A HISTÓRIA DA FAMÍLIA MONTENEGRO

As origens entre o Douro e uma aldeia transmontana, a mulher que tomou conta da família e lhe permitiu dedicar-se à política, e os filhos, que mudaram de escola em crianças por sofrerem bullying, porque o pai se meteu na política.

Acordava pelas 5h30. Comia pão com manteiga e bebia chá e seguia com os primos para os campos, na quinta da família no Douro. Filipe — assim tratado pela família, pelo segundo nome, porque já havia um primo Luís Montenegro – ficava, na maior parte do tempo, encarregado de instalar os tubos de rega para as culturas. Havia oliveiras, laranjeiras, macieiras e vinhas no terreno isolado com hectares a perder de vista à beira-rio, na freguesia de Barrô, entre Resende e Lamego, distrito de Viseu. O avô materno – que nasceu nesta freguesia, licenciou-se em Direito e tornou-se conservador do registo predial – oferecia-lhe 10 escudos por aquele trabalho; uma injustiça, na perspetiva do agora primeiro-ministro. Os primos, mais velhos, já ganhavam 20 e os homens contratados 50 escudos. “Filipe” ameaçou parar e o avô lá acabou por igualar o salário dos primos.

Os primeiros 15 dias de agosto eram, ano após ano, passados assim, pelo menos até à adolescência, quando a carta de condução e os empregos de verão em Espinho passaram a permitir-lhe rumar ao Algarve, mas esta quinta será sempre um ponto de retorno para a família.

Montenegro com os irmãos, Henrique e 
Isabel, e o avô paterno na 
quinta da família no Douro

Montenegro com os irmãos, Henrique e 
Isabel, e o avô paterno na 
quinta da família no Douro


Foi aqui que, em 2017, aos 45 anos, Henrique, o irmão de Montenegro mais velho 14 meses, morreu vítima de um ataque súbito que não perdoou o tempo da assistência. O INEM demorou cerca de 45 minutos a chegar. E foi para aqui que a sua mãe regressou na reforma (já depois de o pai de Montenegro morrer de cancro) para se dedicar à terra e resgatar o vinho da família, Murus (nome registado por Luís Montenegro em 2008 e entretanto passado para a mãe).

“Ninguém pensava que me ia virar para a agricultura”, admitiu a mãe a uma equipa de reportagem da TVI, que visitou a quinta, em setembro de 2022. Em seu nome está registada uma empresa de viticultura, que produz azeite, vinho e cereja. Maria Virgínia vive agora entre a quinta e a casa da família em Espinho.

Maria Virgínia Montenegro Vieira Cardoso Esteves é a segunda de 14 filhos com raízes na aristocracia nortenha. Teve oportunidade de estudar, como todos os irmãos, e licenciou-se em Economia no Porto. Arranjou, depois, emprego na Caixa de Previdência, em Viseu, e é nesta cidade que se cruza com Henrique, licenciado em Direito, jurista e advogado, que veio parar a Viseu como delegado do Ministério do Trabalho, descreve o jornalista Miguel Carrapatoso, na biografia Na Cabeça de Montenegro (2024).

O regresso à aldeia

Henrique Esteves tinha origens mais humildes. Nasceu e cresceu na aldeia transmontana de Rabal, no concelho de Bragança, perto da fronteira com Espanha. O pai era guarda prisional; a mãe, doméstica, dedicou-se à educação dos três filhos. Apesar de viverem com menos posses do que a família de Virgínia conseguiram mandar os três filhos para o Porto estudar. A irmã mais velha tornou-se professora, Henrique seguiu advocacia e a mais nova medicina.

Luís Montenegro também regressava anualmente, até aos 20 anos, a esta aldeia, na última quinzena de agosto, “onde não se passa rigorosamente nada. É um local de isolamento e onde ele pode estar concentrado. Aquilo é de uma ruralidade incrível e o Luís gosta muito disso e tem muito orgulho nas suas origens”, conta um amigo próximo.

Nas férias em Rabal, o primeiro-ministro vivia sem eletricidade nem água canalizada. Usava uma lamparina de azeite e ia com um cântaro à fonte buscar água.

É neste cenário também que começa a interessar-me por culinária, à semelhança do pai. Em Rabal, ia ao mercado, jogava futebol, andava de burro e participava nas festas populares. Ainda regressa religiosamente à terra do pai, com quem tinha uma afinidade especial, no 24 de agosto, para as festas em honra de São Bartolomeu.

A costela rural de Henrique Montenegro foi sendo trocada por uma vida mais citadina. Depois de casar com Virgínia, mudam-se para uma casa arrendada em Espinho, onde já havia uma moradia de férias da família materna que remonta a 1900. Instalaram-se na cidade piscatória e ali ficaram.

Virgínia trabalhará sempre como funcionária pública da Administração Regional de Saúde do Norte, no Porto. Henrique cria um escritório de advogados na Invicta com um primo do líder social-democrata Francisco Sá Carneiro – José Manuel Sá Carneiro. Henrique Montenegro simpatiza com as ideias políticas dos sociais-democratas e virá a apoiar a AD de Sá Carneiro (chegará a levar a família a um comício do PPD-PSD no estádio das Antas, de onde Luís Montenegro trará uma bandeira), mas não chega a entrar a sério na política. Isto apesar de ter recebido um convite para ser deputado do PSD, que recusou.

Em vez disso, dedica a carreira ao Centro de Produção da RTP no norte, sediado na delegação em Vila Nova de Gaia. Foi diretor deste departamento, diretor-adjunto e responsável pelos serviços jurídicos. Quem se cruzou com Henrique Montenegro nos corredores da estação de televisão pública recorda uma “figura muito querida, amável”. “Não socializava muito, mas era uma excelente pessoa”, lembra outra fonte da RTP.

Luís Montenegro passa, por esta razão, a ser presença assídua nas instalações da RTP, durante a juventude, e participava nas colónias de férias para os filhos dos funcionários. Se mais novo ficava em casa, em Espinho, e assumia a responsabilidade de terminar o almoço para si e para o pai (refeição que a mãe deixava adiantada antes de sair de casa para o Porto às 5h30), quando começa a ir para o Porto junta-se a Henrique Montenegro na cantina da estação de televisão.

O pai morre aos 66 anos de doença prolongada, em 2011, um cancro que na fase final se tornou fulminante. Amigos próximos de Montenegro explicam que o primeiro-ministro passou a viver “como que para honrar a memória do pai”.

Os pais de Montenegro “não eram pessoas muito carinhosas. Eram pais rudes, disciplinadores, mas que, ao mesmo tempo, davam muita liberdade aos filhos e a família era muito unida”; um traço que Luís Montenegro replica desde que começou a construir o seu próprio agregado.

A família foi sempre discreta. No ambiente pequeno e familiar de Espinho, quase todos os conhecem e dos pais ninguém tem histórias de maldizer. O pior vem quando Montenegro entra na política…

“A crescer nunca percebi que o Luís tivesse grandes riquezas”, testemunha outro amigo de Espinho.

Henrique Montenegro ainda comprou um terreno em Vila Nova de Gaia para construir uma casa para a família, mas o “Filipinho” deixou bem claro que não se queria mudar e o pai acabou a vender estes metros quadrados anos mais tarde. E quando o primeiro-ministro deixou a casa da família, aos 27 anos, não foi para longe. Alugou um andar a meia dúzia de ruas de distância com Carla, a única namorada que alguma vez se lhe conheceu.

Trabalharam
no mesmo bar durante o verão. Montenegro foi também nadador-salvador e Carla teve um part-time numa ourivesaria

Trabalharam
no mesmo bar durante o verão. Montenegro foi também nadador-salvador e Carla teve um part-time numa ourivesaria

Carla, a filha da terra

Corre em Espinho que quem bebe água de uma fonte dali nunca mais quer sair. Se Carla Maria Rodrigues Neto não bebeu bem o podia ter feito. Carla nasceu, cresceu e construiu a sua vida toda em Espinho.

A mãe veio de Terras de Bouro, como criada de servir. “Era muito comum: Espinho era uma terra de muitas casas de verão, as famílias com mais posses vinham aqui passar a época e traziam sempre a criada”, conta um espinhense, amigo do pai de Carla.

O pai, que morreu no ano passado de cancro, era desenhador e trabalhava numa empresa de moldes da terra. “Era um gajo como todos nós. Trabalhava todos os dias das 8h às 19h e se podia fazia horas extraordinárias para receber mais qualquer coisa. Era já um trabalhador com qualificações, fez a escola industrial e era um gajo remediado, que viveu sempre em casa alugada”, continua o mesmo amigo.

O “Neto”, como lhe chamavam em Espinho, esteve também na Guerra Colonial, em Angola. A sua família projetava filmes no casino de Espinho e era fácil encontrá-lo nos cafés por ali a jogar à sueca com os amigos.

O casal teve duas filhas, Carla e a irmã, que também ficou pela terra e que tem uma pequena empresa de contabilidade perto. Carla envolveu-se sempre nas atividades associativas de Espinho. Praticava desporto e foi atleta federada do Sporting Clube de Espinho, no escalão de juvenis feminino de voleibol. Assim que passou a ter idade para trabalhar, à semelhança de Montenegro, tinha os seus biscates de verão. Trabalharam inclusive no mesmo bar, o Última Instância. Carla teve também um part-time numa ourivesaria.

Quando atingiu a maioridade chegou a inscrever-se num concurso de misses na discoteca Hollywood, na vizinha Santa Maria da Feira. “Era uma jovem muito bonita e chegou à final”, recorda um dos presentes neste momento. Montenegro estava lá a apoiar, já namoravam há um par de anos.

Carla e Luís conheceram-se na secundária Manuel Laranjeira e todos quantos os acompanharam dizem que foi “tiro e queda”. Não se lhes conhecem outros amores.

“Eram gaiatos e lembro-me de o Neto dizer que o rapazito [Luís Montenegro] não largava a miúda, que não saía lá de casa. Estava lá sempre a estudar”, acrescenta o já citado amigo do pai de Carla.

Carla foi estudar Educação de Infância na Universidade de Aveiro e Luís foi para Direito para a Universidade Católica do Porto, como o pai e o avô, mas o casal nunca deixou Espinho. E foi Carla que decidiu quando chegou a hora de casarem. Montenegro não questionou, confessou o chefe do Governo, numa entrevista à TVI, em 2024.

Em 1997, Carla empregou-se na IPSS Associação de Desenvolvimento do Concelho de Espinho, onde ainda hoje trabalha e se dedica a ajudar crianças e jovens, em risco (embora esteja de licença desde que o marido tomou posse como primeiro-ministro). Pelo caminho, tirou outra licenciatura em Ciências da Educação na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto; ajudou a criar a associação EVIDA, que se dedica a atividades culturais e recreativas no concelho. Neste âmbito, costuma colaborar sempre no tapete de flores que decora a rua 18 [em Espinho, a maior parte das ruas recebem como nome números].

Carla Montenegro trabalha desde 1997 numa IPSS em Espinho, onde lida com crianças e 
jovens em risco

Carla Montenegro trabalha desde 1997 numa IPSS em Espinho, onde lida com crianças e 
jovens em risco

Além disso, dedicou-se sempre à educação dos filhos, permitindo ao marido concentrar-se nas lides políticas. À exceção de uma breve passagem pela junta de freguesia de Silvalde (Espinho), nas listas do PSD, em 2017, deixou a política para o marido. Pelas atas das reuniões, disponíveis no site da freguesia, faltou a todas as assembleias e um ano depois de ter sido eleita renunciou ao lugar.

Enquanto isso, Luís Montenegro construiu uma vida na política e no mundo empresarial, neste último como forma de sustentar a vida da família. Além da sociedade de advogados Sousa Pinheiro & Marques (cuja quota vendeu por 2.500 euros, quando se tornou líder do PSD, em 2022) e da Spinumviva – que passou para o nome da mulher e dos filhos, quando se tornou primeiro-ministro, e que tem estado no olho do furacão político pelos contratos com clientes que dependem da regulação do Estado como a Solverde, dos Violas –, o registo de interesses do primeiro-ministro mostra que teve ainda a Oliveiras Gold de Portugal, Lda. e a Luismonteago, Lda.

“O Luís foi sempre uma pessoa que ocupava o tempo a fazer dinheiro. Se tinha duas horas trabalhava mais duas horas e sempre teve dificuldade em desfazer-se daquilo que criava”, diz fonte próxima do primeiro-ministro. No caso da Spinumviva, até dentro do Governo alguns ministros consideraram que a devia encerrar, mas Montenegro optou por tirar a mulher da equação e passá-la apenas para nome dos dois filhos.

Os herdeiros

Hugo e Diogo cresceram com um pai muitas vezes ausente, admitiu o primeiro antes das legislativas, num testemunho sobre o pai que deu à TVI: “Tentou sempre estar connosco, mas ao longo dos anos passámos muitos aniversários sem ele – e faz falta.”.

Quando Hugo, 23 anos, nasceu, Luís Montenegro tornou-se líder da bancada parlamentar do PSD e passava grande parte da semana em Lisboa. Quatro anos depois, Carla e Luís tiveram Diogo, todavia, apesar dos 16 anos em que o primeiro-ministro esteve como deputado na Assembleia da República, a mulher nunca aceitou mudar-se para a capital por estar a contar com a ajuda dos pais e dos sogros para criar os filhos.

“Foi muito duro. A minha mulher fez um esforço enorme nos primeiros anos de vida dos nossos filhos, porque eu passava metade da semana fora de casa”, disse Montenegro, ao programa da SIC Alta Definição (fevereiro de 2024). Os filhos “preferiam que eu não estivesse na vida política, disso não tenho dúvida nenhuma, eles não me dizem isso, mas eu sei”, acrescentou.

Na escola, Hugo e Diogo colheram os dividendos de ter o pai na política. E, aos 7 anos, Diogo teve de mudar de escola, porque os pais de colegas, funcionários e professores não deixavam passar em branco as atitudes do pai na política. “Os cachopos sofriam bullying na escola e o Montenegro mudou-os para o colégio no Porto [primeiro para Colégio de Nossa Senhora do Rosário e depois frequentaram o Colégio Luso-Internacional do Porto, detido pela família Viola]. Só que ele não estava cá e era o Neto [avô paterno] que andava de um lado para o outro com eles. O Montenegro lixou-o bem, mas até lhe deu o carro dele nessa altura”, conta o amigo do avô. Era também o avô paterno que os transportava muitas vezes para as atividades desportivas. Hugo jogou sempre futebol, passou por quatro clubes. O último foi o Paços de Ferreira, onde o presidente, Paulo Meneses, fala sobre um “jogador razoável” e um jovem “impecável, respeitador, educado e brincalhão”.

No verão 
passado,
a família foi de férias para a praia de Vale do Lobo, no Algarve

No verão 
passado,
a família foi de férias para a praia de Vale do Lobo, no Algarve


Um amigo da família diz que Diogo, 20 anos, estudante universitário, sai mais à mãe e que Hugo, licenciado no ano passado em Gestão Empresarial na Católica Porto Business School e tirou três cursos de verão nesta área na Croácia e na Eslovénia, “vai buscar mais ao pai”, mas têm um pouco dos dois. São muito ligados à família e a Espinho, onde não é difícil avistá-los. A vida dos quatro ainda é feita por ali como sempre, dizem os vizinhos. À sexta-feira à noite, o jantar continua a ser no Baliza, a poucos passos da casa de família, vão à praia e jogam golfe por perto.

RITA TATO NUNES ” REVISTA SÁBADO” ( PORTUGAL)

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