A DIREITA INTRANSIGENTE

CHARGE DE AROEIRA ” BLOG BRASIL 247″

A postura interpretativa de Leo Strauss é afirmar que se desenvolve no texto maquiaveliano uma guerra contra os modos ordinários e o espírito que lhes dá sustentação moral

“[Os trabalhadores/ras] necessitam de [uma esquerda que] […] ultrapasse [ou ao menos equilibre] a direita na clareza de pensamento [e na ação prática]” (Leon Trotsky, Conferência sobre a Revolução Russa).

“A arma da crítica [deve se articular com a] crítica das armas; a força material só será derrubada pela força material; mas a teoria [e as ideias podem] tornarem-se força material [quando] se ‘fundem’ [com] as massas” (Karl Marx, Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel)

A expressão direita intransigente foi formulada pelo historiador, ensaísta e editor da New Left Review, Perry Anderson. Publicado nas páginas da London Review of Books em 1992 e traduzido para o nosso português pela editora Boitempo em 2002, o artigo tratando da questão e tendo o mesmo nome da noção – A direita intransigente no fim do século –, sustentava que, “o mais importante quarteto de teóricos europeus da direita intransigente, [têm suas] ideias agora da[ndo] forma – por mais ou por menos que os principais praticantes tenham consciência disso – à grande parte do mundo mental da política ocidental do final do século”.

Michael Oakeshott, Friedrich von Hayek, Carl Schmitt e Leo Strauss, assim, constituíam o grupo de pensadores conservadores e/ou liberal-conservadores, que impactou os modos de compreender e enfrentar a política de massas, a democracia de massas, em avanço desde o arco que vai da Comuna de Paris até a construção do Estado de Bem-Estar Social, após a Segunda Guerra Mundial. A preocupação deles era em “afastar alguma coisa”; foram escritores do katechon.

E por meio de seus respectivos pensamentos e reflexões buscavam conter (também) com a força das ideias os mais diversificados modos de irrupção e expressão dos anticristos – na leitura deles essa era a figuração dos que desejavam uma vida efetivamente emancipada (igualdade efetiva e liberdade concreta) da ordem opressora que vigorava nas sociedades ocidentais naquele momento.

Perry Anderson, lapidarmente, afirmou que “o katechon [para Oakeshott, Schmitt, Hayek e Strauss] limita a caminhada do mal na terra até a chegada do juízo [final]”. Vale dizer, os κατεχώνων são aqueles que restringem os potenciais de insurreição (latente) – a rebeldia dos anticristos, aqueles que Walter Benjamin, na Tese VIII de Sobre o Conceito de História, disse que teriam que instaurar a partir “da tradição dos oprimidos […] [um] verdadeiro Estado de exceção” – que constituem a subjetividade moderna: nas suas mais variadas formas (a principal delas, por óbvio, os trabalhadores/ras, mas não só…). Dentre o quarteto, como vimos, está Leo Strauss.

Quem é Leo Strauss e qual sua importância no debate de ideias hoje?

Leo Strauss foi um dos mais importantes filósofos políticos do século XX. Sua obra é composta por interpretações e leituras hermenêuticas, que entre seus pares não teve igual, de todo o pensamento canônico de Platão a Marx. Nascido na alemã em 1899 descendente de uma família de judeus, antes de se tornar um dos alunos de Martin Heidegger (como Hannah Arendt, Hans-George Gadamer e Karl Lowith) na Universidade de Friburgo, o autor de Direito Natural e História e Da Tirania se formou no prestigiado Gymnasium Philippinum e passou por um período na Universidade de Marburgo, na ocasião um grande centro neokantiano.

Seu doutorado, uma pesquisa sobre o problema do conhecimento em Jacobi, teve como supervisor o filósofo Ernst Cassirer. Logo após esse período, fim dos anos 1910, inícios dos anos 1920, o pensador que exerceu certa “influência” em Leo Strauss é Carl Schmitt – e sua obra O conceito do político. Não há espaço aqui para desenvolver esse diálogo de ausentes para usar expressão de Heinrich Meyer.

Indico apenas que Leo Strauss resenhou criticamente o texto; na recusa à modernidade Carl Schmitt ainda estava aprisionado no horizonte liberal, a noção de amigo-inimigo pressupunha, perigosamente, para a ordem política e social vigente a aceitação da pluralidade existencial-moral de adversários. O que Strauss repudiou – recuperando a lei natural antiga (hierárquica e que estabelecia que os indivíduos tinham disposições naturais desiguais e imutáveis), que foi buscar na República de Platão.

Com a ascensão do nazismo nos anos 1930, Leo Strauss emigrou para a França e para Inglaterra (aqui é onde ele produziu uma das mais fundamentais interpretações sobre o teórico inglês do Estado Moderno, Thomas Hobbes), até chegar nos Estados Unidos na década de 1940. Após passar na New School for Social Research, em Nova York, ele se transfere para a Universidade de Chicago, para dar aulas no departamento de ciência política. De 1949 a 1969 Leo Strauss ensinou em aulas e seminários a arte de ler os textos dos grandes autores da filosofia política, novamente, de Platão a Marx.

Após se aposentar em Chicago Strauss passou anda pelo Claremont College, na Califórnia, e no St John College, em Washington DC. Em Chicago se formou o straussianismo, dividindo-se naqueles que trilhariam a carreira acadêmica e naqueles que passariam a compor uma corrente teórico-político e a ocupar postos no Estado norte-americano. Entre os últimos estão os que seriam as mentes por trás do neoconservadorismo; suas ideias iriam interferir na ação prática dos governos, Ronald Reagan nos anos 1980 e George W. Bush nos anos 2000.

Aqui – Irving Kristol e Paul Wolfowitz são os nomes mais destacados. Recentemente, Peter Thiel tem projetado seu nome, não como um herdeiro específico e declarado do straussianismo, mas sim como um leitor atento de Leo Strauss. Peter Thiel, de acordo com Hugo Albuquerque em artigo para a Jacobin, é a mente estratégica que organiza as ações do trumpismo; homem das Big Techs e com laços (íntimos) no setor de alta tecnologia da CIA, é dele a forte sugestão para JD Vence como vice de Donald Trump. Para Hugo Alburquerque ele se coloca como “o cardeal Richelieu de Trump”.

Contudo, não é só o intelectual da Jacobin a expressar tais considerações. Martim Vasques da Cunha, um dos mais eruditos filósofos políticos conservadores entre nós, também corrobora essa análise. Em artigo para o Estado de S. Paulo ele afirma que Peter Thiel compreende que existem três respostas, soluções, para as encruzilhadas de nosso mundo: Carl Schmitt, Leo Strauss e René Girard. Em 2004, no contexto das guerras travadas pelos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque, Peter Thiel produziu o ensaio The Strauss Moment.

No que segue proponho uma leitura dos sentidos de uma das mais importantes obras de Leo Strauss, a exuberante “crítica” a Maquiavel em Thoughts on Machiavelli. Infelizmente minha argumentação não será das mais fáceis de compreender, mas é inevitável ao se enfrentar a magnitude e a densidade do texto straussiano; sobretudo no atual debate de ideias entre direita e esquerda. Considere-se antes o seguinte juízo: Leo Strauss escreveu as mais belas e densas páginas da filosofia política do século XX, sua obra erudita deve ser lida e respeitada mesmo pelo que dela discordam, a ela deve ser concedida a máxima reverência crítica.

Harvey Mansfield Jr. sustenta, categoricamente, que Thoughts on Machiavelli doravante foi escrito por Leo Strauss com dois objetivos: o primeiro seria a defesa da utilização das armas na proteção da cidade e como destino da ação política, e mesmo das “boas cidades” (1975, p. 383); e o segundo seria a necessidade de se travar uma “guerra espiritual” contra os que desejam as novas ordens (Ibidem), os que querem a transformação política e social. A leitura imanente que faço, a seguir, de Thoughts on Machiavelli seguirá esses dois eixos, sobretudo o primeiro.

Com efeito, Thoughts on Machiavelli pode ser interpretado como a resolução aproximada de Strauss para as questões que atravessam parte de suas reflexões. Não há nenhuma dúvida de que Maquiavel foi, e é, o principal pensador político moderno. E, à exceção de Marx, ele foi o único teórico político cujo nome foi associado a uma prática teórica e a um modo de existência. A angustiante busca moderna de Maquiavel pelas coisas novas – pelo extraordinariamente novo, é o que o marcou, para a posteridade, eternamente.

E mais, como e em quais condições se instaurar o novo foram as preocupações constitutivas de Maquiavel (e do maquiavelismo). Não foi mera fortuidade que um dos principais teóricos políticos marxistas do século XX havia sido, a seu modo, maquiaveliano. (Gramsci não leu Maquiavel somente por ser italiano como ele; o pensador sardo desejou, por toda a vida, as coisas novas e as estratégias e táticas para alcançá-las.) Do mesmo modo, não foi por mera circunstância histórica que a linguagem maquiaveliana circulou na Inglaterra de Harrington e nas colônias americanas dos Federalistas – todos estavam à procura do inteiramente novo; nas formas de governo, na organização das instituições da República, e nos modos-hábitos culturais como modalidade de agir na política.

Leo Strauss compreendeu tal importância de Maquiavel, muito provavelmente, quando o leu pela primeira vez. Em carta a Eric Voegelin, ele disse: “começo lentissimamente a escrever um livro sobre Maquiavel. Não posso evitar de amá-lo, apesar de seus erros” (Carta 43 de 22 de maio de 2009 [1953]). E, no prefácio de 1957, ele afirmou que sua obra deveria ser lida como “reflexões sobre o problema de Maquiavel” (Strauss, 1978, [1957], p. 5).

Maquiavel “foi o professor do mal”, um pensador político para quem a tática de assassinato deveria ser seguida por todo príncipe virtuoso e que desejava, convencionalmente, inaugurar uma nova forma estatal. Portanto, o Maquiavel straussiano, se colocava radicalmente contra as ordens ordinárias e, supostamente, perenes da vida. Por outras palavras, somente Maquiavel criou uma ciência política, consciente e intencionalmente, destinada àqueles jovens políticos que procuravam pela ruptura definitiva e radical com os antigos e com os modos natural e bíblico de ser das coisas.

Ele, nas palavras de Leo Strauss, ousou afirmar e definir para a posteridade que “os fundadores dos mais renovados Estados do mundo foram fratricidas: [e que] a fundação da grandeza política repousa necessariamente no crime” (Ibidem, p. 13). Assim, no fim do seu trabalho, Strauss interpretaria, por intermédio de Maquiavel (e como Maquiavel) que toda a vida humana, a situação dos homens na terra, é uma guerra pela existência. Os homens e os Estados, os indivíduos e os governos, lutam para deixarem sua condição natural, e, justamente por isso, eles são potenciais pecadores.

Uma vez que “a situação do homem [é dada] pela necessidade de pecar” (Ibidem, p. 192), a solução para essa circunstância do ponto de vista do homem mesmo e dos governos era aceitá-la impreterivelmente. A moral nunca foi o tema da ciência política de Maquiavel, ele teria ensinado isso em dois livros: “O príncipe e o Discursi sobre os primeiros dez livros d[a] [história] de Lívio” (Ibidem, p.15). Nos dois trabalhos, Maquiavel se diz estudioso das “coisas do mundo” e todo seu ensinamento é o ensinamento sobre as convenções encrostadas do mundo, tal como essas se apresentam aos príncipes e aos cidadãos privados, para quem os livros são dedicados (Ibidem, pp. 19, 21).

(Encrostamento, encontrado, significa no contexto das reflexões de Leo Strauss, as várias modalidades do artifício humano que vão se sobrepondo à natureza ordinária, à natureza das origens; aquele é constituído ao longo da história pelas convenções forjadas pelos homens em ação, tendo seu ponto mais significativo a modernidade secularizada e seu impulso transformativo e insubmisso – nenhum pensador de direita, conservador e liberal-conservador aceitou esse estatuto humano, intensificado em nosso tempo; o straussianismo se opôs a isso intransigentemente.)

Thoughts on Machiavelli tem como premissa fundamental, portanto, o fato de que Maquiavel mobilizava seu conhecimento das coisas do mundo para propósitos práticos: para a ação. Posto que as coisas do mundo são as convenções do mundo, e estas são consequências do fato de que os homens desejam romper com sua situação natural – seu modo de sina permanente, Maquiavel tinha, para si, que seus trabalhos (e na medida em que era sabedor das coisas do mundo) deveriam ser dedicados aos homens de ação transformadora das ordens antigas; os dois eram: os príncipes de sua realidade imediata [on actual Italian Prince] e os governantes ou os teóricos-estrategistas potenciais do futuro moderno, ou seja, os futuros príncipes: em linguagem marxista, os revolucionários.

Com efeito, para Leo Strauss, O Príncipe foi dedicado aos homens práticos italianos e os Discorsi para a era moderna vindoura e sua luta contra o ordinário (Ibidem, pp. 22, 23). Dado que os livros de ciência política de Maquiavel são oferecidos aos homens de ação (da prática) e que um deles (O Príncipe) era dirigido para os políticos do tempo mesmo do florentino e que outro (os Discorsi) deveria ser o ensinamento para príncipes eventuais de um momento político e cultural mais encrostado, Thoughts on Machiavelli argumenta, então, que a preocupação subjacente de Maquiavel era com o ato de fundação – com o ato de fundar novos reinos e o que fazer após a morte do fundador original.

Quer dizer, como novas ordens podem ser mantidas além, ou depois, da morte do fundador (Ibidem, p 29). Assim, uma vez ocorrida uma ruptura com os modos e ordens antigas (naturais, ordinárias, os modos de ser imutáveis…), e de serem estabelecidas novas convenções, “novas ordens”, quais as ações práticas do príncipe e seus herdeiros futuros (os príncipes iminentes) para manter o novo e propor novas convenções a outras civilizações e sociedades? Nos termos de Harvey Mansfield Jr., a questão de Leo Strauss ao se dedicar a estudar Maquiavel era, na verdade, o maquiavelismo de Maquiavel. (1975, p. 383) ou, como Maquiavel além de ser o fundador, se transformou no professor de fundadores futuros – de revolucionários contra a fortuna, Deus e a ordem natural.

Contudo, vamos reconstruir ao estilo imanente, algo que já afirmei mais acima. Leo Strauss compreendeu, na trilha argumentativa de Maquiavel, que a vida humana é uma guerra pela existência. No âmbito teórico do straussianismo, nossas maneiras de ser são incessantes processos de convencionalismos históricos. O encrostamento civilizatório é, na verdade, a constante luta para se abandonar nossos modos de ser enquanto tais (ahistóricos), a ideia de natureza; é a realidade, por definição, da guerra sem fim pela existência [progressing boundlessly] que fez Maquiavel escrever seus dois trabalhos de ciência política (de teoria da ação) – ademais ele sabia que foi a necessidade que tornou os homens ambiciosos construtores.

Dessa sorte, portanto, o mundo, a sociedade (e as coisas que os representam) e a linguagem que simboliza a ambos “não teriam, levados pelo trabalho dos homens à [tais] alturas pelas quais eles são vistos se os homens não tivessem sido dirigidos pela necessidade” (Strauss, 1978 [1957], p. 52). A estrutura convencional das necessidades é o que impulsiona os príncipes a buscarem novos modos e novas ordens: dois aspectos constitutivos da era moderna.

Isso implica, para o príncipe, a conquista, a aquisição, o domínio e a instauração decisionista do poder e o uso da violência: Maquiavel escrevia para as multidões que desejavam a instauração de uma nova história, de uma nova sociedade, de uma nova forma de existência. Configura-se, assim, a questão das medidas extraordinárias contra as ordens ordinárias antigas, a “extinção do sangue antigo” (Ibidem, p. 57).

E, para se extinguir o sangue antigo, não se pode ser Savonarola, de modo que as boas armas são necessárias para se instaurarem novas convenções. Ora, ser príncipe, em uma palavra, é o “trabalho de um revolucionário” (Ibidem, p. 61). Com isso, a primeira exigência da civilização maquiaveliana é não se ater ao moralmente “certo ou errado” (Ibidem, p. 67) na busca pelo novo; somente as armas devem falar na ação prática do príncipe e das multidões que conduz.

Maquiavel sabia que a liberação da Itália obrigava a uma revolução no pensamento (Ibidem), é o que Mansfield (1975, p. 383) considera a guerra espiritual de Leo Strauss contra seu tempo; Gramsci retomaria o florentino em chave comunista: as metáforas militares (a ciência e o momento militar da luta) do sardo tinha na hegemonia, a batalha pelo espírito (por vezes para se entender a própria necessidade do uso das armas), seu complemento tático.

Por isso é que a técnica, ou tática, da conspiração foi um dos grandes legados de Maquiavel para a civilização moderna, pois não pode haver medidas extraordinárias contra os modos de ser “impostos” pela natureza (como queria Strauss), a existência ordinária – sem conspiração. Todo príncipe – e aqueles que desejam derrubar as velhas instituições estabelecidas – deve ser, necessariamente, um “conspirador” (Strauss, 1978 [1957], p. 76) e as “novas ordens sociais” (Ibidem, p. 82), a ruptura com a ideia de natureza, é o que Thoughts on Machiavelli buscou entender.

Em vista precisamente disso, Leo Strauss, na sequência de seu trabalho, passa a tratar dos profetas, daqueles indivíduos voltados para a política prática do futuro, os que serão os novos príncipes; não os príncipes de sua Itália livre, mas os príncipes das convenções vindouras. Há dois tipos de profetas: os que enfrentarão o ordinário e o direito natural “armados” (Ibidem, p. 84) e os que enfrentarão os mesmos desafios “desarmados”; o “maior profeta armado [foi] Moises [e] o único profeta desarmado […] [foi] Savonarola” (Ibidem). Novamente seguindo Harvey Mansfield, “boas cidades não poderão ser indiferentes à questão militar [à ciência das armas]” (1975, p. 383).

Chegamos com isso ao capítulo principal de Thoughts on Machiavelli. Aqui, Leo Strauss discute a intenção de Maquiavel nos Discorsi. O núcleo deste capítulo é caracterizado pela articulação de duas circunstâncias teóricas: pelo fato de Leo Strauss afirmar que Maquiavel intensifica sua imitação das coisas do mundo (Strauss, 1978 [1957], p. 85) e por ele – Maquiavel – saber que seu empreendimento possuía aspecto ousado (Ibidem). Ou seja, Maquiavel, aqui, cria uma teoria das coisas do mundo e faz isso ousando na estrutura esotérica da narrativa teórica. Na medida em formos reconstruindo o texto straussiano com vistas à sua afirmação da teoria das coisas do mundo, presente nos Discorsi, lateralmente apresentaremos a ideia da ousadia maquiaveliana concernente a escrever entre as linhas.

A postura interpretativa de Leo Strauss é afirmar que se desenvolve no texto maquiaveliano uma guerra contra os modos ordinários e o espírito que lhes dá sustentação moral (Mansfield, 1975, p. 383). Assim, o Segundo Livro dos Discorsi é dirigido, em maior medida que o Primeiro e o Terceiro, ao “contraste entre os estados antigos armados e os estados modernos desarmados” (Strauss, 1978 [1957], p. 102). A configuração argumentativa do Segundo Livro, ainda que dedique grande atenção ao mundo antigo, é devotada a advertir e a criticar o mundo moderno.

O espírito desse livro, do ponto de vista straussiano, é a arte da guerra, é a postulação de que as sociedades convencionalistas têm de fazer uso de seus exércitos, se quiserem a ruptura com o ordinário. Com efeito, ao imitar os romanos – que “governaram sobre outras cidades e países”, foram capazes da guerra pela existência – os profetas modernos têm de estipular para si o caráter imprescindível das armas e da guerra. Contudo, Maquiavel, por ser o professor da dissimulação, do engano, o mestre da conspiração que usa todos os artifícios da cultura escrita e falada para atingir seus objetivos de ação prática, se apropria de Roma somente porque ela serve de “modelo de julgamento para os modernos” (Ibidem).

Maquiavel, sobretudo nos Discorsi, jamais pretendeu qualquer retorno às formas de experiência política que estivessem próximas da antiguidade e da ideia de natureza transcendente e imutável: não foi ocasional que ele asseverou, na dedicatória de sua obra, que escrevia porque era um conhecedor das “coisas do mundo” (Ibidem, p. 85). Um imitador ingênuo ou um escritor que estivesse a propor, como estratégia de ação política, a imitação, não proporia, na dedicatória de sua obra, uma formulação tão direcionada a agir na prática contingente.

O argumento de Leo Strauss, para isso, é afirmar acerca do uso estilizado (dissimulador) que Maquiavel faz de Tito Lívio, pois o uso de Lívio pelo maquiavelismo visa suprimir as “estórias livianas”. Claramente, nenhum teórico que propusesse a imitação tomaria tal procedimento. Roma e suas estórias narradas por Lívio eram modos de Maquiavel adquirir a autoridade necessária para um profeta revolucionário que deseja extirpar o sangue ordinário.

Thoughts on Machiavelli ainda enuncia que, se Maquiavel desejasse verdadeiramente usar as estórias livianas para o modo de imitação, não faria citações em latim em um livro (para) italianos (Ibidem, p. 107); a autoridade de Lívio para um profeta das novas ordens e dos novos modos era mais importante para a guerra prática e espiritual do que as reais estórias livianas. Ora, a autoridade de Lívio seria posta frente à autoridade da Bíblia. A arte da guerra e o uso das armas devem ser protegidas pela moldura da guerra espiritual. O decisionismo das armas, em guarda pela ordem natural hierárquica e desigual, é acompanhado pelo decisionismo da cultura e do espírito.

Muitas outras questões estão presentes na grandiosa obra de Leo Strauss. Para objetivos específicos deste ensaio, e para findá-lo, tratarei de três temas, articuladamente, de modo a fazer emergir do texto straussiano a ciência política das armas contra o encrostamento moderno e civilizatório (as convenções transformadoras), que abrigam as possibilidades contingentes de insurreição dos de baixo – os anticristos que precisam ser contidos, restringidos, pelo katechon.

Vejamos, assim, o sentido da constelação imanente de Thoughts on Machiavelli (i) em torno do povo, (ii) da construção deliberada da ação prático-política e (iii) o problema fundamental da fortuna. Nenhum sujeito histórico, se tomarmos, obviamente, os nexos internos da hermenêutica de Strauss, mais se identifica com o problema das invenções convencionalistas do que o povo. Foi esse ator, na era moderna sobretudo, que mais buscou lutar contra a ideia de natureza, contra as gradações ordinárias, em favor das novas ordens e novos modos.

Com isso, no Thoughts on Machiavelli a plebe era próxima dos “caluniadores” (Strauss, 1978 [1957], p. 113), na Roma antiga; Manlius Capitólio tornou-se líder da plebe e atacou espiritualmente os nobres: e, na Florença moderna, o próprio Maquiavel verificou que a plebe, por meio daqueles que falavam por ela, levaram os “grandes homens ao desespero” (Ibidem). Leo Strauss está introduzindo uma discussão fundamental para sua teoria política, a saber: a rebeldia da plebe maquiaveliana contra a autoridade da fortuna, do destino, da sina eterna – em outros termos, a noção de que as convenções, especialmente as modernas, são processos constantes e incontidos, chegando até o ápice de mudanças revolucionárias, de ocultamento e subversão do modo de ser natural das coisas.

Disso se segue que o ponto de construção dos Discorsi e, em destaque, o ponto de abordagem sobre o “caráter da classe governante” (Ibidem, p. 128) é, para Leo Strauss, o “ponto de vista das plebes” – na linguagem do materialismo histórico das classes trabalhadoras. Se tomarmos a escrita nas entrelinhas, no caso de Maquiavel o que é omitido é o que deve chamar a atenção (dentro de um amplo conjunto de assuntos associados aos seus temas) e, uma vez que ele era conhecedor das coisas do mundo, veremos que é para a multidão futura que o livro se destina.

Diz Strauss: “unicamente no capítulo 58 dos Discorsi o título do capítulo assevera a superioridade da multidão [do povo] frente ao príncipe” (Ibidem); por isso foi autorizado por Maquiavel que a plebe cometesse a fraude, o roubo, derramasse o sangue natural e planejasse o incêndio contra os príncipes. Contrário à “reverência aos homens mais antigos”, mais próximos da natureza, Maquiavel se postava contra a “opinião comum, de acordo ao qual a multidão é inferior em sabedoria [e capacidade de ação] aos príncipes” (Ibidem, pp. 126, 128).

Ao construir sua teoria convencionalista-insurrecional do povo, Maquiavel procurava aquele lugar no qual se pode encontrar a melhor forma de governo, aquela forma de governo [polity] que se afastasse das formas mais antigas – como profeta moderno, ele desejava inaugurar novas ordens e novos modos. Mas Lívio, ou as estórias livianas, havia demonstrado que a forma do governo de Roma era dada pela fortuna – “o governo civil antigo de Roma era uma obra da fortuna [chance]” (Strauss, 1978 [1957], p. 116) – que estava muito além do encrostamento do humano.

Embora escrevesse sobre Roma, Maquiavel desejou, de alma, ir além dos modos antigos e das ordens mais próximas do sangue ordinário, foi por isso que ele ensinou a seus leitores futuros, aos jovens modernos, que eles deveriam ser melhores do que os romanos e que não deveriam confiar a construção do novo governo à sorte: deveriam agir com radicalidade para criar (com “armas próprias…” contra a “fortuna”, a natureza desigual) novos principados.

Ele, portanto, ensinava a “seus leitores como uma forma de governo similar à dos romanos [pode e deve ser] melhor do que a dos romanos” (Ibidem). Por isso, o Maquiavel straussiano incitava à ação prática deliberada – “deliberadamente construída” (Ibidem) e estratégica e, racionalmente, elaborada. Ele, o Maquiavel de Leo Strauss, ensinou a seus leitores futuros, os jovens convencionalistas, a organizarem o desejo e a ação política racional. A ação era a configuração política que reclamava, para si, a superioridade frente à fortuna (ao destino, à Deus, à natureza imutável e desigual); e, tanto mais a fortuna estava associada à natureza, à vontade de Deus na imposição do destino aos homens, à autoridade ordinária (pré-teorética), mais Maquiavel intensificava suas afirmações acerca da necessidade de ação prática (disruptiva).

A força imaginativa do texto moderno do florentino assombrava o temperamento conservador e inflexível de Leo Strauss. Contra a autoridade da Bíblia, e citando Lívio, ele pode dizer para aqueles que buscavam novas ordens e novos modos (a transformação de sua existência opressora – na argumentação esotérico-hermenêutico de Strauss) que “o paganismo deixou a prudência humana livre para escolher o curso mais sábio de ação” (Ibidem, p. 157).

Era autorizado, portanto, o uso das armas na guerra contra as coisas mais antigas. A última palavra. Recusando com radicalidade e ousadia os modos antigos, o Maquiavel de Leo Strauss rompeu com a filosofia política clássica e com a questão da lei (direito) natural hierárquico. Seu arrojado ensinamento pretendeu alcançar as multidões, pois essas eram o sujeito mais representativo da busca incessante por novos modos e ordens na modernidade; nos termos do Leo Strauss de Direito natural e história, eram o ápice do convencionalismo da transfiguração da ordem vigente e seu processo interminável de civilização para derrubar, para sempre, as necessidades naturais (Ibidem, p. 173) (defendidas, impostas, pelas elites aristocráticas).

Na guerra pela existência (Ibidem, pp. 192, 193), homens e mulheres poderiam – e deveriam – pecar ao utilizar as armas na política. A arte das armas e da guerra eram (e foi ao longo de nosso tempo…) as únicas formas de se afastar, definitivamente, da ideia de natureza (lei natural) desigual, imutável, hierárquica e que impunha aos indivíduos e grupos (subalternos) um lugar do qual jamais poderiam sair, e mesmo reivindicar sair.

Nas entrelinhas de sua teoria política, pensa Leo Strauss, Maquiavel e o maquiavelismo ensinaram pelo reverso, àqueles como ele (a direita, os conservadores e os liberais-conservadores) que se opunham com intransigência aos que buscavam liberdade efetiva para todos e todas, igualdade material e felicidade universal – numa palavra, a vida emancipada da opressão e sofrimento – a necessidade urgente de nas circunstâncias da sociedade moderna de utilizarem as armas e a forjarem em si uma espiritualidade guerreira, contra os de baixo.

Os ensinamentos de Leo Strauss já chegaram aos seus herdeiros na política (Peter Thiel, Olavo de Carvalho, Trump, os Bolsonaros, Ives Gandra, JD Vence, Paulo Guedes etc); resta saber quando Maquiavel chegará a nós: a esquerda…

RONALDO TADEU DE SOUZA ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)

*Ronaldo Tadeu de Souza é pós-doutor em ciência política pela USP.

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