A FASE TERMINAL DA DEMOCRACIA

Dei-me o desprazer de assistir de cabo a rabo o discurso de Trump diante do Congresso Americano e da Suprema Corte.

Exercício penoso. Melancólico, assustador. Trump não fala para uma plateia, fala para um espelho. Dorian Gray político, esconde com pinceladas de tintas aziagas o supremo narcisismo onanista que o sustenta.

Convencido de que o partido Democrata em breve se curvará ao destino manifesto da supremacia branca, Trump debocha de seus representantes, inclusive de Nancy Pelosi que o encara com a dignidade e a firmeza de sempre.

Diante daquele discurso descosido, patético, mais longo que uma ópera bufa, impossível não lembrar de Obama em sua visita à Universidade do Cairo, quando pronunciou talvez o mais congraçador discurso político deste século.

Obama, a desenhar um futuro de esperança no destino humano, Trump a insistir na fantasia do destino manifesto americano em que se misturam dissidências, ódios e uma sociedade fraturada por divergências religiosas, e sobretudo pela ganância do lucro metálico infinito.

Não tiro de minha cachola essas considerações.

Nesta hora, é imprescindível reler os livros de Robert Kagan, onde se disseca a alma americana desde os tempos em que aportaram no novo Continente os pioneiros em busca de um território, mas sem abandonar os vínculos aristocráticos e absolutistas da Inglaterra.

Kagan nos esclarece que o liberalismo defendido pelos “ Founding Fathers” , posteriormente inscrito na Constituição americana, nunca teria sido efetivamente absorvido pela ‘alma americana”, profundamente vinculada à aristocracia e antiliberal.

A história americana, inclusive claramente ilustrada pela Guerra Civil, engoliu, mas não digeriu, o liberalismo, em especial a defesa de que todos somos iguais diante da lei. Não. Há os eleitos, os brancos.
E os outros.

A análise de Kagan, que resumo de forma irritante acima, torna mais compreensível, e igualmente mais preocupante, as propostas de Trump, que são passíveis de serem encontradas em diferentes etapas históricas dos Estados Unidos e, o que é mais importante, tanto em presidentes republicanos (Reagan) quanto democratas ( Clinton).

Torna-se igualmente mais compreensível porque Trump já deixou claro que pretende unir democratas e republicanos em um só partido, e porque o Partido Democrata hoje se encolhe e não mais consegue mobilizar um eleitorado profundamente dividido.

E sobretudo torna-se igualmente compreensível o silêncio de ex-presidentes como Obama. Talvez, por incrível que pareça, o mais passível de ser ouvido seria Bush, filho.

As análises de Robert Kagan nos permitem entender que os Estados Unidos da América vivem hoje uma crise institucional de enorme gravidade.

Trump, obviamente, captou como ninguém as aspirações antiliberais e as pretensões de destino manifesto e de supremacia branca.

Sendo, como tudo prova que é, um malabarista de crenças e temores, é o maestro também do desarranjo geopolítico que estamos a presenciar.

Para quem, como ele, está disposto a rasgar a Constituição americana, o conceito de Democracia pode igualmente passar por uma revisão histórica.

As palavras injuriosas com que Trump se dirige aos imigrantes, chamando-os de estupradores, doentes mentais etc, são um aperitivo para expandir este arco para os não-brancos, os não WASP, como reiteradamente vimos, faz poucos anos, com a extrema direita americana do macarthismo e a mais sofisticada de William Buckley. Nesse item, seria importante rever o histórico debate entre Buckley e James Baldwin.

De qualquer forma, nos limites deste espaço apenas esboço o enorme abismo que os Estados Unidos de Trump abre com o resto do mundo, inclusive com o Brasil, sociedade miscigenada e devedora da imigração universal.

Impossível não voltar ao assunto nas próximas semanas. Lamentável que muita gente fina não compreenda os riscos materiais e civilizatórios que estamos a correr quando se pretende identificar nosso futuro com esta anomalia política trumpista.

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EM TEMPO: O Oscar dado a “ Ainda estou aqui” como melhor filme estrangeiro, bem como ao documentário realizado por um palestino e um judeu, parece indicar que Hollywood, em especial o cinema independente, é uma força cultural do bem.
2. Aliás, não é de hoje. Basta rever os filmes derivados da guerra do Vietnam, em especial “Apocalipse Now ” e” Deer Hunter”, para confirmar que nem tudo está perdido.
3. Sem falar em ‘Once upon a time in America “ e “Godfather”, para concluir.
4. A leitura dos livros de Robert Kagan é mais do que obrigatória para quem quiser entender esses tempos bravios que estamos a viver. Imprescindível para nossos políticos.

ADHEMAR BAHADIAN ( JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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