
Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fábio Mascaro Querido acaba de publicar Lugar periférico, ideias modernas, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP” – um grupo de intelectuais que, nos anos 1960, se aproximou do marxismo, que surgira com força na Europa no após-guerra e alcançara o Brasil. Esses intelectuais, principalmente sociólogos, criaram o “Seminário Marx” ou “Grupo do Capital” para estudar Marx, o qual, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, teve duas versões, a primeira, em 1958, puramente acadêmica, e a segunda, de caráter mais político, após o golpe militar de 1964.
Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência da República em 1995, o seminário se tornou célebre, sempre citado pela imprensa conservadora de maneira simpática, porque os autores envolvidos já haviam abandonado há tempo o marxismo. Fábio Mascaro Querido diz que esse foi o “mito fundador” do grupo.
O núcleo do grupo – aqueles que proponho chamar de “marxistas neoliberais” – foi constituído por Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti e Francisco Weffort. Trata-se de um oximoro que se aplica bem a eles, que se encantaram com o marxismo nos anos 1960, quando ainda estava viva a esperança na revolução socialista. Tornaram esse marxismo menos contraditório e revolucionário, e definiram os dois mais importantes sociólogos dos anos 1950, Gilberto Freyre em Pernambuco e Guerreiro Ramos no Rio de Janeiro como seus adversários.
Um caso clássico de competição universitária. Concentraram seu ataque em Guerreiro Ramos porque era desenvolvimentista, como, aliás, também eram Celso Furtado, Helio Jaguaribe e Ignacio Rangel – todos do ISEB.[1] Em 1963, Fernando Henrique Cardoso defendeu sua livre-docência – um livro escrito especialmente para demonstrar que no Brasil não havia uma burguesia nacional – uma tese central dos desenvolvimentistas que defendiam uma coalizão de classes associando empresários industriais nacionalistas, os trabalhadores urbanos e a burocracia pública moderna.
No final dos anos 1960, Fernando Henrique Cardoso abandonou o marxismo e desenvolveu a “teoria da dependência associada”, que defendia a subordinação do Brasil ao Império, embora não deixasse isto claro.[2] Mas os americanos compreenderam muito bem, o que permitiu que a dependência associada lograsse repercussão internacional, embora muitos dos que a divulgavam não compreendessem seu caráter “associado”. Em síntese, no final dos anos 1960, eles supunham ser marxistas mas já eram quase liberais, e nos anos 1990 tornaram-se de vez neoliberais.
A denominação marxismo neoliberal naturalmente não se aplica a Roberto Schwarz e Chico de Oliveira, que eram do grupo, nem a Octávio Ianni e Florestan Fernandes, que não eram realmente do grupo. Florestan Fernandes foi o mestre de todos; foi o maior sociólogo que a USP já teve; inicialmente associou-se à sociologia da modernização, e depois, indignado com o que via no Brasil, tornou-se um marxista revolucionário. Fábio Mascaro Querido naturalmente não usa essa expressão porque ele era antes um admirador do que um crítico do marxismo neoliberal.
Fábio Mascaro Querido distingue Roberto Schwarz dos demais, que permaneceu marxista através dos anos, e, como afirma ele, “radicalizou a dimensão ‘negativa’ da crítica.” Como crítico literário e escritor, ele não se preocupou em propor políticas, nem fez concessões para ser aceito no seu entorno. Ao contrário do núcleo duro do grupo, Roberto Schwartz continuou nacionalista como fora antes dele seu grande mestre, Antonio Candido. E se associou a Paulo Arantes, um crítico do marxismo neoliberal. Entre todos, é o único que, no plano teórico, é reconhecido internacionalmente.[3]
Fábio Mascaro Querido usou o pensamento de Roberto Schwarz como uma referência ou fio condutor do livro e dedicou-lhe dois excelentes capítulos. Salientou o amplo papel que teve Theodor Adorno em seu pensamento, como também a crítica da modernização realizada por Robert Kurz em 1991, em um momento em que a União Soviética estava entrando em colapso.[4] Fábio Mascaro Querido deu pouca importância ao nacionalismo do crítico que contradiz a sua perspectiva negativa, mas no final do segundo ensaio citou um texto significativo: “a última palavra não pertence à nação, nem à hegemonia ideológica internacional, mas pertence ao presente conflituado que as atravessa”.[5] Este presente conflituado é o da luta de classes dos grupos de interesse específicos para este ou aquele problema.
Nos anos 1960 e 1970, o núcleo neoliberal-marxista e, mais amplamente, a esquerda antivarguista combateram o desenvolvimentismo nacionalista porque pretendiam ser revolucionários, enquanto o desenvolvimentismo implicava um compromisso da classe trabalhadora e da esquerda social-democrática com a burguesia. O núcleo acadêmico neoliberal-marxista seguiu o mesmo caminho; ao contrário da visão desenvolvimentista, pretendia não fazer concessões; acabou concedendo tudo anos 1990, quando se tornou neoliberal. E a esquerda antivarguista combateu-o porque ela definiu um “culpado interno” pela derrota: haviam sido os desenvolvimentistas, que ao invés de serem revolucionários, haviam apostado em um acordo da classe trabalhadora com a burguesia industrial intermediado pela burocracia pública.
O núcleo só passou a ter alguma relevância a partir do golpe militar de 1964 – da grande derrota da social-democracia desenvolvimentista que aconteceu então. Derrotados os adversários graças ao golpe, estava agora na hora dos sociólogos da USP assumirem o comando intelectual da esquerda. Coisa que fizeram, embora estivessem caminhando para deixar de ser de esquerda. No capítulo 2 “A Revanche dos Paulistas”, Fábio Mascaro Querido relata a nova fase. Na partida anterior, os desenvolvimentistas estavam no poder, os marxistas neoliberais estavam simplesmente fora do jogo. Em 1964, entraram no jogo, tornaram bem conhecidos, lideraram grande parte da esquerda, e esta deixou de ser nacionalista. É preciso, porém, considerar que a esquerda sempre teve dificuldade de adotar posições nacionalistas ou desenvolvimentistas, pois acreditava na possibilidade de uma revolução socialista no curto prazo.
Eles estavam fora do jogo, mas desesperados para entrar, especialmente para derrotar os dois mais importantes sociólogos dos anos 1950, Guerreiro Ramos e Gilberto Freyre. O golpe militar encarregou-se de derrotar Guerreiro ao cassar seu mandato de deputado federal e por dez anos, seu direito de se recanditar. Enquanto Celso Furtado foi exilado, ele e seus companheiros do ISEB, Jaguaribe e Rangel, foram submetidos a intenso ataque pela esquerda alienada para qual o nacional-desenvolvimentismo associado a Getúlio Vargas era inaceitável. Isto, além do ataque pela direita.
O próximo passo foi o livro de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependência e desenvolvimento na América Latina (1969),[6] no qual a dependência se torna a causa do desenvolvimento ao invés do obstáculo. Era a “teoria da dependência associada” que surgia. A nova verdade, que se espalhou rapidamente por toda a esquerda intelectual, afirmava taxativamente que uma coalizão de classes desenvolvimentista associando os empresários industriais às esquerdas e à classe trabalhadora era impossível. A burguesia não existia nem poderia existir. (Na verdade, a burguesia industrial desenvolvimentista existiu no Brasil em dois breves períodos [1950-1964 e 1967-1980]).
Mas a falta de uma burguesia nacionalista não era problema, porque o chamado Império era na verdade apenas um hegemon benevolente, suas empresas multinacionais estavam contribuindo para o desenvolvimento do país, e bastava que o Brasil se associasse a ele que se desenvolveria. Não foi isto que aconteceu: em 1990 a submissão aconteceu, em 1995, se aprofundou, e o país entrou em quase-estagnação.
Não se imagine, porém, que os intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas escaparam do ataque de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, ainda que esse ataque não fosse perfeitamente claro. Em um primeiro momento, a CEPAL de Raúl Prebisch e Celso Furtado percebeu que estava sob ataque, e não quis publicar o livro através do ILPES; mais tarde, porém, ela se adaptou à crítica, acomodou-se ao Império e perdeu qualquer relevância no plano das ideias. A CEPAL somente existiu como uma ideia – a do desenvolvimentismo estruturalista clássico voltado para a industrialização – entre 1949 e 1960 sob o comando de Raúl Prebisch. Em 1964, os desenvolvimentistas foram derrotados e obrigados a ficar silenciosos. No começo dos anos 1970 a CEPAL abandonou o desenvolvimentismo.
Nos anos 1970, essa mesma esquerda, desprevenida, deixou-se envolver pelas ideias propostas por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. No plano econômico, essas ideias foram aceitas, provavelmente porque a ideia de associação ao Império não estava clara no livro e nos trabalhos que seguiram. E porque a esquerda estava ressentida com o golpe de 1964.
Por outro lado, a versão realmente marxista da teoria da dependência, de André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos também equivocada porque contava com a revolução socialista na América Latina no curto prazo. Essa versão sofreu um ataque violento e injusto em artigo assinado por José Serra e o próprio Fernando Henrique Cardoso.[7] Creio que a iniciativa tenha sido mais de José Serra do que de Fernando Henrique, porque este é um homem da melhor qualidade cuja personalidade é incompatível com uma atitude como aquela.
Em 1970, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, e com apoio da Ford Foundation, o Cebrap foi criado. Logo ele se torna o grande centro de estudos em defesa da democracia e de crítica à desigualdade. É nessa época que sou convidado a ser membro do Conselho da nova entidade de pesquisa, e me junto a eles. Eu estava isolado na Fundação Getúlio Vargas e precisava de diálogo. Percebia que minhas ideias desenvolvimentistas não eram ali bem vistas, mas fui muito bem recebido, comunguei com eles a luta contra a ditadura e pela diminuição da desigualdade, e me senti bem no Cebrap, onde além dos intelectuais já citados, estavam figuras notáveis como Chico de Oliveira e Paul Singer. Lutávamos todos contra o regime militar.
Nessa época, porém, muitas das coisas que eu estou aqui narrando não estavam claras para mim. Entre 1995 e 1999, eu participei do governo Fernando Henrique Cardoso, fui ministro da Administração Federal e Reforma do Estado e da Ciência e da Tecnologia e, sob influência das ideias que me envolviam, minhas convicções desenvolvimentistas e meu interesse pelo marxismo perderam força (mas apenas por algum tempo). Fiquei, porém, decepcionado pelo caráter neoliberal que assumiu a direção da economia, e afinal em 2003, afinal revi minha posição em relação a meu amigo Fernando Henrique, voltei a ler seu livro com Enzo Faletto, compreendi seu caráter anti-nacional, e escrevi o ensaio “Do ISEB e da CEPAL à teoria da dependência”, publicado em 2005, cuja primeira cópia eu entreguei a ele. Não era um rompimento pessoal, mas intelectual; afinal eu havia compreendido o sentido de sua obra e de seu pensamento.
Estimulado pelo excelente livro de Fábio Mascaro Querido, decidi nesta resenha voltar agora ao tema da história intelectual. Uma resenha mais crítica do que fora o artigo de 2005 – uma crítica ao marxismo neoliberal. Afinal, eu me pergunto, qual foi a contribuição ao Brasil desse grupo de sociólogos, cientistas políticos e filósofos? Como compará-lo com a contribuição dos desenvolvimentistas social-democráticos? Os desenvolvimentistas associaram-se a Vargas, ainda que ele tenha sido um ditador entre 1937 e 1945; associaram-se porque ele foi o grande estadista que promoveu a industrialização e o grande desenvolvimento econômico do Brasil.
Os principais desenvolvimentistas tiveram uma influência significativa na realização da revolução capitalista brasileira, que aconteceu entre 1930 e 1980. Alguns deles eram socialistas, mas sabiam que a revolução socialista não era uma possibilidade realista. Enquanto isso, nossos marxistas neoliberais flertaram com a revolução sem muito empenho, e mais tarde se associaram ao Império e se tornaram neoliberais.
Na conclusão do livro, Fábio Mascaro Querido afirma que enquanto os intelectuais do ciclo nacional-desenvolvimentista-popular das décadas de 1950 e 1960 estavam interessados em um projeto de modernização nacional (anti-imperialista, eu acrescentaria), “os acadêmicos paulistas expressavam a redefinição entre intelectuais e política ocorrida na esteira das transformações pelas quais passaram tanto a sociedade quanto a universidade brasileira, a partir dos anos 1970 (p. 261)”.
Ou seja, eles lograram se adaptar à realidade social e política que os circundava, ao invés de tentar mudá-la. Algumas vezes eu vi Fernando Henrique, enquanto Presidente da República, agir procurando se adaptar ao que estava acontecendo ao invés procurar moldá-lo. Ele e seus companheiros eram mais sociólogos do que agentes republicanos. O livro de Fábio Mascaro Querido é uma notável contribuição à história intelectual do Brasil.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV) [https://amzn.to/4c1Nadj]
Versão ampliada de artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo.
Referência

Fábio Mascaro Querido. Lugar periférico, ideias modernas – aos intelectuais paulistas as batatas. São Paulo, Boitempo, 2024, 288 págs. [https://amzn.to/4loCSt4]
Notas
[1] Furtado era associado ao ISEB; os três outros parte do ISEB – o instituto que reuniu os principais intelectuais nacionalistas dos anos 1950.
[2] Não confundir a teoria da dependência associada da teoria da dependência de Andre Gunder