbadoras, como se estivéssemos condenados ao eterno retorno.
(Mas sem qualquer pretensão filosófica — claro está.)
Na madrugada do dia 1 de abril de 1964, o general Olímpio Mourão Filho baixou as tropas que comandava de Juiz de Fora ao Rio de Janeiro. Sem encontrar resistência de forças legalistas, chegou à antiga capital da República, que havia sido transferida para Brasília somente há 4 anos. Simbolicamente tomar a Cidade Maravilhosa de assalto significava aos olhos da nação tomar o poder. Ademais, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, era um entusiasta do golpe militar, de modo que o general se encaminhava para um território favorável.
No dia seguinte, o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República, muito embora o presidente João Goulart ainda se encontrasse em território nacional. No dia 11 de abril, o Marechal Castelo Branco foi eleito com modestos 98,36% dos votos válidos por um Congresso devidamente escaldado pela promulgação do Ato Institucional número 1, de 9 de abril. Os parágrafos de abertura do AI-1, uma espécie de introdução de um filme de terror, esclareciam com eloquência a natureza do novo regime:
“É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.
A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.
A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma.”
Sem dúvida: a retórica na ponta do fuzil é um argumento difícil de ser contestado: “a revolução vitoriosa (…) se legitima por si mesma”. Tautologia que encapsula o projeto autoritário gestado desde agosto de 1961 com a renúncia do presidente Jânio Quadros.
1937: um capitão
Rápida volta ao passado: em 1937, no seio da Ação Integralista Brasileira, um jovem capitão, chefe do serviço secreto do movimento, recebeu uma solicitação do líder máximo, Plínio Salgado. Qual seria a estratégia adotada pelos comunistas numa hipotética tentativa de tomada do poder no Brasil? A pergunta não era desarrazoada. Dois anos antes, em novembro de 1935, Luís Carlos Prestes liderara uma rebelião malograda em alguns quartéis do país. Como uma tal tentativa poderia triunfar?
O jovem capitão esmerou-se no cumprimento da tarefa. Leitor da Revue des Deux Mondes, encontrou um artigo que descrevia a ascensão do líder comunista húngaro Béla Kun, que, entre 21 de março e 1 de agosto de 1919, comandou a República Soviética Húngara. Adaptou aqui e ali, aumentou vários pontos, adicionou o antissemitismo que caracterizava alguns dos mais importantes nomes do integralismo, como, por exemplo, Gustavo Barroso, e entregou o “Boletim de Informação n° 4” para Plínio Salgado. Contudo, o autor de “O estrangeiro”, lançado em 1926, desaprovou o que lhe pareceu exageros e excessos na trama urdida pelo jovem capitão.
Mas o esforço não foi em vão. O Plano Cohen chegou às mãos do general Góes Monteiro, à época chefe do Estado-Maior do Exército. A circunstância não poderia ser mais propícia. Getúlio Vargas receava as eleições presidenciais que deveriam ocorrer em 1938, inclusive um dos candidatos mais fortes era justamente Plínio Salgado.
Juntou a fome com a vontade de comer a Constituição de 1934. Vargas divulgou o Plano Cohen como se fosse a descoberta bombástica de uma ameaça concreta e, brandindo o anticomunismo que desde 1935 nunca mais deixaria o discurso do militarismo brasileiro, decretou no dia 10 de novembro de 1937 o Estado Novo, terrível ditadura que durou até 1945. Transmitido pelo rádio, o discurso que anunciou a ditadura assim terminava:
“Quando as competições políticas ameaçam degenerar em guerra civil, é sinal de que o regime constitucional perdeu o seu valor prático, subsistindo, apenas, como abstração. A tanto havia chegado o país. A complicada máquina de que dispunha para governar-se não funcionava. Não existiam órgãos apropriados através dos quais pudesse exprimir os pronunciamentos da sua inteligência e os decretos da sua vontade.
Restauremos a Nação na sua autoridade e liberdade de ação: — na sua autoridade, dando-lhe os instrumentos de poder real e efetivo com que possa sobrepor-se às influências desagregadoras, internas ou externas; na sua liberdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins do Governo e deixando-a construir livremente a sua história e o seu destino”.
As décadas são distantes e os termos são diferentes, mas o espírito das duas ditaduras se irmana. Sintoma maior: em ambos os casos, o regime autoritário é legitimidade pela própria autoridade das armas.
(Conveniente, não é mesmo?)
O nome do jovem capitão que redigiu o Plano Cohen?
Você já adivinhou, não é mesmo? Pois é: Olímpio Mourão Filho.
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)