EM BUSCA DO ESCRITOR JOÃO ANTONIO PERDIDO

Nascido em 1937, João Antônio começou a jornada para as estrelas, ou das estrelas, com o livro de contos Malagueta, Perus e Bacanaço em 1963

Se para o povo em geral, e para os artistas em particular, a redemocratização criou melhores tempos, no caso de João Antônio ocorreu uma contradição: o melhor tempo para quase todo o mundo coincidiu com um declínio em sua vida e memória do que escreveu.

Nascido em 1937, João Antônio começou a jornada para as estrelas, ou das estrelas, com o livro de contos Malagueta, Perus e Bacanaço em 1963. Sucesso de crítica e de público. A partir daí, o escritor falou, disse e declarou a que veio. Em palavras magistrais, mergulhou no universos dos marginalizados e marginais, numa linguagem que Antônio Cândido comparou à de um Guimarães Rosa urbano. E vieram sem parar os contos em livros: Leão- de-chácara,  Malhação do Judas Carioca, Casa de Loucos, Lambões de Caçarola (Trabalhadores do Brasil)….E não só em livros. Então, em tempos da ditadura, mas antes do terror de Médici, o escritor esteve no grupo que fundou a revista Realidade, marco do jornalismo do Brasil. Nela, como prova de que jornalistas crescem na imprensa que os abriga, numa relação mútua, publicou reportagens literárias quase nunca vistas pelo público brasileiro antes, como o texto inclassificável em categorias rígidas “Um dia no cais”.  

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Houve uma época na ditadura em que era impossível um intelectual, um estudante de esquerda desconhecer João Antônio, pois ele estava onipresente como homem, artista, escritor em um tempo em que os guerrilheiros, militantes socialistas  e comunistas estavam presos, exilados, mortos ou clandestinos. No entanto, para escrever este artigo, busquei por muitos dias o livro Dama do Encantado, última obra do escritor João Antônio. As razões da busca não eram um fetiche pelo última, como se ela flagrasse a explosão final de uma estrela. Não, meu senso desrespeitoso não chega a tanto.  A razão se prendia, ou se soltava., pela relação de crônicas e artigos desse livro:  Meus tempos de menino, Almas da Galera, Garrincha impossível, Leão de juba grande, Dama do Encantado, Romancista com alma de bandido tímido… já veem que pelos títulos a atração era irresistível. Mas o que fazia me roer de ansiedade era a Dama do Encantado, um perfil de Aracy de Almeida. O que eu não daria pelo gosto de conhecer, rever a intérprete de Último Desejo, a maior de Noel Rosa, da vanguarda artística em um mundo conservador, na prosa de um dos nossos maiores escritores!

Mas não pude até agora. Nas livrarias ricas do Brasil, as chamadas boas casas do ramo, o Dama do Encantado sumiu. Nos sebos do Recife, que são bons mas e mais na altura dos nossos bolsos, os sebistas respondem: “Tem não”. Busquei nos amigos do Facebook, que é um ótimo lugar para ter milhões de  amigos sem o risco das presenças, nada. Busquei entre intelectuais, professores da área de letras, e não foi possível. Mas reconheço. A culpa, se houver,  não é deles. O destino de um gênio também está inscrito na história,  nos fornos inclementes que transformam tudo em cinzas. O desejo da gente é que sempre anda em desconcerto do mundo. Pois o fato é este:   João Antônio é um escritor esquecido hoje por 10 em cada 10 jovens brasileiros. E pouco valorizado por 9 em cada intelectuais do Brasil.

No entanto, este não é um artigo de desculpas. Vamos escrevê-lo. A vontade  é soberana para o pensamento que busca. Comecemos então pelo escritor, jornalista e crítico de literatura Flávio Aguiar, de quem copio:

“Em 29 de setembro de 1975 publiquei, no jornal Movimento, minha primeira crítica sobre algum livro de João Antônio. Era sobre Malagueta,  Perus, e  Bacanaço, livro que, publicado em 1963, saía doze anos depois de um injusto ostracismo editorial. Havia então um clima de ‘redescoberta’ dessa obra de João Antônio que coincidia, em 1975, com um clima de ‘redescoberta’ do povo brasileiro do povão das periferias e dos grotões, dos esquecidos. Essa ‘redescoberta’ se operava em parte da imprensa, da li-teratura  e  da  crítica  brasileiras,  em  particular,  no  caso  da  crítica, daquela praticada nas universidades e na então chamada ‘imprensa nanica’, por contraste com a ‘grande imprensa’. O próprio João Antônio, em entrevistas, ajudara a cunhar o termo ‘nanico’, designando a imprensa que fazia oposição à ditadura e aos grandes jornais  às  vezes  cúmplices,  às  vezes  instigadores  do  golpe  de  1º  de abril de 1964. Mais tarde essa imprensa ganharia o título mais galhardo de ‘imprensa alternativa’. Esse artigo chamava-se A  palavra  no  purgatório. Era breve, e ficou mais breve ainda, pois passou por cortes da censura, que era feita pela Polícia Federal, em Brasília, para onde tínhamos de enviar os artigos que sairiam no jornal. Abria-se assim o primeiro parágrafo: ‘O essencial a compreender na obra de João Antônio é que ele vive a partir de um universo  cristão’.  Prosseguia  assinalando  que  o cristianismo  de  João Antônio era dos primevos, daquela cepa ‘que fez o Messias nascer e  crescer  entre  os  deserdados  da  terra’….”

Sobre a presença e importância de João Antônio, Antônio Cândido escreveu em 1982.: “Os seus contos exploram quase sempre o chamado submundo, o outro lado que pagamos para não ver, ou para ver do palanque armado pelos distanciamentos estéticos. Mas ele nos arrasta para o centro da arena, porque é onde se instala, sem desprezo nem complacência, a fim de criar uma normalidade do socialmente anormal, fazendo com que os habitantes de sua noite deixem de ser excrescências e se tornem carne da mesma massa de que é feita a nossa”.   

A sua genialidade não se encontrava apenas nos temas dos contos e crônicas. Não estava somente nos personagens marginais ou marginalizados da sua obra. Estava, no fundamental, na apropriação criadora, ou para usar um jargão mais técnico, na chamada linguagem. Olhem por favor o começo do conto Leão-de Chácara:

“O que vai me baixar pela frente não está em nenhum caderno. O que vai pintar de trouxa, espertinho, pé-grande, mocorongo do pé lambuzado, muquira, bêbado amador, loque, cavalo-de-reta, zé-mané dando bobeira, doutor de falsa fama, papagaio enfeitado, quiquiriquis, langanhos, paíbas, não será fácil. Eu aturando, ô pedreira! Para mim a noite vai ser de murro.

Na noite malhada e escrota, disciplinando as mulheres, beliscando os otários, distribuindo mesuras e apanhando grojas, picardo e sonso; mas também molhando a mão dos ratos, que os arreglos são de lei, acabarei dando muitas de cerca-lourenço, muita piaba e bastante pau nessa cambada de fariseus, sambudos e mal-topados. Hoje é sexta-feira. E gajo solto nesta noite é falso boêmio, metido a alegre e sabidinho, achando que é algum manda-tudo na cidade. Mordo-lhes uma grana, é verdade, mas me dão canseira.”

João Antônio em atos e entrevistas, brigou com Deus e o Mundo. Não poupava ninguém Só não brigou com Lima Barreto, seu grande ídolo literário,  sobre quem escreveu e teve como herói e modelo de vida: “Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto”. Mas o escritor, a quem ele sempre homenageou como um dos maiores da literatura brasileira, se fez mais que homenageado, virou carne e alma de novo em João Antônio, num processo de mimese visto em mais de um escritor. Para lembrar os versos fundamentais de Camões:

“Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada…”

Ou aqui, ainda, no mesmo gênio poeta:  

“Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento””.

Em João Antônio, os melhores tempos para quase todo o mundo coincidem  com um declínio pessoal, porque o autor naufragou aos poucos no álcool e na solidão. Mistura fatal. O grande João Antônio, autor de obras-primas do jornalismo literário na revista Realidade e de textos fundamentais como no livro Dama do Encantado, terminou seus dias sozinho. Um sozinho absoluto, sem companheira, fechado em casa, onde seu corpo foi encontrado 24 dias depois do desaparecimento, quando os vizinhos reclamaram do mau cheiro do apartamento.    

Assim descreve o triste fim a notícia da Folha de São Paulo em 1º de novembro de 1966:

“O corpo do escritor João Antônio foi encontrado ontem por policiais que arrombaram a porta do apartamento onde ele morava, em Copacabana
João Antônio Ferreira Filho tinha 59 anos. O escritor estava desaparecido desde o dia 7 de outubro. Ele foi visto pela última vez pelo porteiro do edifício, Francisco Artenísio.

O corpo estava em estado adiantado de putrefação.

O cadáver foi encontrado sobre a cama de um dos quartos. Paulista de nascimento, João Antônio optou por viver no Rio. Ele é o autor de livros como ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’, ‘Leão-de-Chácara’ e ‘A Dama do Encantado’.

Seus escritos se notabilizaram pela ousadia linguística. O escritor trazia para os seus livros o ambiente onde habitavam os marginais e malandros das ruas”

Mas para a vida, para todos nós que o amamos e queremos vivo, o seu corpo está nesta obra-prima do jornalismo literário: “Um dia no cais”, do qual cito o começo:

“O menino equilibra a sacola na bicicleta. Manhã cedo. A rua é doméstica.

De longe em longe, uma locomotiva a óleo diesel apita, modorrenta, e vem furando para as luzes na zona do cais.

—Epa!

Um menino branco se esforça, sobe do selim para o cano, mete os peitos contra o guidão, se enverga, equilibra a sacola na bicicleta e corta de fininho o cais. Vai que vai embora. Está quase sozinho com as luzes no comprimento de paralelepípedos, gozando nas curvas. O menino mais o seu calção e a sua japona, seu cabelo cortado rente, sua campainha, trim-trim nas esquinas que atravessa.

Cinco da manhã. As vassouras de piaçava correm nas mãos dos dois garçãos, peitos de fora, calças arregaçadas, tamancos. Batem, esfregam o chão da calçada do Bar Café Restaurante Chave de Ouro.

A cidade, os prédios e os morros dormem de todo. Cais não dorme. Não se apaga. Lá pelos cantões, um que outro olho aceso fica no rabo da manhã. E fica.

O botequim é xexelento, velho encardido. E teima que teima plantado. Aguenta suas luzes, esperto, junta mulheres da vida que não foram dormir, atura marinheiros, bêbados que perturbam, gringos, algum cachorro sonolento arriado à porta de entrada. Recolhe cantores cabeludos dos cabarés, gente da polícia doqueira, marítima ou à paisana. E mistura viradores, safados, exploradores de mulheres, pedintes, vendedores de gasparinos, ladrões, malandros magros e sonados.

O boteco é mais. Agasalha traficâncias e briga. Gente encosta o umbigo ao mármore do balcão e queima o pé com bebidas. Fuá, tenderepá, pau comendo quente. Quizumbas.

— Vai lavar roupa, sua fedorenta!

Rita Pavuna e Odete Cadilaque se pegam. Duas das que zanzam batalhando na noite, conluiadas nos trampos, nas arrumações, para surrupiar fregueses e levantar a grana, ainda que devam aturá-los. É lei — malandra que é malandra, no cais, não deve ir com trouxa. Toma-lhe o milho no jeito, debaixo de picardia e manha. Carne é carne e peixe é peixe”.

Isso quer dizer. Terei que voltar à procura do escritor do Dama do Encantado.

URARIANO MOTA ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

*Vermelho Em busca do escritor João Antônio perdido – Vermelho

Urariano Mota – Escritor, jornalista. Autor de “A mais longa duração da juventude”, “O filho renegado de Deus” e “Soledad no Recife”. Também publicou o “Dicionário Amoroso do Recife”.

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