

CHARGES DE REP ” PÁGINA 12″ ( ARGENTINA)
Transição e caos convivem num tempo em que a verdade é descartável, a guerra é contínua e a dissidência se torna o último refúgio da lucidez e da utopia
A resposta mais fácil para essa pergunta seria dizer que estamos em uma época de transição. Afinal, todas as épocas são períodos de transição entre uma realidade e outra diferente. Mas há transições e transições. Existem transições em que as realidades entre as quais a sociedade transita são tão distintas — ou a mudança é tão rápida — que o caos, a desorientação e a incapacidade de compreender se instalam não apenas nas instituições, mas também na opinião pública e nas subjetividades. Nessas situações, uns levantam a bandeira branca, outros, a bandeira negra, e outros ainda (talvez a maioria) submergem na clandestinidade da privacidade anônima.
Estamos em uma dessas transições? E quem é esse “nós” que faz a pergunta? Será que toda essa perturbação é apenas o efeito de quem se acostumou à relativa estabilidade e à “irreversibilidade das conquistas democráticas”? E as classes e grupos sociais que jamais conheceram tal estabilidade nem se beneficiaram dessas conquistas, o que dirão, além de um encolher de ombros silencioso, revoltado ou resignado? Todavia, por mais diferentes que sejam as realidades vividas pelas diferentes classes, grupos ou mesmo nações, a verdade é que, em certos momentos, instala-se na sociedade, em meio a muitos equívocos, um sentimento de confusão, de colapso. Não se sabe sequer se é uma transição ou uma duplicidade. A transição aponta para algo novo (ou velho) que vem substituir o que havia antes: é uma ruptura em movimento. A duplicidade é uma condição existencial de simultaneidade de opostos, uma condição que potencializa rupturas ou fraturas estáticas. Transição e duplicidade são o espírito do nosso tempo.
Entre as duas Guerras Mundiais do século passado, o espírito da época — que então era exclusivamente europeu — tinha algumas semelhanças com o espírito do “nosso” tempo. A relativa paz trazida pela Primeira Guerra durou pouco e, em meio à euforia das novas conquistas científicas e técnicas, instalava-se o medo dos novos tempos, da violência, da resistência dos explorados, de uma próxima guerra para acertar as contas mal resolvidas no processo de paz anterior. Como sempre, nessas épocas os artistas são mais perspicazes que os filósofos ou cientistas sociais ao captar o espírito do tempo. Em 1927, Hermann Hesse publicou o romance Der Steppenwolf (O lobo da estepe). Nele, um homem chamado Harry Haller tem enorme dificuldade em se adaptar à sociedade em que vive e, por isso, sente-se como sendo metade pessoa, metade lobo. Por um lado, sente-se um ser humano comum, confortável na vida burguesa, interessado por literatura e música. Por outro, sente-se um animal selvagem, que apenas obedece aos seus instintos e impulsos, um outsider que odeia a sociedade burguesa e age como tal. Em determinado momento, depara-se com um livro intitulado “Tratado sobre o Lobo da Estepe”, e sua vida muda. Ele aprende a conhecer novos amigos, como a prostituta Hermínia e o saxofonista Pablo, dono do “Teatro Mágico”, onde se descobre que cada ser humano possui muitas outras características além de ser pessoa ou lobo. O romance começa com um prefácio do sobrinho da senhoria de Harry, que encontra o manuscrito muito tempo depois de Harry ter desaparecido sem deixar rastro.
Acredito que muitos de nós vivemos hoje essa duplicidade, que nada tem a ver com a lenda do lobisomem da Antiguidade clássica ou do folclore europeu medieval. Vejamos alguns sintomas das rupturas que, sendo de época, são também existenciais — e são vividas com especial intensidade pelos jovens, mesmo que, à primeira vista, pareçam os que melhor lidam com elas.
A verdade era algo que existia antes da pós-verdade – A principal assimetria entre a verdade e a mentira é que a verdade só existe enquanto busca. A busca que, em certo momento, parece mais produtiva, convincente e coerente é tomada como verdade — mas dura apenas naquele momento. O progresso científico reside nisso. Já a mentira é sempre a certeza do oposto do que se considera verdade em dado momento, como se esse momento fosse um presente eterno. Por isso, a mentira carrega sempre mais certeza que a verdade à qual se opõe. A pós-verdade é o artifício que, dispensando a busca, assume algo como verdadeiro desde que validado por uma retórica convincente ou uma crença pessoal intensa e intensamente compartilhada. Esse é o campo das fake news, da desinformação, da propaganda que já não se reconhece na propaganda tradicional. Enquanto transição, a pós-verdade é verdade pós-factual e pós-racional. Enquanto duplicidade, é o ser e o não ser como alternativas válidas, duas formas de existência igualmente legítimas. Alternativas que geram muitas outras alternativas, entregues ao domicílio das emoções pelas redes sociais uberizadas. Não há critério ético para escolher entre ser lobo e ser humano. Existem opções que não admitem variação.
Ou se é lobo ou se é pessoa; não há meio-termo – Desapareceu o “teatro mágico” mencionado por Hesse e, com ele, as nuances. Hoje, ou se é inimigo ou amigo, agressor ou vítima — em suma, ou se é lobo ou se é pessoa. A diversidade aberta, as identificações descobertas em experiências novas ou antigas, o sfumato da pintura renascentista, os gradientes e tonalidades da Mona Lisa, tal como o cangiante (fusão de cores) ou o chiaroscuro (claro-escuro), desapareceram em nosso tempo — e, com eles, a possibilidade de suavizar as relações humanas sempre que isso é possível. A ausência de nuances é o princípio da guerra e o fim da paz. É esse princípio e esse fim que estamos testemunhando. Todas as guerras começam muito antes de serem declaradas. Se refletirmos com atenção sobre o padrão dominante das relações humanas e das declarações mais salientes dos líderes políticos, concluiremos que já estamos em guerra. A desorientação e a confusão se instalam quando percebemos que a guerra contra “eles” é, no fim das contas, uma guerra contra “nós”. A guerra perpétua torna-se o único garante da paz perpétua — que nunca existiu, nem existirá.
O fascismo é tão democrático quanto a democracia – O discurso e a prática dos líderes mais poderosos ultrapassam todos os limites antes considerados intransponíveis. De repente, quem era cidadão passa a ser considerado inimigo interno e, por isso, deportado, silenciado, neutralizado. Em um único dia, Israel mata quatrocentos palestinos e propõe matar à fome e à sede os que restarem, caso não abandonem “voluntariamente” sua terra; agentes de segurança nacional trocam mensagens nas redes sociais sobre os próximos bombardeios de um país distante como se estivessem combinando uma confraternização de ex-alunos; uma sinistra comissária-chefe da (des)União Europeia faz discurso fardada, com uniforme de combate e capacete de aço (protegendo o que não tem), para que não restem dúvidas quanto ao perigo iminente; a crise habitacional resolve-se construindo bunkers.
Tudo isso ocorre na mais pacata normalidade porque, afinal, a verdadeira política é a antipolítica.
Penso o que outros pensam, logo existo – Não há tempo para pensar com a própria cabeça e, mesmo que houvesse, não seria necessário. O cotidiano é um turbilhão de preocupações mais urgentes do que pensar — e, afinal, há tanto pensamento facilmente disponível que perder tempo elaborando algo diferente seria um desperdício imperdoável. E até perigoso. O mais racional é seguir o pensamento de quem se confia, que são os amigos. Por coincidência, o que os amigos pensam é exatamente o que o “ego” sempre pensou, mesmo sem perceber. São amigos porque se confia neles ou se confia porque são amigos. Tanto faz. A coincidência de opiniões é o que importa, pois prova que não se está só — e estar só é não existir como ser pensante. Nunca foi tão fácil pensar sem o trabalho de pensar. As orações da manhã foram substituídas por começar o dia conferindo o que os amigos já pensaram. Qualquer cidadão responsável deve sair de casa informado e informar os outros, como um dever cívico. Quem discorda não é amigo e, no limite, não tem direito a existir, pois a amizade é o bem mais precioso. Se houver suspeita de que a discordância é interna, de que existem dúvidas, isso é sinal de que o inimigo interno pode estar dentro do ego. A solução mais eficaz é eliminar o mal pela raiz: esquecer ou eliminar a dúvida — se possível, com ajuda profissional ou medicamentosa.
Todos são descartáveis, exceto eu – Como se deduz do anterior, nem todos são amigos. Há inimigos, agressores, concorrentes, invejosos, privilegiados, intriguistas, bajuladores, concubinos, prostitutos, apadrinhados, protegidos, preferidos, favorecidos. O mal que acontece ao ego nunca é culpa dele, pois o ego é uma fortaleza inexpugnável e imaculada. Quem ousar atacá-lo deve ser eliminado sem piedade. Tudo o que ameaça a solidez da fortaleza — por exemplo, apontar fissuras, falhas, rachaduras, buracos — é descartável, pois é falso, e isso é atestado de forma irrefutável pelos amigos.
Ser dissidente hoje – Este diagnóstico não pretende ser exaustivo, mas é suficiente para mostrar que, nos subterrâneos deste mal-estar de época — muito diferente do mal-estar do fin de siècle do fim do século XIX —, está a crença de que o progresso é o princípio e o fim de tudo, mesmo que esse fim seja o apocalipse. Hesse viveu angustiadamente essa crença e os sinais dos desastres a que ela poderia levar — sobretudo, os desastres interiores. Dominado pela angústia, não conseguiu ver a alternativa: a utopia. Ser dissidente hoje é abandonar a ideia de progresso e substituí-la pela ideia de utopia. Não a utopia totalitária, filha bastarda do progresso, mas a utopia concreta, aqui e agora, que começa com a coragem de correr o risco de ser dissidente no tempo presente — o tempo da distopia normalizada.
BOLIVAR DE SOUSA SANTOS ” BLOG BRASIL 247″ ( PORTUGAL / BRASIL)