
CHARGE DE JAGUAR ” A TARDE/ BAHIA)
Há muito que a Europa avalia mal o seu poder na retórica que adotou sobre a guerra
A conversa telefónica entre Trump e Putin consagrou de novo a Rússia como grande potência. Esta foi talvez a mais relevante consequência da conversa. Mas houve outras. E entre as outras está a Europa, que sai dali como derrotada. O que não deixa de ser verdadeiramente espantoso — na verdade, sempre foram os Estados Unidos a querer expandir a OTAN até à fronteira da Rússia. Agora, são os primeiros a querer sair do atoleiro em que a guerra se transformou, deixando a Europa sozinha e desorientada.
Os diplomatas adoram a frase sobre o poder de se estar à mesa das negociações. Quem não está à mesa, está no menu, dizem. É claro que não é assim, mas a frase é de belo efeito — comer ou ser comido. Para os chamados realistas, esta é a triste realidade de um mundo dominado pelo interesse e pela força. O mundo hobbesiano da guerra de todos contra todos. Não é assim.
No mundo da política internacional, os mais maquiavélicos, aqueles que acham que só a força e o poder contam, são frequentemente os mais ingênuos. O direito internacional e a justiça são muito mais fortes do que alguns pensam. É certo que a Europa acha que foi apunhalada pelas costas. É certo que a Europa sai mal de tudo isto. Mas os Estados Unidos não saem melhor — vai ser difícil voltar a acreditar na sua palavra e na sua liderança. A OTAN está enfraquecida, o poder irradiante dos Estados Unidos diminuiu e o dito mundo ocidental ficou mais fraco. Fora desse mundo, é o júbilo. O novo Secretário de Estado americano diz que o mundo está mais multipolar. Tem toda a razão.
A partir daqui nada vai melhorar para a Europa — só piorará a cada dia que passa. Em primeiro, lugar, julgo que é agora claro que os Estados Unidos não darão nenhumas garantias de paz à Ucrânia (que, perdoem insistir neste ponto, arrastaram a Europa para tudo isto quando insistiram, em 2008, na adesão da Ucrânia e da Geórgia à OTAN). Em segundo lugar, a ideia europeia de mandar tropas para a Ucrânia para garantir a paz esbarrará na inflexibilidade da Rússia, que não assinará nenhum acordo de paz com essa condição. Terceiro, parece indiscutível que Trump e Putin têm visões diferentes quanto à urgência da paz — o primeiro quer uma paz imediata, o segundo acha que o tempo joga a seu favor. Finalmente, em quatro lugar, considerando os diferentes interesses dos diferentes actores, julgo que estamos longe de um tratado de paz.
O melhor que se poderá alcançar, em minha opinião, será um cessar-fogo ou o congelamento do conflito. Mas um conflito congelado não é a paz — é ainda um conflito embora latente, implícito. Um conflito em potência. E, pior ainda, esse conflito em potência será ainda mais perigoso com a escalada da nova política europeia de corrida aos armamentos. O outro lado fará o mesmo.
Há muito que a Europa avalia mal o seu poder na retórica que adotou sobre a guerra. Condenar a Rússia pela invasão foi correto e as sanções econômicas também (com exceção daquelas que se estenderam ao desporto e à cultura). Mas pensar que a economia russa iria colapsar, que a Ucrânia seria capaz de derrotar a Rússia e que poderíamos transformar uma potência nuclear num pária internacional para sempre, já me pareceu uma completa falta de juízo estratégico.
A concentração do discurso de guerra na demonização da liderança russa também não ajudou nada. Quando os Estados Unidos se recusam a dar garantias de segurança à Ucrânia estão apenas a dar sequência àquilo que sempre me pareceu claro — aquela guerra não faz parte dos seus interesses estratégicos. Para os russos sim, esta guerra é estratégica e vital. Também o é para os ucranianos, que lutam pelo seu país.
Mas o mesmo não se pode dizer dos Estados Unidos, que agora decidem abandonar o barco. Com um pouco mais de humildade e um pouco mais de interesse na negociação da paz, a Europa poderia ter preparado melhor este momento. Desta vez, os realistas têm razão — naquela chamada telefónica, a Europa foi a vítima da conversa.
JOSÉ SOCRATES ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( PORTUGAL/ BRASIL)